“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

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segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Além da Era Vargas - Ecos de Getúlio

Seis décadas após sua morte, as contradições do ditador e líder trabalhista continuam pautando a política nacional.
     Alguns indivíduos ultrapassam o limitado tempo das suas vidas e perpetuam-se como mitos, capazes de inspirar gerações futuras, transformar perspectivas sobre o passado e representar as questões de um povo, época ou país. Na trajetória brasileira, Getúlio Vargas é, talvez, a mais significativa expressão desse fenômeno. A frase “Saio da vida para entrar na História”, que encerra sua “carta-testamento”, funcionou como profecia autorrealizada: continuou ecoando por todos os lados e para muito além dos tempos de sua morte, quando os principais protagonistas da cena política ainda podiam ser divididos entre seguidores e adversários do varguismo.
     A longa ditadura militar iniciada em 1964 por um golpe contra seu principal herdeiro político, João Goulart, não foi capaz de apagar o legado do gaúcho de São Borja, que teve parte do seu espólio arduamente disputado após a redemocratização – a começar pela férrea disputa que travaram Leonel Brizola e Ivete Vargas, filha de Getúlio, para ficar com a sigla PTB, partido criado em 1945 sob direta ingerência do presidente.       As décadas se passam, e as marcas deixadas pelas ações e pelo personagem político de Vargas continuam evidentes. Críticas a seu legado permearam a formação dos dois principais partidos brasileiros contemporâneos, o Partido dos Trabalhadores (PT) e o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB). Fundado com a missão de renovar a esquerda nacional, o PT tinha na tradição trabalhista do varguismo um dos principais oponentes em seus primeiros anos. Lula, futuro presidente do Brasil e o mais destacado líder operário da época, por inúmeras vezes em discursos no fim dos anos 1970 desqualificou a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) – talvez a maior realização varguista no campo dos direitos – tachando-a de “AI-5 dos trabalhadores”, em referência ao Ato Institucional mais repressivo do período da ditadura.
     Anos mais tarde, em 1995, no discurso que antecedeu sua posse, Fernando Henrique Cardoso, do PSDB, elegeu o “Fim da Era Vargas” como maior objetivo do mandato. A afirmação do reformismo neoliberal, que marcou o governo do sociólogo paulista e alastrou-se por quase toda a América Latina, passava necessariamente pela desconstrução da obra varguista em terras brasileiras. E, uma vez no governo, o PT muda seu discurso. Se antes era crítico do trabalhismo e entusiasta de um “novo sindicalismo”, passou a reivindicar a herança varguista e a associar o PSDB aos críticos liberais de Getúlio (em seu tempo, concentrados na União Democrática Nacional, a UDN). 
     Grande parte dessa longevidade de Vargas no cenário político nacional se deve à ambiguidade de sua trajetória. No mesmo corpo, conviveram o presidente dos direitos trabalhistas e aquele que reprimiu duramente trabalhadores ao longo do Estado Novo. Revolucionário em 1930, ditador em 1937 e líder democrático de massas com plataforma de esquerda em 1950, o mesmo nome parece denominar muitos personagens, o que permite uma ampla variedade de apropriações. Não faz sentido falar em apenas uma linhagem varguista, mas sim em múltiplas tradições. 
     Podem existir afinidades entre linhagens diferentes como o trabalhismo e o autoritarismo, e elas próprias são diversas em seu interior. Essa demarcação de tradições também não se explica apenas por critérios cronológicos, como o de um varguismo antes e outro depois do Estado Novo – pois vertentes positivas como a dos direitos trabalhistas podem conviver em épocas de feições gerais terríveis. O próprio Vargas foi o ponto de encontro de antigas e arraigadas tradições políticas brasileiras, como o positivismo castilhista – linhagem organizada em torno de Júlio de Castilhos e seus seguidores, com forte presença no Rio de Grande do Sul – e o iberismo, que apostava no Estado como protagonista na organização da vida nacional, em razão da relativa desorganização da sociedade. 
     As recusas ou as adesões ao varguismo podem abrigar, portanto, distintas crenças e práticas políticas no largo e indeterminado terreno das definições pela negação. Simplesmente porque tudo vai depender do varguismo contra o qual se luta ou ao qual se adere. A recusa ao Vargas da CLT não implica a oposição ao ditador do Estado Novo. O elogio ao Vargas nacionalista não leva necessariamente à simpatia pelo ferrenho anticomunismo do ditador.
     O lugar de Vargas na política nacional sofre releituras e comparações periódicas, de acordo com o momento que o país atravessa. O Estado Novo (1937-1945), por exemplo, sempre perdurou como paradigma de regime autoritário e centralizador no Brasil, mas ao longo do tempo ganhou outros qualificativos. Logo após o golpe de 1964, Tancredo Neves chamou a ditadura recém-instaurada de “Estado Novo da UDN”, ironizando os liberais que criticaram o Vargas autoritário e acabaram apoiando outro golpe. Quando chega ao fim esse regime de exceção, Raymundo Faoro retorna à metáfora e acena para o possível surgimento de um “Estado Novo do PMDB”, numa crítica às escolhas do rebento do partido de oposição à ditadura, o MDB. E o termo continua válido nos anos 2000, utilizado por Luiz Werneck Vianna numa referência ao estatismo e à centralização do primeiro governo petista, que batiza de “Estado Novo do PT”.
     Em todas as suas variações, o trabalhismo compõe, ao lado do comunismo, uma das mais relevantes tradições da esquerda brasileira, com grande impacto no meio sindical e nas organizações estudantis. Sua origem é Getúlio Vargas, fundador de um dos mais relevantes partidos da história da esquerda nacional, o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) – e, no entanto, um aliado das oligarquias e também fundador do conservador PSD. Não é fácil entender como um ditador pode representar um símbolo da esquerda democrática no Brasil.
