“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

sábado, 11 de dezembro de 2021

Resistir É Preciso - Documentário

               Com apoio do Instituto Vladimir Herzog, a série Resistir É Preciso possui dez episódios com 26 minutos de duração e resgata a trajetória da imprensa brasileira que resistiu e combateu ao golpe militar. A série traz depoimentos e material historiográfico de jornalistas que atuaram em três frentes de combate: a imprensa alternativa, a clandestina e a que atuava no exílio. A série, narrada e apresentada pelo ator Othon Bastos, recupera a história de jornais alternativos, como o PifPaf, o Pasquim, Bondinho, Opinião e outros mais, permitindo conhecer as dificuldades de produção, as perseguições e manobras para mantê-los em circulação.

               Para relembrar e construir essas histórias, Resistir É Preciso conta com depoimentos de jornalistas como Audálio Dantas, Juca Kfouri, Laerte, Raimundo Pereira, Paulo Moreira Leite, Bernardo Kucinsky, José Hamilton Ribeiro, entre tantos outros.

 

Produção: Tc Filmes e TV Brasil

Produtor: Filó Silva

Direção: Ricardo Carvalho e Mário Masetti

Roteiro: Ricardo Carvalho e Carlos Azevedo

Direção de Fotografia: Arlindo Galdão Ruiz, Carlos Ebert, Daniel Szamszoryk

Figurinista: Olívia Arruda Botelho

Produção executiva: Pablo Torrecillas e Rodrigo Castellar

Direção de Produção: Márcia Santa Cruz e Fernanda Lauer

Montagem: Olésio Nepomuceno, Fernando Pereira, Beto Bassi e Cameni Silveira

Pesquisa: Vladmir Saccheta, José Luiz Del Roio, Juliana Sartori (assistente)

Trilha sonora original: Mr. Music

Mixagens: Cacá Bloise e Eduardo Filipovich 

https://www.youtube.com/watch?v=7o8ukCQFYy4&list=PLcdYRsZd3X4jrCvEiRigP0-gmFxo7R1hj

EP. 1 - "Como tudo começou..."

EP. 2 - "Um barão que não era barão faz escola e cria um estilo"

EP. 3 - "Começa a ditadura militar. A resistência pela imprensa também"

EP. 4 - "Imprensa Alternativa, uma leitura obrigatória" (parte 1)

EP. 5 - "Imprensa Alternativa, uma leitura obrigatória" (parte 2)

EP. 6 - "As muitas imprensas alternativas"

EP. 7 - "A imprensa alternativa pelo Brasil afora"

EP. 8 - " A expansão da imprensa alternativa no exílio"

EP. 9 - "Vou-me embora para a... clandestinidade"

EP. 10 - "A resistência dá a volta por cima"

quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Um salto para o futuro

Político habilidoso e carismático, Juscelino Kubitschek obteve êxitos na execução de seu ambicioso Plano de Metas. Mas enfrentou acusações de entreguismo e corrupção.

Vânia Maria Losada Moreira

                “Cinquenta anos em cinco" foi o slogan da campanha presidencial de Juscelino Kubitschek, em 1955. O lema propunha de forma sugestiva uma ideia que se tornou central para compreender o seu governo (1956- 1961): a de que por meio do planejamento econômico e de investimentos públicos e privados nos setores corretos da economia era possível realizar, em um mandato presidencial, então de cinco anos, a rápida industrialização do país, superando o subdesenvolvimento, a pobreza e as desigualdades sociais.


               O ambicioso projeto de JK ficou conhecido como desenvolvimentismo e se baseava no Plano de Metas, um programa de investimentos dividido em trinta itens, distribuídos entre os setores de energia, transporte, alimentação, indústria de base e educação. A construção de Brasília só foi incorporada ao programa durante a campanha presidencial, mas rapidamente se transformou em uma das prioridades de JK, que a definiu como "a grande meta de integração nacional". Para alcançar o salto industrial almejado, o Plano incentivava os investimentos nacionais e estrangeiros, procurando ampliar o parque produtivo, além de prever grandes investimentos estatais em rodovias, ferrovias, portos, refinamento de petróleo e na geração de energia elétrica.

               O êxito governamental na implementação do Plano de Metas foi notável. O país cresceu a uma taxa média anual de 8,1%, bem maior, para se ter um dado de comparação, do que os modestos índices de crescimento do PIB (Produto Interno Bruto) durante o governo de Fernando Henrique (2,3% anuais) e dos atuais 2,7% do governo Lula. A implantação da indústria automobilística (meta 27) é um bom exemplo do sucesso alcançado pelo Plano de Metas e de como a política desenvolvimentista lidava com as disputas de interesses do período. A equipe econômica construiu uma espécie de acordo tácito no setor automobilístico, reservando a produção de autopeças para o empresariado nacional e cedendo às multinacionais o controle das montadoras. E apesar dos protestos nacionalistas, que reclamavam que o governo privilegiava o capital estrangeiro, o fato é que o conjunto do setor foi muito bem-sucedido. Em 1960, o desempenho estava bem próximo do que havia sido planejado, com a capacidade de produzir 321 mil unidades, entre caminhões, utilitários, jipes e automóveis, contra os 347 mil veículos inicialmente fixados.

               Que a população brasileira desejava o desenvolvimento e a industrialização, não restam dúvidas. Afinal, JK venceu as eleições de 1955 com 36% dos votos válidos, defendendo abertamente o Plano de Metas e a modernização do país. Não era uma vitória avassaladora se comparada às eleições de 1950, que dera 49% dos votos válidos para Getúlio Vargas. Mas o extraordinário crescimento econômico durante seu governo, aliado à personalidade alegre, otimista e carismática de JK, garantiu-lhe enorme popularidade. Ele parecia terminar o mandato com muito mais apoio popular do que quando começou, tal como sugeria uma pesquisa do Ibope realizada no estado da Guanabara (atual cidade do Rio de Janeiro), em 1961. Apenas 9% consideraram seu governo mau ou péssimo. Para o restante da população pesquisada, o governo era ótimo (22%), bom (35%) ou regular (31%), apesar de a cidade ter perdido o status de capital da República.

                Para setores importantes da opinião pública, a tão festejada política desenvolvimentista não passava de um desacerto. Os membros da União Democrática Nacional (UDN), maior partido de oposição, consideravam JK um presidente perdulário e megalomaníaco, que gastava muito em obras públicas, promovendo o aumento da inflação. Além disso, criticavam a construção de Brasília, que, segundo argumentavam, se tornara o maior foco de corrupção da nação. De fato, o governo JK financiou parte importante dos investimentos públicos emitindo papel moeda, gerando, com isso, a desvalorização da moeda (inflação). Para termos uma ideia do problema, quando JK deixou a Presidência, a inflação anual estava na casa dos 30,5%, bem maior do que a taxa anual de 12,5% herdada por ele. No mesmo período, no entanto, o salário mínimo sofreu diversos reajustes: 58,3% em 1956, 57,9% em 1959 e 60% em 1960.

