Índios e negros lutaram
séculos para se libertar no Brasil, mas eles próprios exerceram a escravidão
antes da chegada dos portugueses e do tráfico negreiro na África.
Antonio Risério
Quando se fala de
escravidão no Brasil, o que costuma vir à cabeça das pessoas é um quadro
bastante simples. O colonizador português desembarcou na orla marítima,
escravizou inúmeros índios e, em seguida, passou a importar levas e mais levas
de escravos africanos, que faziam a travessia atlântica a bordo dos célebres
navios negreiros. Além disso, todos sabem que, durante séculos, índios e negros
lutaram bravamente para se libertar de seus senhores. Como em Palmares e na
Revolta dos Malês. O quadro não é falso. Mas, também, não é inteiramente
verdadeiro. Ou, antes, não está completo.
A prática da comercialização de negros
começou, em Portugal, no século XV. Em 1444, o navegador Gil Eanes, que dez
anos antes havia ultrapassado o Cabo Bojador, levou para lá uma carga de duzentos
indivíduos, entre pretos retintos e outros algo clareados, pela mistura com
sangue árabe ou berbere. A partir daí, cresceu o número de aventureiros
envolvidos no transporte e na comercialização de sucessivos lotes de africanos
escravizados.
O comércio europeu de gente negra
começou, portanto, antes da descoberta do Brasil, como uma espécie de
subproduto da exploração marítima da costa ocidental africana pelos capitães
que o infante d. Henrique despachava do seu promontório de Sagres. Mais ou menos
por essa época, o infante iniciou a colonização das ilhas atlânticas que
descobrira. O modelo colonizador aplicado na Madeira e nos Açores conjugava
monocultura açucareira e mão-de-obra escrava, sob a gerência de um capitão
donatário - o primeiro deles, Gonçalo Velho Cabral, descobridor dos Açores, era
tio-avô de Pedro Álvares Cabral.
Antes disso, índios já vinham sendo
reduzidos ao cativeiro. Quando as naus cabralinas fizeram escala na região de
Porto Seguro, a caminho de Calicute, na índia, o escravismo já era coisa comum
e antiga no Brasil. Entre os povos tupis, era uma prática ancestral,
sacramentada pelos seus códigos de existência social. Os tupinambás conseguiam
seus escravos, basicamente, por dois expedientes: capturando adversários (objetivo
principal de suas guerras incessantes) e acolhendo fugitivos. A escravização
da massa indígena, pelos portugueses, assumiu caráter sistemático a partir do
regime das capitanias hereditárias. Isto
é, quando a economia do escambo, a troca de pau-brasil por produtos europeus
(de espelhos à utensilagem metálica), foi superada pela agricultura, os lusos
intensificaram as atividades de captura e escravização de índios. A
mão-de-obra indígena se tornara vital para o sucesso do empreendimento colonizador.
O próprio comércio de índios passou a ser um negócio lucrativo. Foi também
nessa época que a visão lusitana do índio principiou a destoar, mais e mais, da
aquarela traçada por Pero Vaz de
Caminha.
A escravidão existia na África desde
tempos imemoriais. Era uma realidade institucional, não somente exercida na
prática, mas sancionada pelas leis e pelos costumes. Nos impérios do Mali e do
Gao, escravos estabelecidos em colônias agrícolas cuidavam das grandes
propriedades dos príncipes e dos ulemás, grupo islâmico da região de Gabu,
oeste da África. Na primeira metade do século XV, o grão-vizir de Kano,
localizada no Golfo do Benin (atualmente na Nigéria), fundou 21 cidades,
instalando, em cada uma delas, mil escravos. Esses escravos, em toda a África,
eram obtidos pelos mais diversos meios, do sequestro à guerra dirigida
especificamente para caçar e capturar gente, cativos que eram conduzidos a pé
pelas estradas, amarrados uns aos outros pelo pescoço. Foi na África, de resto,
onde a instituição escravista mais durou - e não no Brasil, como se costuma
dizer - chegando até o século XX.