     A questão começa a se tornar mais clara quando se percebe que a ditadura militar, mais longevo regime autoritário brasileiro, foi motivada, dentre outros fatores, pelo combate ao trabalhismo. Não apenas o presidente derrubado, João Goulart, era o principal herdeiro político de Vargas, como um dos principais oponentes dos golpistas e maior inimigo do regime instalado, Leonel Brizola, também se vinculava às hostes trabalhistas. A oposição ao trabalhismo – que era apontado como ferramenta para manipular e agitar as incautas massas populares – foi, aliás, combustível não só do golpe de 1964, mas de outros movimentos golpistas do período, como os de 1954 e 1961.
     A UDN, maior partido de oposição a Vargas, teve participação relevante em todas essas sublevações ilícitas, seja pelo apoio quase unânime de seus membros (1954 e 1964) ou pelo protagonismo de alguns, caso de Carlos Lacerda (1961). Os liberais udenistas criavam um clima de constante instabilidade, questionando a legitimidade da democracia então vigente, pela relação entre o varguismo e as massas populares. A ideia de “udenismo” entrou para o vocabulário comum da política brasileira, ou ao menos o da esquerda, entendida como um modo de ação política pernicioso à democracia. Por esse raciocínio, se os opositores de Vargas eram identificados como inimigos do regime democrático, seria natural vincular sua figura a esses ideais. Ao atacar e derrubar o governo legitimamente eleito em 1950, os udenistas fortaleceram a face democrática do presidente e relegaram as arbitrariedades do ditador a uma memória distante.
     Vargas foi um dos primeiros a perceber como ator político fundamental um grupo social até então visto apenas como fonte de distúrbios para a ordem oligárquica que o antecedeu: as grandes massas urbanas. Se os direitos trabalhistas garantidos pela CLT decorrem também da luta dos trabalhadores, ele foi um dos pioneiros dentro da elite política da época a reconhecer a necessidade de instaurar esses novos marcos legais. Conduta, sem dúvida, transformadora. Mesmo seu maior adversário, Carlos Lacerda, reconheceu isso: “Foi mérito seu, indiscutível, o de haver compreendido o valor do homem sem importância (...). Enquanto muitos políticos continuavam a falar apenas para um grupo, ele e outros, depois de 1930, passaram a falar às grandes massas do povo”.
     A relação de Vargas com os militares também passa por inúmeras flutuações. Aliadas fundamentais para a construção e a manutenção do Estado Novo, as Forças Armadas foram responsáveis diretas por suas duas derrubadas, em 1945 e 1954. No entanto, a vertente nacionalista desse setor, liderada por nomes como Estillac Leal, antigo ministro da Guerra de Getúlio, tinha no mito de Vargas um dos seus principais bastiões. O varguismo dividiu o campo militar, justamente por um dos pontos de maior permanência em sua trajetória: o nacionalismo. Nacionalistas eram tanto o Estado Novo quanto o segundo governo Vargas. No nacionalismo convergiam o ditador e o presidente.
     Normalmente associado à expressão desenvolvimentismo – com o nacional-desenvolvimentismo elevado à grande vertente econômica da Era Vargas – o nacionalismo merece, porém, tratamento à parte. Enquanto o desenvolvimentismo era comungado por quase todos os grupos relevantes, não havia o mesmo consenso em torno do nacionalismo, que rachava opiniões e correntes. O varguismo passa a ser visto como sinônimo de desenvolvimento pela via nacional. Já seus adversários, udenistas ou não, são tachados de antinacionalistas.
     O discurso nacional é um dos principais motivos do esforço do PSDB para acabar com a “Era Vargas”, desde o Plano Real, implantado em 1994. Não fazia sentido, para o modelo econômico desenhado pelos economistas da PUC-Rio, ater-se a ideias vagas como o nacionalismo, se o mercado internacional era para eles mais eficiente em alocar capitais que favorecessem o desenvolvimento do país. Ressoavam também nessa escolha alguns argumentos da escola de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP) das décadas de 1960 e 1970, da qual o próprio Fernando Henrique Cardoso foi um dos principais expoentes.
     Grandes opositores do nacionalismo de instituições, como o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb), os acadêmicos da USP construíram uma dura crítica ao modelo político-social da República de 1946, com destaque para a relação entre Vargas e a classe trabalhadora. Surge daí a teoria do populismo, que retratava o cenário político da época a partir da cooptação das massas urbanas passivas pelos líderes carismáticos, marcada pelo protagonismo de Francisco Weffort, com contribuição relevante de Fernando Henrique. Se era crítico do modelo varguista na academia, viu-se na missão de destruí-lo quando assumiu a Presidência: a “Era Vargas” transformou-se em responsável pelo atraso que ainda marcava o país, vista através da ótica do populismo e da cooptação do proletariado.
     O nacionalismo é também elemento relevante para a aproximação entre os governos petistas e a tradição varguista. A oposição entre partido nacionalista e elites antipovo é uma das principais representações da disputa PT e PSDB pelos olhos petistas. O confronto reeditaria, assim, o embate entre PTB e UDN, roteiro no qual Lula e Dilma, amados pelo povo e atacados pela imprensa, desempenhariam o papel que na época coube a Vargas. Mas esse Vargas recuperado pelo PT é apenas o presidente eleito em 1950, ao qual se vinculam bons feitos da época do Estado Novo, como muitos dos direitos trabalhistas. Acabam esquecidos seus malfeitos do período autoritário. Nada mais natural, uma vez que a escolha sobre qual passado recuperar é inseparável do olhar do presente e da expectativa do futuro.    