               As correções monetárias do salário mínimo eram importantes. Ajudavam a manter o poder de compra da classe trabalhadora e garantia ao governo a manutenção da aliança com o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), legenda defensora dos interesses dos trabalhadores. A aliança entre os dois partidos foi construída por JK, pois depois do suicídio do presidente Getúlio Vargas, em 1954, e da enorme comoção social gerada pelo trágico acontecimento, ele avaliou que dificilmente se tornaria presidente eleito sem o apoio de João Goulart, carinhosamente apelidado de Jango. Jango era, então, o mais evidente herdeiro político de Vargas e o maior líder trabalhista.

               A aliança com o PTB rendeu votos a JK, mas também a incansável e virulenta oposição da UDN. Apoiados em setores conservadores das Forças Armadas, Carlos Lacerda e outros udenistas foram os pivôs da crise que teve como saldo o suicídio de Vargas, acusando o presidente de corrupção, de demagogia e de tentar implantar uma "república sindicalista" no país. Pouco depois, estavam novamente no centro de outra crise político-militar, articulando um golpe para impedir a posse da dobradinha JK/Jango, levando o então ministro da Guerra, marechal Henrique Teixeira Lott, a fazer o chamado "golpe preventivo", em 11 de novembro de 1955, para garantir a posse dos eleitos. A oposição udenista ao governo JK não se reduzia, portanto, às críticas à escalada inflacionária e às suspeitas de corrupção. Para muitos, aliás, o que mais incomodava no governo JK era sua ligação com a maior herança deixada por Vargas ao povo brasileiro: Jango e o trabalhismo.

               Em 1957, o deputado Carlos Lacerda reclamou veementemente dos gastos e da corrupção e pedia a criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para apurar os custos de Brasília. Em 1959, voltou com toda a força ao assunto e quase conseguiu constituir a tal CPI, que, se fosse aprovada, paralisaria as obras no Planalto Central. Mas Lacerda não logrou sucesso. O fracasso da CPI se deveu à habilidade política de JK, que negociou com o vice-presidente João Goulart um nome de consenso para o Ministério da Agricultura, em troca da retirada das assinaturas do PTB da lista de apoio à CPI. Vencia a aliança governista PSD/PTB.

               Desde sua fundação, em 1945, o PTB demonstrava enorme vitalidade política. Em 1945, era um partido relativamente insignificante, controlando apenas 7,7% das cadeiras da Câmara Federal, contra 29,0% da UDN e 52,8% do PSD. Em 1958, no meio do governo JK, praticamente inexistia diferença entre o PTB, com 20,2% da representação parlamentar, e a UDN, com 21,5%. Mas, em 1962, o PTB já era o segundo maior partido e ameaçava a hegemonia do PSD: controlava 29,8% do conjunto dos deputados, contra 30,3% do PSD e 23,4% da UDN.

              O sucesso eleitoral do PTB estava vinculado ao seu programa, que defendia os direitos trabalhistas e reformas econômicas, sociais e políticas que interessavam à maioria pobre da população, como a reforma agrária distributiva de terras, o direito de voto do analfabeto, a extensão da legislação trabalhista ao trabalhador rural e a reforma administrativa, que buscava criar um serviço público realmente à altura das necessidades da população e do país. Desse modo, o PTB angariava muitos votos, criava novos diretórios, influía cada vez mais no meio sindical urbano e rural, e se aproximava de lideranças da esquerda, como os comunistas, cujo partido estava, então, na ilegalidade.

               Com essa trajetória, o PTB acabou ameaçando os interesses conservadores da oligarquia latifundiária, da burguesia industrial e do capital internacional. Durante os anos JK, no entanto, o PTB apoiou o governo, mas sempre fazendo críticas importantes. Muitos petebistas, nacionalistas e comunistas discordavam do endividamento externo e do incentivo à instalação de multinacionais no país. Taxavam essa política de "entreguista", pois acreditavam que ela comprometia a autonomia da economia nacional e entregava o país ao controle do capital internacional. O debate sobre o capital estrangeiro inflamava os ânimos dos setores progressistas e nacionalistas e ficou expresso em vários lugares: na Câmara dos Deputados, quando alguns de seus membros fundaram a Frente Parlamentar Nacionalista (FPN) para defender a industrialização, as reformas sociais e lutar contra a subordinação do Brasil ao capital estrangeiro; em várias entidades nacionalistas, como o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB); e nos memoráveis artigos publicados pela prestigiosa Revista Brasiliense (1955-1964), que reunia intelectuais nacionalistas e comunistas.

               Vê-se por tudo isso que governar no sistema democrático não é tarefa fácil, sobretudo em países com elites conservadoras e uma numerosa população pobre e explorada. Essa é uma das lições que nós, brasileiros, podemos tirar do chamado período democrático (1945-1964), quando, em razão de disputas políticas, a maioria dos governantes não conseguiu completar seus mandatos, envolvidos em crises político-militares cujos desfechos foram bastante surpreendentes e até mesmo trágicos: o suicídio de Getúlio Vargas, em 1954; a renúncia de Jânio Quadros, em 1961; e a deposição do presidente João Goulart, em 1964, por forças políticas e militares reacionárias que impuseram à nação vinte anos de autoritarismo.

               Juscelino Kubitschek governou caminhando pelo centro, procurando se desviar das críticas e conciliar os interesses da esquerda e da direita. Isso garantiu que ele completasse seu mandato e gerou a chamada modernização conservadora: a intensa industrialização e urbanização do Brasil, com a manutenção dos latifúndios e da distribuição desigual da riqueza nacional. Mais uma vez, a maioria do povo continuaria pobre, só que agora em outro cenário: as grandes cidades que o desenvolvimentismo ajudou a crescer.

VÂNIA MARIA LOSADA MOREIRA é doutora em História pela USP, professora na UFES e autora de "Os anos JK: industrialização e modelo oligárquico de desenvolvimento rural", em O Brasil republicano. O tempo da experiência democrática. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

Fonte: Revista Nossa História – Ano 2 - nº 23 - setembro 2005

Saiba mais - Bibliografia

BENEVIDES, Mana Victoria. O governo Kubitschek. Desenvolvimento econômico e estabilidade política. 3ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

DELGADO, Lucília de Almeida Neves. "Partidos políticos e frentes parlamentares: projetos, desafios e conflitos na democracia." In: FERREIRA, Jorge & DELGADO, Lucília de Almeida Neves (orgs.). O Brasil republicano. O tempo da experiência democrática. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 127-154. 

FARO Clóvis & SILVA, Salomão L. Quadros. "A década de 50 e o Programa de Metas." In: GOMES, Ângela de Castro (org.). O Brasil de JK. Rio de Janeiro: Editora da FGV / CPDOC, 1989, p. 44-70.