Muito antes de europeus colocarem o
pé no continente africano, havia escravos no Reino do Congo. A estratificação
social do reino, por sinal, era de uma nitidez absoluta. Havia a aristocracia,
um segmento intermediário de homens livres e a massa escrava. A aristocracia
formava uma casta, desde que seus membros eram impedidos de se casar com
plebeus. A parte pesada dos trabalhos agrícolas recaía, evidentemente, sobre
os escravos.
Os nagôs ou iorubás - cujo território, a
chamada Iorubalândia, apresentava notável grau de urbanização e apresentou ao
mundo uma das mais belas e profundas tradições esculturais do planeta, com a
estatuária de Ifé - não ficavam atrás. Conheciam o comércio, a moeda, a
escravidão. Possuíam vasta escravaria, na verdade. E o escravo requerido em
sacrifício pelos orixás era degolado, enterrado vivo ou tinha os membros
amputados.
Quando os portugueses se instalaram
de vez no território brasileiro, a massa ameríndia praticamente se dividiu
entre aliados e inimigos. Não foram raros os índios livres que, em suas trocas
com os lusitanos, negociaram índios que haviam capturado em suas expedições
bélicas. Na verdade, a prática comercial lusa modificou a atitude ameríndia
perante a escravidão. Em Duas viagens ao Brasil, Hans Staden (que
chegou, ele mesmo, a ser escravo dos índios) registra que, certa vez, quando os
tupiniquins prenderam um lote inteiro de tupinambás, devoraram apenas os mais
velhos, vendendo os jovens aos portugueses. Antes desse comércio, tais jovens
teriam sido escravizados e posteriormente submetidos ao ritual antropofágico.
Vender tornara-se melhor do que comer.
Os africanos não foram apenas envolvidos pelo
tráfico de escravos. Eles também se envolveram ativamente no grande comércio
transatlântico. Isto é: uns foram vítimas, outros foram agentes do tráfico.
"Os negros começaram logo em África uma luta fratricida, incessante, bárbara,
a fim de arrebanharem e fazerem prisioneiros, que vinham trazer aos
negreiros", observou, já nos anos de 1860, o abolicionista brasileiro
Agostinho Marques Perdigão Malheiro, em A escravidão no Brasil - Ensaio
histórico, jurídico, social. Eram os próprios africanos que controlavam as
fontes de fornecimento de escravos negros. Agiam como intermediários e
traficantes, carreando corpos para as embarcações europeias. Vendiam seus
"irmãos de cor", como hoje se costuma dizer.
Portugal impôs um regime de exclusividade
comercial à sua colônia ultramarina - isto é, o Brasil só podia negociar com
Lisboa. Na prática, esse exclusivismo nunca vingou de forma absoluta. A Bahia
não vivia unicamente em função da metrópole, no plano das trocas
internacionais. O comércio de escravos foi um exemplo definitivo disso. Apesar
de reverências oficiais à Coroa lusitana, o tráfico foi, principalmente a
partir do século XVIII, um negócio bilateral que, envolvendo africanos e
baianos, passava muitas vezes ao largo de Lisboa. Era uma atividade comercial
que, em alguns momentos, mediu forças com o poder lisboeta, especialmente
depois que a Inglaterra entrou no jogo para dar um basta ao negócio.
Não se presta maior atenção a esse
fato. Mas foi um fato - e não se deve perdê-lo de vista. Nos séculos XVIII e
XIX, o tráfico foi uma relação direta entre baianos e africanos (assim como
entre cariocas e angolanos), vinculando, particularmente, a cidade da Bahia e o
Reino do Daomé. Era uma relação altamente lucrativa para ambas as partes. A
Bahia comprava os escravos porque necessitava deles para funcionar. E o
tráfico, em si mesmo, era um grande negócio, exigindo investimentos pesados e
gerando lucros imensos.