TOLEDO, Caio Navarro de. ISEB: fábrica de ideologias. 2a ed. São Paulo: Ática, 1982.

Saiba Mais: Link

A morte de JK. Fatos que levantam suspeitas.

Aprofundamento: Cultura Anos 50 e 60

sexta-feira, 13 de agosto de 2021

Tabu, crime ou direito?

Praticado clandestinamente por mais de 1 milhão de mulheres anualmente no Brasil, segundo estimativas, o aborto é combatido há séculos, dividindo a sociedade.

Joana Maria Pedro

               Em 1560, o padre José de Anchieta, em carta a seus superiores, acusava as mulheres "brasiles" de provocarem o aborto bebendo certas ervas, apertando a barriga ou "tomando carga grande", ou seja, carregando pesos excessivos. Como ele, outros cronistas escreveram espantados sobre as práticas abortivas das mulheres brasileiras, desde o período colonial. Falavam de chás abortivos, golpes aplicados no ventre, pulos de grande altura, grandes esforços, provocação de vômitos e diarreias, introdução de objetos pontiagudos no útero - como fusos de broca, broches de ferro (espeto para cozinhar alimentos), colheres e canivetes.

               Um espanto sem muita justificativa: o aborto é uma prática muito antiga e era bem frequente na Europa naquele período. Qualquer mulher que quisesse interromper a gravidez encontrava na vizinhança a informação desejada. Infusão de arruda, plantas como sabina e fungos como cravagem de centeio estavam sempre disponíveis. No final de 1800, por exemplo, cerca de cinquenta abortadeiras profissionais anunciavam seus serviços nos jornais de Paris. E as mulheres da classe trabalhadora inglesa usavam pílulas de chumbo ou recorriam a sangrias, banhos quentes e exercícios violentos para interromper a gravidez.

               A reação dos cronistas em relação ao Brasil talvez se devesse ao fato de, aqui, a prática ser abertamente divulgada, enquanto na Europa leis punitivas as tornaram secretas. Aqui, no século XIX, vendedores de arruda - erva abortiva - eram figuras comuns nas ruas das cidades, chegando a ser retratados por Debret.

               Nem é só no Ocidente que há essa tradição. No subcontinente indiano, o aborto é praticado com a inserção de um graveto, raiz, ou casca, no colo do útero. E na Tailândia, Malásia e Filipinas, parteiras especializadas fazem aborto através de massagens. Mas o que as práticas relatadas pelos cronistas no Brasil e aquelas da Europa e de outros lugares tinham, e ainda têm, em comum? Tornam a mulher tão doente que provocam a morte do feto ou de ambos.

               Condenado pela Igreja Católica nos dias de hoje, o aborto já foi permitido ou pelo menos tolerado pela própria Igreja: até o século XIX, considerava-se que a alma só passava a existir no feto masculino após quarenta dias da concepção, e no feminino depois de oitenta dias. Tolerava-se o aborto até a "entrada da alma".

               Os visitadores da Inquisição no Brasil e os manuais dos confessores desde o século XVI recomendavam que fossem feitas perguntas sobre os métodos abortivos das brasileiras: quem as ajudou, o que tomaram etc. Desde a Contrarreforma, a reação católica ao movimento protestante, a Igreja estava se empenhando em divulgar o casamento como sacramento. Condenavam, assim, o aborto, dizendo que era resultado de ligações extraconjugais.

               Em relação ao Estado, a condenação dependia, entre outras coisas, da possibilidade de identificar o aborto como voluntário ou provocado. Nas leis do reino português, que começaram a vigorar no Brasil em 1512 e foram mantidas até a Independência, já havia penalidade para as abortadeiras. O Império criou, em 1830, leis para sentenciar - com penas de prisão e trabalho forçado, por um a cinco anos - as pessoas que provocavam o aborto com o consentimento da gestante, mas sem qualquer punição para a própria mulher que abortasse voluntariamente. Já o Código Penal da República, de 1890, previa de um a cinco anos de reclusão para as gestantes, o que poderia ser reduzido a um terço se estivesse ocultando sua "desonra" - o filho de uma relação extraconjugal. O Código Penal de 1940, ainda vigente [2005], estabelece a detenção de um a três anos para a gestante, sem qualquer redução da pena.

               Em relação aos casos em que o aborto era permitido, os chamados "permissivos", o código de 1830 nada informava. Mas o de 1890 considerava aborto legal, ou necessário, aquele praticado para salvar a vida da gestante. Já o de 1940, em vigor, define como aborto necessário o que impede a morte da gestante ou a gravidez resultante de estupro. Este acréscimo nos permissivos foi motivado pelas preocupações com a degeneração da raça, tão presentes na primeira metade do século XX, quando acreditava-se que um homem que estuprasse uma mulher estaria gerando nela um filho que seria, certamente, criminoso.

               A maior dificuldade nos processos judiciais instaurados era comprovar a existência ou não de aborto voluntário. Era muito mais fácil condenar as abortadeiras. Mas a crescente participação dos conhecimentos médicos permitiu a punição das gestantes. Este saber, fornecido ao Judiciário pela Medicina, dependeu do conhecimento que, por volta do século XVIII, os médicos buscaram obter sobre o corpo feminino e a reprodução, promovendo a expulsão das parteiras dos espaços de poder, e transformando-as em auxiliares assalariadas dos médicos nos hospitais.

               Este conhecimento era anteriormente controlado pelas mulheres - e transmitido através de gerações. Observa-se, então, o crescimento do poder dos médicos na instauração dos inquéritos através dos Códigos: no do Império, o exame de corpo de delito podia ser realizado por boticários e outros profissionais, mas o Código da República exigia que os "peritos oficiais" fossem médicos.

               Várias inovações na Medicina Legal foram adotadas no Brasil, a partir de 1894. Novos métodos foram introduzidos, especialmente os exames químico-toxicológicos de aborto, em que a urina da acusada era injetada numa coelha - se houvesse alterações nos ovários do animal, o aborto estaria confirmado. Eles permitiram que a justiça identificasse a diferença entre aborto e infanticídio (assassinato do próprio filho) - confusão muito comum até o início do século XX. Além disso, permitiram saber se o aborto havia sido provocado e qual o tempo de gestação do feto.

               Mesmo com todo este aparato, poucas mulheres foram punidas por aborto voluntário. Quando acusadas, o escândalo as colocava em situação bastante difícil, com a presença da polícia na casa e depoimentos de parentes e vizinhos, servindo de exemplo para as moças da época. Acreditava-se que haviam recorrido ao aborto por estarem envolvidas em casos extraconjugais. E os homens que as engravidaram sequer eram citados.

               Embora fossem acusadas de relacionamentos sexuais fora do casamento, não é isso que se constata nas pesquisas. Mulheres casadas com vários filhos narram que tentavam e tentam, ainda hoje, apesar do aborto ser crime, impedir o crescimento da família já numerosa e sem condições de sobrevivência digna. Muitas delas narram suas experiências e citam "receitas" de como "fazer descer as regras", e lembram chás de diversas ervas: artemijo, cipó milone, maçanilha, rainha das ervas com noz-moscada e cachaça, cominho, feijão insosso, casca de romã. São "beberagens" que, em geral, causavam náuseas e provocariam, através do vômito e da diarreia, o adoecimento da mulher e, esperava-se, "a saída das regras". Estes métodos, entretanto, nem sempre são eficientes. Fazem parte de um conhecimento de longa tradição, que foi sendo perdido pelo mesmo processo que desqualificou a cura popular que as mulheres, em especial as parteiras, possuíam. Práticas anteriormente consideradas "coisas de mulher", transmitidas entre gerações, como parto, aborto e contracepção, tornaram-se parte do conhecimento médico. Assim, mesmo que muitas mulheres ainda hoje lembrem "receitas" para "fazer descer as regras", perdeu-se o conhecimento sobre a quantidade, a qualidade e a forma de fazer que transformavam o "veneno" em "remédio".

               O aborto, descriminalizado em países como Japão, EUA, Inglaterra, Alemanha, França e Itália, ainda é crime no Brasil [2005]. Mesmo assim, tem sido praticado de forma clandestina e insegura. Dados do ano 2000, pesquisados pela ONG norte-americana Instituto Alan Guttmacher, mostram que o total de abortos pode variar entre 750 mil e 1,4 milhão por ano, no Brasil. São realizados por mulheres pobres, sem recursos para ampliar a família, recorrendo a métodos que colocam a vida delas em risco. Muitas dessas mulheres engrossam as estatísticas de mortalidade no Brasil: o aborto clandestino e inseguro figura entre as principais causas de morte materna. Dados de 1998 da Rede Feminista de Saúde, a partir de números do SUS, informam que, no Brasil, morre, de complicações do aborto, uma mulher a cada três dias.

JOANA MARIA PEDRO é professora de História na Universidade Federal de Santa Catarina e organizadora do livro Práticas proibidas: práticas costumeiras de aborto e infanticídio no século XX, Florianópolis: Cidade Futura, 2003

Fonte: Revista Nossa História – Ano 2 - nº 17 - março 2005

Saiba mais - Bibliografia

PRIORE, Mary Del. Ao sul do corpo: condição feminina, maternidade e mentalidades no Brasil Colônia. Rio de Janeiro: José Olympio & Edunb, 1993.

RANKE-HEINEMANN, Uta. Eunucos pelo Remo de Deus: mulheres, sexualidade e a Igreja Católica. Trad. Paulo Froes. Rio de Janeiro: Record/Rosa dos Tempos, 1996.

 Saiba Mais: Link

Aborto: o grande tabu no Brasil

As perseguidas

Maria da Penha demora a sair do papel

Ficando para titia

Mulheres Invisíveis (2011)

O sexo a quem compete?

Pisando no "sexo frágil"

Ficando para titia

Tropas femininas em marcha

terça-feira, 10 de agosto de 2021

Cabra da peste!

Coronel, jagunço, cangaceiro. Criado para atender a interesses políticos regionais, o estereótipo do sertanejo machão não tem contribuído para a felicidade do homem nordestino.

Durval Muniz de Albuquerque Júnior

               A identidade regional nordestina nem sempre existiu. Ela surgiu historicamente há menos de um século, entre 1910 e 1930. A própria Região Nordeste, da qual é habitante e sujeito, só surgiu na geografia e na cultura brasileiras no início do século XX. Antes, a divisão regional do Brasil se resumia às Regiões Norte e Sul. Só em 1941, com a primeira divisão regional do país, definida pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, é que o Nordeste passa a figurar no mapa do Brasil. É por isso que, ainda hoje, grande parte dos moradores do Sudeste usa o termo Norte para designar os estados nordestinos, e o termo nortista para se referir aos migrantes que vêm desta área do país. Antes da emergência desta identidade regional, os habitantes desta área eram conhecidos através de diferentes designações, tais como nortistas, sertanejos, brejeiros, praieiros, retirantes, além da referência à província ou estado de origem (pernambucanos, baianos, paraibanos, cearenses etc).

               Em 1924, um grupo de intelectuais e líderes políticos encabeçados por Gilberto Freyre - entre outros Odilon Nestor, Amaury Medeiros, Alfredo Freyre, Luiz Cedro, Carlos Lyra, Aníbal Fernandes, Ulisses Pernambucano, Moraes Coutinho, Pedro Paranhos e Julio Bello - fundou, no Recife, o Centro Regionalista do Nordeste, com o objetivo, explicitado em seu estatuto, de promover o sentimento de unidade do Nordeste e de trabalhar em prol dos interesses da região em seus diversos aspectos econômicos, sociais e culturais. Em 1926, o Centro Regionalista promoveu a realização do Congresso Regionalista, que visava a se contrapor ao movimento modernista, marcado pela Semana de Arte Moderna, ocorrida quatro anos antes em São Paulo. Este era percebido como sendo a tentativa paulista de generalizar padrões culturais urbanos e estrangeiros para todo o país, completando, com a supremacia cultural, a sua hegemonia econômica e política. O regionalismo e tradicionalismo, como foi denominado por Freyre, em seu Manifesto regionalista de 1926, o movimento que encabeçava, visava, pois, dar ao Nordeste uma identidade, torná-lo mais do que um simples recorte político ou geográfico. A ideia era dotá-lo de uma memória, de uma história e um conteúdo cultural, definindo um modo de ser e uma estética - ou seja, uma identidade.

               O movimento contribuiu para que as elites políticas e econômicas desses estados, em processo de declínio econômico, se articulassem politicamente e passassem a agir de forma integrada, principalmente no Congresso Nacional. Tal articulação permitiu que, mesmo perdendo importância econômica em relação às Regiões Sul e Leste (depois Sudeste), as elites nordestinas conquistassem uma importância política sempre decisiva na montagem dos blocos políticos responsáveis pela sustentação dos governos federais, notadamente daqueles mais conservadores, como a ditadura Vargas, durante o Estado Novo, e o regime militar após 1964. Ao servirem de base de apoio para sucessivos governos, essas elites conquistaram recursos e benesses para suas áreas de atuação e benefícios privilegiados para suas atividades econômicas. Conseguiram do governo Vargas (1930-1945), por exemplo, a criação do DNOCS (Departamento Nacional de Obras Contra as Secas), do IAA (Instituto do Açúcar e do Álcool), da Sudene (Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste) e do Banco do Nordeste, no governo Juscelino Kubitscheck (1956-1961). O discurso regionalista nordestino continua, até hoje, aglutinando políticos e intelectuais das mais diferentes tendências políticas. Quando se fala em nome do Nordeste, o senso crítico parece desaparecer e, como vimos em episódio da década passada - a falência do Banco Econômico, apresentado como única instituição financeira privada do Nordeste -, sua salvação pelos cofres públicos da União foi defendida com irados e revoltados discursos por pessoas de tendências políticas tão díspares como Antônio Carlos Magalhães e Jorge Amado.