O papel da África, no comércio de
negros escravizados, nada teve de passivo. A parceria da Bahia e do Daomé é
exemplo irrefutável do nexo orgânico que conectava as duas margens do Atlântico
Sul. Em seu livro Em costas negras - Uma história do tráfico de escravos
entre a África e o Rio de Janeiro, o historiador Manolo Florentino diz que
"ao consumo do escravo [no Brasil] precedia um movimento típico da face
africana do tráfico, o da produção social do cativo". O problema é que -
por manipulação política, truque, cegueira ou estrabismo ideológico - se
construiu, no mundo ocidental oitocentista e na África do século XX, a fantasia
de que os negros, seres essencialmente bons, haviam caído, desde o século XV,
nas garras cruéis dos brancos, seres essencialmente maus. A África conheceu a
guerra, a estratificação social, a escravidão, a moeda e a tortura muito antes
de os europeus aparecerem por lá. Em verdade, achar que não havia exploração do homem pelo homem na África, antes da chegada dos europeus,
é considerar que os africanos eram seres inferiores.
Na África, o tráfico gerou riquezas,
incrementou divisões sociais preexistentes, consolidou formações estatais. Os
reis do antigo Daomé e a classe dominante dos grupos nagôs ou iorubás
disputaram entre si o monopólio da exportação de escravos para o Brasil,
despachando até diversas embaixadas oficiais à Bahia e a Portugal para tratar
do assunto. Em Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o Golfo do Benin
e a Bahia de Todos os Santos, Pierre Verger, pioneiro da chamada
"antropologia visual", informa que, de 1750 a 1811, foram enviadas à
Bahia pelo menos quatro embaixadas do Daomé, duas de Onim (Lagos, Nigéria) e
uma de Ardra (Porto Novo, Daomé). Seu objetivo, de um modo geral, era estreitar
relações comerciais com o Brasil.
Por ocasião da embaixada daomeana de
1750, os enviados do rei Tegbessu presentearam o conde de Atouguia, então
vice-rei do Brasil, com uma caixa de panos-da-costa e quatro negras, três das
quais foram parar em Lisboa, servindo no quarto da rainha de Portugal (a quarta
negra ficara cega ao desembarcar em Salvador). Adiante, os dois embaixadores
daomeanos de 1795, remetidos pelo rei Agonglô, deixaram os seus aposentos no
Convento de São Francisco de Assis, onde estavam hospedados, para, em audiência
oficial, propor ao governador da Bahia, Fernando José de Portugal, a
exclusividade do comércio de escravos em Uidá. O governador rejeitou a
proposta do comércio privativo Bahia/Uidá, alegando que tal monopólio
prejudicaria interesses baianos. Em 1805, por iniciativa do rei Adandozan, os
daomeanos (aqui, chamados "jejes") voltaram a insistir, sem êxito,
na pretensão do comércio exclusivo. Ou seja: assim como índios escravizavam e
vendiam índios, negros escravizavam e vendiam negros. E queriam lucros cada
vez maiores.
É evidente que o objetivo das revoltas
escravas no Brasil era se livrar do sistema econômico e social da escravidão.
Mas - e isto é que é da mais funda importância - sempre em termos restritos,
singulares. O sujeito não queria de modo algum ser escravizado por alguém, mas
jamais hesitaria em fazer de alguém escravo seu. Triste ou lamentável, esta era
a realidade. Foi o que predominou no Brasil, pelo menos até à primeira metade
do século XIX, quando começou a ganhar corpo o movimento abolicionista.
Havia escravos até em Palmares. Os
palmarinos libertários não abriram mão de contar com os seus próprios cativos.