               É este Nordeste, ainda tão presente nos embates políticos atuais, e o seu habitante, o nordestino, que passam a ser definidos e caracterizados por uma série de textos, sejam políticos, jornalísticos, literários, sociológicos, históricos ou artísticos, a partir dos anos 20 do século passado. O nordestino vai ser descrito tendo como base um conjunto de imagens e de caracteres que são definidores dos tipos regionais anteriores, notadamente do sertanejo. Este, que vinha sendo caracterizado desde o século XIX, por autores como José de Alencar e Franklin Távora, em obras como O sertanejo (1876) e O Cabeleira (1876), encontrara em Euclides da Cunha e em seu Os sertões (1902) o formulador de um tipo inesquecível. Este seria o cerne de nossa nacionalidade, o verdadeiro brasileiro, esquecido pelo Estado e retardado no processo civilizatório pela desatenção dos homens do litoral, sempre voltados para Paris e Londres e encantados com as novidades europeias. O nordestino vai herdar do sertanejo de Euclides uma série de traços, mas, o mais importante deles, é sua coragem, seu destemor, sua valentia, sua virilidade, que o ajudava a enfrentar uma natureza e organização social tão inóspita e violenta. O nordestino vai ser apresentado em artigos de jornais, discursos parlamentares, obras literárias e sociológicas como um "cabra macho", um "cabra valente”, um "cabra da peste", que, mesmo entregue à sua própria sorte, esquecido às vezes até pelos céus, era capaz de resistir a tudo para não deixar a terra e a família, para defender a sua honra e a daqueles a quem servia.

               Analisando os discursos que foram formulando a identidade de nordestino, o que mais salta aos olhos é que esta figura é sempre pensada no masculino. Não há lugar para o feminino no Nordeste - até a mulher é "macho, sim senhor". Embora esta imagem da mulher-macho tenha sido consagrada pela música Paraíba (1958), composta por Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, encontramos referências de que a mulher nordestina seria uma virago, uma mulher masculinizada por exercer tarefas masculinas nas ausências do marido, provocadas pela migração e pela seca desde os anos 20. A própria imagem que as elites procuraram criar da região, como sendo seca e inóspita, vítima da natureza, para com esta imagem conseguir carrear recursos e conseguir investimentos e cargos públicos em suas áreas de domínio político, faz com que o nordestino seja sempre desenhado como este homem que precisa ser forte, rústico, resistente, quase um homem-cacto, para poder resistir a um ambiente que é sempre descrito como hostil. Até os personagens femininos da literatura regional costumam ganhar contornos masculinos, já que somente uma mulher-macho seria capaz de sobreviver em um ambiente árido e violento: veja os casos de Luzia Homem (Domingos Olímpio, 1903) ou de Maria Moura (Rachel de Queiroz, Memorial de Maria Moura, 1992).

               O nordestino seria o último dos machos, aquele homem que ficara protegido no sertão das mudanças que a cidade anunciava. Ele é assim caracterizado tanto na literatura sociológica, quanto no romance e artigos de jornais, a partir de figuras exemplares do ser masculino, como o coronel, o jagunço e o cangaceiro. O coronel é, ainda hoje, um mito do imaginário nacional. Há certa saudade dessa figura, talvez um desejo de ser coronel entre os homens brasileiros. Isto talvez explique o enorme sucesso de personagens como Ramiro Bastos do romance Gabriela, cravo e canela (1958), de Jorge Amado, e da novela da Rede Globo de Televisão, baseada neste romance, Gabriela (1975) e Odorico Paraguaçu, da novela O bem-amado (1973), de Dias Gomes. Este homem, dono de um poder sem limites, que casava, batizava, mandava soltar e prender, que tinha a seu dispor a vida de homens e a virgindade das mulheres, parece povoar os sonhos de muitos no país. Para este imaginário nacional, embora tenha havido relações baseadas no poder político e econômico dos grandes proprietários em todo o país, bem como bandidos sociais não faltem em outros estados, o Nordeste é visto como a região exclusiva dos coronéis e dos cangaceiros. Ainda hoje, é comum, na imprensa política, demonstrando uma grande falta de imaginação, chamar qualquer político tradicional do Nordeste de "coronel". Lampião passou de facínora, enquanto vivia, a herói regional, com direito a estátua e tudo na cidade de Serra Talhada (PE), depois que foi morto.

               O nordestino é uma figura que articula, portanto, uma identidade regional e uma identidade de gênero: ser nordestino é ser macho. Esta ênfase na masculinidade parece ser uma forma de compensar a crescente impotência econômica e política das elites deste espaço (proprietários de terra, senhores de engenho, comerciantes ligados às atividades de exportação, intelectuais e políticos que representam estes setores da sociedade), que viam sua importância econômica e política se reduzir desde o final do século XIX. Esta identidade vai surgir nos discursos das elites como uma forma destas se articularem política e culturalmente, e tentarem enfrentar em conjunto o processo de declínio que sofriam. A maior prova que esta identidade foi formulada pelas elites é o fato de que a literatura de cordel, que é a única manifestação escrita da cultura popular da região, só vai incorporar este termo muito tardiamente.

               O primeiro folheto de cordel a usar o termo "nordestino" para se referir ao habitante da região é de 1937 e este uso se generaliza apenas nos anos 50, talvez fruto da migração em massa para as grandes cidades do país, onde os homens pobres egressos da região se descobrem conterrâneos. A identidade de nordestino parece ser uma descoberta dolorosa para aqueles que migram e que diante das condições adversas que enfrentam - inclusive os preconceitos explicitados nos estereótipos do "baiano" e do "paraíba" - reforçam o mito do cabra macho, do cabra da peste, como forma de dar uma resposta a esta situação de subalternidade e de discriminação.

               É evidente que esta identidade se apoia em uma realidade de relações bastante desiguais entre o feminino e o masculino, mas ao mesmo tempo ela alimenta a continuidade do funcionamento de códigos de gênero, ou seja, aqueles códigos sociais, bastante arbitrários, que definem como deve ser o comportamento de homens e mulheres, como devemos ser masculinos e femininos. Alimentar o mito do "cabra macho" é contribuir para a permanência, inclusive, da violência contra as mulheres e, ao mesmo tempo, alimentar um modelo de masculinidade que tenta manter um tipo de relação entre homens e mulheres que viria desde o período colonial e que, por isso mesmo, é vista como natural, como eterna. Este modelo vitima os próprios homens, já que os coloca em constantes situações de risco, e deles exige renúncias afetivas e emocionais importantes, como a do exercício da paternidade e da expressão de sentimentos e emoções. Em outras palavras, a macheza nordestina faz os homens infelizes.

DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR é professor na Universidade Federal do Rio Grande do Norte e autor de Nordestino: uma invenção do "falo" - uma história do gênero masculino (Nordeste, 1920-1940). Maceió: Catavento, 2003.

Fonte: Revista Nossa História – Ano 2 - nº 17 - março 2005

Saiba mais - Bibliografia

FREYRE, Gilberto. Nordeste. 5. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1985.

MAINARDI, Diogo. Polígono das secas. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

NEVES, Frederico de Castro. Imagens do Nordeste. Fortaleza: Secult, 1994.

SILVEIRA, Rosa Maria Godoy. O regionalismo nordestino. São Paulo: Moderna, 1984.

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O guerreiro do sol

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O pecado original da República

O Legado do Império: governo oligárquico e aspirações democráticas

segunda-feira, 24 de maio de 2021

Escravos de escravos

Índios e negros lutaram séculos para se libertar no Brasil, mas eles próprios exerceram a escravidão antes da chegada dos portugueses e do tráfico negreiro na África.

Antonio Risério

          
     Quando se fala de escravidão no Brasil, o que costuma vir à cabeça das pessoas é um quadro bastante simples. O colonizador português desembarcou na orla marítima, escravizou inúmeros índios e, em seguida, passou a importar levas e mais levas de escravos africanos, que faziam a travessia atlânti­ca a bordo dos célebres navios negreiros. Além disso, todos sabem que, durante séculos, índios e negros lutaram bravamente para se libertar de seus senho­res. Como em Palmares e na Revolta dos Malês. O quadro não é falso. Mas, também, não é inteiramente verdadeiro. Ou, antes, não está completo.

               A prática da comercialização de negros começou, em Portugal, no século XV. Em 1444, o navegador Gil Eanes, que dez anos antes havia ultrapassado o Cabo Bojador, levou para lá uma carga de duzentos indivíduos, entre pretos retintos e outros algo clareados, pela mistura com sangue árabe ou berbere. A partir daí, cresceu o número de aventureiros envolvidos no transporte e na comercialização de sucessivos lotes de africanos escravizados.

               O comércio europeu de gente negra começou, portanto, antes da descoberta do Brasil, como uma espécie de subproduto da exploração marítima da costa ocidental africana pelos capitães que o infante d. Henrique despachava do seu promontório de Sagres. Mais ou menos por essa época, o infante iniciou a colonização das ilhas atlânticas que descobrira. O mo­delo colonizador aplicado na Madeira e nos Açores con­jugava monocultura açu­careira e mão-de-obra es­crava, sob a gerência de um capitão donatário - o primeiro deles, Gonçalo Velho Cabral, descobridor dos Açores, era tio-avô de Pedro Álvares Cabral.

               Antes disso, índios já vinham sendo reduzidos ao cativeiro. Quando as naus cabralinas fizeram escala na região de Porto Seguro, a caminho de Calicute, na índia, o escravismo já era coisa comum e antiga no Brasil. Entre os povos tupis, era uma prática ancestral, sacramentada pelos seus códigos de existência social. Os tupinambás conseguiam seus escravos, basica­mente, por dois expedientes: capturando adversários (objetivo principal de suas guerras incessantes) e aco­lhendo fugitivos. A escravização da massa indígena, pelos portugueses, assumiu caráter sistemático a par­tir do regime das capitanias hereditárias.  Isto é, quan­do a economia do escambo, a troca de pau-brasil por produtos europeus (de espelhos à utensilagem metá­lica), foi superada pela agricultura, os lusos intensifi­caram as atividades de captura e escravização de ín­dios. A mão-de-obra indígena se tornara vital para o sucesso do empreendimento colonizador. O próprio comércio de índios passou a ser um negócio lucrati­vo. Foi também nessa época que a visão lusitana do índio principiou a destoar, mais e mais, da aquarela traçada por Pero Vaz de Caminha.

               A escravidão existia na África des­de tempos imemoriais. Era uma rea­lidade institucional, não somente exercida na prática, mas sancionada pelas leis e pelos costumes. Nos impé­rios do Mali e do Gao, escravos esta­belecidos em colônias agrícolas cui­davam das grandes propriedades dos príncipes e dos ulemás, grupo islâmico da região de Gabu, oeste da África. Na primeira metade do século XV, o grão-vizir de Kano, localizada no Golfo do Benin (atualmente na Nigéria), fundou 21 cidades, instalando, em cada uma delas, mil escravos. Esses es­cravos, em toda a África, eram obtidos pelos mais di­versos meios, do sequestro à guerra dirigida especifi­camente para caçar e capturar gente, cativos que eram conduzidos a pé pelas estradas, amarrados uns aos outros pelo pescoço. Foi na África, de resto, onde a instituição escravista mais durou - e não no Brasil, como se costuma dizer - chegando até o século XX.

               Muito antes de europeus colocarem o pé no con­tinente africano, havia escravos no Reino do Congo. A estratificação social do reino, por sinal, era de uma nitidez absoluta. Havia a aristocracia, um seg­mento intermediário de homens livres e a massa escrava. A aristocracia formava uma casta, desde que seus membros eram impedidos de se casar com plebeus. A parte pesada dos trabalhos agrícolas re­caía, evidentemente, sobre os escravos.

                           Os nagôs ou iorubás - cujo território, a chamada Iorubalândia, apresentava notável grau de urbanização e apresentou ao mundo uma das mais belas e profun­das tradições esculturais do planeta, com a estatuária de Ifé - não ficavam atrás. Conheciam o comércio, a moe­da, a escravidão. Possuíam vasta escravaria, na verdade. E o escravo re­querido em sacrifício pelos orixás era degolado, enterrado vivo ou tinha os membros amputados.

               Quando os portugueses se instala­ram de vez no território brasileiro, a massa amerín­dia praticamente se dividiu entre aliados e inimigos. Não foram raros os índios livres que, em suas trocas com os lusitanos, negociaram índios que haviam capturado em suas expedições bélicas. Na verdade, a prática comercial lusa modificou a atitude amerín­dia perante a escravidão. Em Duas viagens ao Brasil, Hans Staden (que chegou, ele mesmo, a ser escravo dos índios) registra que, certa vez, quando os tupiniquins prenderam um lote inteiro de tupinambás, de­voraram apenas os mais velhos, vendendo os jovens aos portugueses. Antes desse comércio, tais jovens teriam sido escravizados e posteriormente submeti­dos ao ritual antropofágico. Vender tornara-se me­lhor do que comer.