A documentação disponível fala da existência de homens que, sequestrados em
investidas de guerrilheiros palmarinos, eram levados para os arraiais
rebeldes, passando a trabalhar como escravos nas plantações. Nenhuma surpresa
no fato, ao contrário do que podem pensar aqueles que ainda cultivam o mito de
que um Estado Negro Ideal se teria formado, no século XVII, em terras
alagoanas. Ganga Zumba e Zumbi vinham de
áreas congo-angolanas onde o regime de trabalho escravo era uma instituição
antiga, aceita social e culturalmente. E quanto mais as atividades agrícolas se
foram desenvolvendo em Palmares, mais o escravismo se enraizou naquela
"república".
Num universo de povos que admitiam
com tranquilidade a existência de escravos, o desejo índio e negro de reduzir
brancos ou mulatos ao cativeiro foi intenso e comum na história brasileira. Na
hoje célebre Santidade de Jaguaripe - estudada por Ronaldo Vainfas em A
heresia dos índios: catolicismo e rebeldia no Brasil colonial -, o projeto
era escravizar ou mesmo eliminar os brancos. Para sair do meio rural e dar um
exemplo urbano, os negros malês, muçulmanos vindos de diversas regiões da
África, que se insurgiram violentamente contra a ordem estabelecida, em 1835,
queriam alcançar a sua libertação do regime, mas não destruí-lo. A
escravidão estava inscrita em seu projeto de instalação de um
"califado" na Bahia do século XIX.
Palmares e a revolta dos malês jamais
incluíram, em suas práticas ou em seus programas, a abolição da escravidão. Se
o pequeno bando nômade de cinco ou seis quilombolas podia contentar-se com assaltos
e roubos, pilhando fazendas de gado ou plantações, a instituição de um
macroquilombo significava outra coisa. E pedia escravos para tocar o seu
dia-a-dia.
Quando um africano ou descendente
de africano conseguia a alforria, no Brasil, uma das suas primeiras
providências era comprar ou tentar comprar escravos. É impressionante o número
de negros forros que possuíam cativos, como demonstram, irrefutavelmente, as
pesquisas documentais sobre a matéria. Os arquivos da Bahia estão cheios de
exemplos, como mostram as pesquisas de historiadoras como Kátia Mattoso e
Maria Inês Cortes de Oliveira. Havia muitos testamentos em que escravos
aparecem arrolados entre as propriedades de negros alforriados. Mas não era
exclusividade baiana. Era coisa corriqueira em todos os cantos e recantos da
colônia, de Pernambuco a São Paulo, de Minas Gerais ao Rio de Janeiro. E
continuou sendo na nação independente até quase às últimas décadas do século
XIX, quando, finalmente, o regime escravista caiu por terra.
Em A vida dos escravos no Rio de Janeiro
-1808-1850, Mary Karasch registrou: "Alguns tinham até propriedades,
inclusive outros escravos." Depois de observar que "os africanos
libertos que compravam escravas estavam indiscutivelmente perpetuando uma forma
africana no Rio", a estudiosa prossegue: "Uma vez que a posse era um
fator determinante tão essencial da posição de uma pessoa no Rio do século XIX,
os escravos buscavam ser donos de escravos... Eles compravam muitas vezes
outros para ajudá-los a obter sua própria liberdade, ou para trocá-los pela sua
pessoa."
A Inconfidência Mineira foi uma
conjuração de proprietários de escravos. "Cafre vil" é como Cláudio
Manuel da Costa classifica o quilombola. Pouco antes de ser preso, Tiradentes
vendera um mulato que era sua propriedade. O primeiro brado contra a escravidão
só foi ouvido em 1798, com a chamada Revolução dos Alfaiates ou Conspiração dos
Búzios, na Bahia. Mas a maré abolicionista ainda tardou. O fato de todos terem
sido proprietários, durante tanto tempo, teve repercussão profunda na vida
nacional, com desdobramentos que ainda hoje marcam o cotidiano. Não deixa de
ser ainda forte entrave à conquista da cidadania plena no Brasil.
Antonio Risério é antropólogo, poeta, ensaísta e historiador.
Fonte: Revista
Nossa História - Ano I nº 04 – Fevereiro/2004
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