               Os africanos não foram apenas envolvidos pelo tráfico de escravos. Eles também se envolveram ativamente no grande comércio transatlântico. Isto é: uns foram vítimas, outros foram agentes do tráfico. "Os negros começaram logo em África uma luta fratrici­da, incessante, bárbara, a fim de arrebanharem e fazerem prisioneiros, que vinham trazer aos negreiros", observou, já nos anos de 1860, o abolicionista brasi­leiro Agostinho Marques Perdigão Malheiro, em A escravidão no Brasil - Ensaio histórico, jurídico, social. Eram os próprios africanos que controlavam as fon­tes de fornecimento de escravos negros. Agiam como intermediários e traficantes, carreando corpos para as embarcações europeias. Vendiam seus "irmãos de cor", como hoje se costuma dizer.

               Portugal impôs um regime de exclusividade co­mercial à sua colônia ultramarina - isto é, o Brasil só podia negociar com Lisboa. Na prática, esse ex­clusivismo nunca vingou de forma absoluta. A Bahia não vivia unicamente em função da metró­pole, no plano das trocas internacionais. O comér­cio de escravos foi um exemplo definitivo disso. Apesar de reverências oficiais à Coroa lusitana, o tráfico foi, principalmente a partir do século XVIII, um negócio bilateral que, envolvendo africanos e baianos, passava muitas vezes ao largo de Lisboa. Era uma atividade comercial que, em alguns mo­mentos, mediu forças com o poder lisboeta, espe­cialmente depois que a Inglaterra entrou no jogo para dar um basta ao negócio.

               Não se presta maior atenção a esse fato. Mas foi um fato - e não se deve perdê-lo de vista. Nos séculos XVIII e XIX, o tráfico foi uma relação direta entre baianos e africanos (assim como entre cariocas e angolanos), vinculando, particularmente, a cidade da Bahia e o Reino do Daomé. Era uma relação altamente lucrativa para ambas as partes. A Bahia comprava os escravos porque necessitava deles para funcionar. E o tráfico, em si mesmo, era um grande negócio, exigin­do investimentos pesados e gerando lucros imensos.

               O papel da África, no comércio de negros escravi­zados, nada teve de passivo. A parceria da Bahia e do Daomé é exemplo irrefutável do nexo orgânico que conectava as duas margens do Atlântico Sul. Em seu livro Em costas negras - Uma história do tráfico de es­cravos entre a África e o Rio de Janeiro, o historiador Manolo Florentino diz que "ao consumo do escravo [no Brasil] precedia um movimento típico da face africana do tráfico, o da produção social do cativo". O problema é que - por manipulação política, truque, cegueira ou estrabismo ideológico - se construiu, no mundo ocidental oitocentista e na África do século XX, a fantasia de que os negros, seres essencialmente bons, haviam caído, desde o século XV, nas garras cruéis dos brancos, seres essencialmente maus. A África conheceu a guerra, a estratificação social, a es­cravidão, a moeda e a tortura muito antes de os eu­ropeus aparecerem por lá. Em verdade, achar que não havia exploração do homem pelo homem na África, antes da chegada dos europeus, é considerar que os africanos eram seres inferiores.

                              Na África, o tráfico gerou riquezas, incrementou divisões sociais preexistentes, consolidou formações estatais. Os reis do antigo Daomé e a classe domi­nante dos grupos nagôs ou iorubás disputaram en­tre si o monopólio da exportação de escravos para o Brasil, despachando até diversas embaixadas oficiais à Bahia e a Portugal para tratar do assunto. Em Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o Golfo do Benin e a Bahia de Todos os Santos, Pierre Verger, pioneiro da chamada "antropologia visual", informa que, de 1750 a 1811, foram enviadas à Bahia pelo menos quatro embaixadas do Daomé, duas de Onim (Lagos, Nigéria) e uma de Ardra (Porto Novo, Daomé). Seu objetivo, de um modo geral, era estreitar rela­ções comerciais com o Brasil.

               Por ocasião da embaixada daomeana de 1750, os enviados do rei Tegbessu presentearam o conde de Atouguia, então vice-rei do Brasil, com uma caixa de panos-da-costa e quatro negras, três das quais foram parar em Lisboa, servindo no quarto da rainha de Portugal (a quarta ne­gra ficara cega ao desembarcar em Salvador). Adiante, os dois embaixadores daomeanos de 1795, remetidos pelo rei Agonglô, deixaram os seus aposentos no Convento de São Francisco de Assis, onde estavam hospedados, para, em audiên­cia oficial, propor ao governador da Bahia, Fer­nando José de Portugal, a exclusividade do comér­cio de escravos em Uidá. O governador rejeitou a proposta do comércio privativo Bahia/Uidá, alegan­do que tal monopólio prejudicaria interesses baia­nos. Em 1805, por iniciativa do rei Adandozan, os daomeanos (aqui, chamados "jejes") voltaram a in­sistir, sem êxito, na pretensão do comércio exclusi­vo. Ou seja: assim como índios escravizavam e ven­diam índios, negros escravizavam e vendiam ne­gros. E queriam lucros cada vez maiores.

               É evidente que o objetivo das revoltas escravas no Brasil era se livrar do sistema econômico e social da escravidão. Mas - e isto é que é da mais funda im­portância - sempre em termos restritos, singulares. O sujeito não queria de modo algum ser escravizado por alguém, mas jamais hesitaria em fazer de alguém escravo seu. Triste ou lamentável, esta era a realida­de. Foi o que predominou no Brasil, pelo menos até à primeira metade do século XIX, quando começou a ganhar corpo o movimento abolicionista.

               Havia escravos até em Palmares. Os palmarinos li­bertários não abriram mão de contar com os seus próprios cativos. A documentação disponível fala da existência de homens que, sequestrados em investidas de guerrilheiros palmarinos, eram levados para os ar­raiais rebeldes, passando a trabalhar como escravos nas plantações. Nenhuma surpresa no fato, ao contrá­rio do que podem pensar aqueles que ainda cultivam o mito de que um Estado Negro Ideal se teria forma­do, no século XVII, em terras alagoanas.  Ganga Zumba e Zumbi vinham de áreas congo-angolanas onde o regime de trabalho escravo era uma institui­ção antiga, aceita social e culturalmente. E quanto mais as atividades agrícolas se foram desenvolvendo em Palmares, mais o escravismo se enraizou naquela "república".

               Num universo de povos que ad­mitiam com tranquilidade a existên­cia de escravos, o desejo índio e negro de reduzir brancos ou mulatos ao cativeiro foi intenso e comum na his­tória brasileira. Na hoje célebre Santidade de Jaguaripe - estudada por Ronaldo Vainfas em A heresia dos índios: catolicismo e rebeldia no Brasil colonial -, o projeto era escravizar ou mesmo eliminar os brancos. Para sair do meio rural e dar um exemplo urbano, os negros malês, muçulmanos vindos de diversas regiões da África, que se insurgiram violentamente contra a ordem estabelecida, em 1835, que­riam alcançar a sua libertação do regime, mas não destruí-lo. A escravidão estava ins­crita em seu projeto de instalação de um "califado" na Bahia do século XIX.

               Palmares e a revolta dos malês ja­mais incluíram, em suas práticas ou em seus programas, a abolição da escravidão. Se o pequeno bando nômade de cinco ou seis quilombolas podia contentar-se com assaltos e roubos, pilhando fazendas de gado ou plantações, a ins­tituição de um macroquilombo significava outra coisa. E pedia escravos para tocar o seu dia-a-dia.

              Quando um africano ou descendente de africano conseguia a alforria, no Brasil, uma das suas primei­ras providências era comprar ou tentar comprar es­cravos. É impressionante o número de negros forros que possuíam cativos, como demonstram, irrefuta­velmente, as pesquisas documentais sobre a matéria. Os arquivos da Bahia estão cheios de exemplos, co­mo mostram as pesquisas de historiadoras como Kátia Mattoso e Maria Inês Cortes de Oliveira. Havia muitos testamentos em que escravos aparecem arro­lados entre as propriedades de negros alforriados. Mas não era exclusividade baiana. Era coisa corri­queira em todos os cantos e recantos da colônia, de Pernambuco a São Paulo, de Minas Gerais ao Rio de Janeiro. E continuou sendo na nação independente até quase às últimas décadas do século XIX, quando, finalmente, o regime escravista caiu por terra.

               Em A vida dos escravos no Rio de Janeiro -1808-1850, Mary Karasch registrou: "Alguns tinham até propriedades, inclusive outros escravos." Depois de observar que "os africanos libertos que compravam escravas estavam indiscutivelmente perpetuando uma forma africana no Rio", a estudiosa prossegue: "Uma vez que a posse era um fator determinante tão essencial da posição de uma pessoa no Rio do século XIX, os es­cravos buscavam ser donos de escravos... Eles compra­vam muitas vezes outros para ajudá-los a obter sua própria liberdade, ou para trocá-los pela sua pessoa."

               A Inconfidência Mineira foi uma conjuração de proprietários de escravos. "Cafre vil" é como Cláudio Manuel da Costa classifica o quilombola. Pouco antes de ser preso, Tiradentes vendera um mulato que era sua propriedade. O primeiro brado contra a escravidão só foi ouvido em 1798, com a chamada Revolução dos Alfaiates ou Conspiração dos Búzios, na Bahia. Mas a maré abolicionista ain­da tardou. O fato de todos terem sido proprietários, durante tanto tempo, teve repercussão profunda na vida nacional, com desdobramentos que ainda hoje marcam o cotidiano. Não deixa de ser ainda forte entrave à conquista da cidadania plena no Brasil.

Antonio Risério é antropólogo, poeta, ensaísta e historiador.

Fonte: Revista Nossa História - Ano I nº 04 – Fevereiro/2004

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O poder das letras - Medo de alfabetização

A face negra da Abolição

Especial - Abolição da Escravatura 13-05-1888

Indústrias na colônia, não.

               "Para preservar Portugal, o rei precisa da riqueza do Brasil mais que da do próprio Portugal." Estas palavras, escritas em 1738 por d. Luís da Cunha - um dos mais célebres ministros portugueses -, revelam uma estranha situação: sem o Brasil, Portugal não sobreviveria diante das acirradas disputas entre as potências. A afirmação profética de d. Luís da Cunha serve de inspiração à apreciação do Alvará de 5 de janeiro de 1785, que proibia a instalação de manufaturas de tecidos no Brasil.

          Na época do Iluminismo, Portugal desperta para a urgência de mudar a forma de lidar com sua colônia na América. Das novas ideias aproveita a teoria da fisiocracia que via na agricultura a principal fonte de riqueza de uma nação. O Brasil recebeu várias determinações baseadas nestas doutrinas, o que resultou em um aumento da exportação de produtos tradicionais como o açúcar, e de novos, como o algodão. Na mesma proporção, atiçava a cobiça de rivais europeus, como a Inglaterra, que via no mercado colonial a garantia de escoamento de sua produção têxtil.

          Lido de modo superficial, o Alvará parece uma manifestação da política mercantilista, no sentido da manutenção do monopólio comercial. Mas, colocando uma lupa sobre o texto enxerga-se bem mais do que uma atitude opressiva: ele revela os dilemas enfrentados pela Coroa para a conservação de seus domínios de além-mar, especialmente necessários numa época em que estouravam crises e revoltas nas colônias americanas.

          Com isso entende-se como se apresenta dividido seu conteúdo. Na primeira, constata-se que no Brasil se difundiam muitas fábricas com "grave prejuízo [...] da lavoura" e "das terras minerais"; na segunda, vários argumentos justificam a atitude proibitiva que só apareceria na terceira parte: sendo as "produções da terra" a "verdadeira e sólida riqueza" base do comércio entre o reino e a colônia - era lícito que todas as "fábricas, manufaturas ou teares" fossem "extintas" do Brasil.

          O diagnóstico desse "surto" manufatureiro derivou, segundo o historiador Fernando Novais, de informações enviadas da colônia, mas, sobretudo, dos prejuízos verificados nas alfândegas portuguesas, como a diminuição da exportação de tecidos para o Brasil. Estes danos também eram sentidos na redução da extração de ouro e diamantes, e na consequente queda da arrecadação dos quintos. Os efeitos mais negativos à economia portuguesa estão, contudo, nas entrelinhas do Alvará: o intenso contrabando praticado nos portos coloniais, que, mais do que as manufaturas, ameaçava a estabilidade da economia portuguesa.

          Qual terá sido o impacto efetivo do Alvará na economia de todo o Brasil? Modestos 13 teares, no Rio de Janeiro, utilizados na produção artesanal de tecidos. Nas outras capitanias, a situação não foi diferente: em Minas, o governador constrangido diz que ali não tinha "notícias de fábricas de qualidade alguma", apenas teares de tecidos grossos para o vestuário dos escravos, permitidos no documento. Comumente considerado um golpe à economia colonial, o Alvará refletia, na verdade, o precário conhecimento que a metrópole possuía da realidade colonial. Além disso, o Brasil não possuía condições de competir com a produção têxtil europeia, considerando sua estrutura social escravista e seu reduzido mercado interno. Seu aspecto contraditório era o espelho das dificuldades dos dirigentes portugueses em administrar, por um lado, os interesses comerciais das potências europeias, mantendo, por outro, os laços que uniam Portugal e Brasil. Uma cópia do Alvará de 5 de janeiro de 1785 pode ser consultada na Divisão de Manuscritos da Biblioteca Nacional.

Fonte: Revista Nossa História - Ano 1 nº 12 - outubro 2004