Jorge Chaloub é professor da Fundação Getúlio Vargas e autor da dissertação “Ruptura e Permanência: as tendências autoritárias do udenismo” (PUC-Rio, 2009).

Saiba mais - Bibliografia
D’ARAUJO, Maria Celina. O Segundo Governo Vargas. São Paulo: Ática, 1992.
NETO, Lira. Getúlio (1945-1954): Da volta pela consagração popular ao suicídio. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
GOMES, Ângela de Castro. A invenção do trabalhismo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005.
GUIMARÃES, Cesar. Vargas e Kubitschek: a longa distância entre a Petrobras e Brasília. In: CARVALHO, Maria Alice Rezende de (org). República do Catete. Rio de Janeiro: Editora Museu da República, 2002.

Saiba mais – Documentário
Era Vargas: 1930 - 1935
O período mais determinante da história brasileira no século XX é o assunto da coleção Era Vargas. Partindo da tomada do poder daquela que foi a personalidade brasileira mais marcante do século passado, o cineasta Eduardo Escorel aborda causas e consequências da transformação política que conduziu Getúlio Vargas à presidência, contextualizando os momentos marcantes do período, como o Tenentismo, a Revolta dos 18 do Forte, a chegada ao poder em 1930 e a Revolução Constitucionalista de 1932. Utilizando filmes inéditos e entrevistas atuais, a obra esclarece quais os fatores que facilitaram a ascensão de Vargas e como ele habilmente consolidou o seu poder, deixando um legado que definiu os rumos políticos e econômicos do Brasil pelas décadas seguintes. Era Vargas – De 30 a 35 é um documento definitivo para quem quer entender Brasil.
Para finalizar os documentários que vão de 1930 a 35, Escorel levou duas décadas. O diretor explica: “nesse tempo todo tudo muda, principalmente a concepção das coisas. E eu gosto de dizer que um trabalho como esse não é feito sozinho. Teve muita gente envolvida, muita pesquisa histórica. Ou seja, levamos 20 anos para contar cinco anos da história do Brasil”.

Direção: Eduardo Escorel
Ano: 1992
Áudio: Português
Duração: 196 minutos/Total
Parte 1 - 1930 - Tempo de Revolução / 48 minutos
Parte 2 - 1932 - A Guerra Civil / 48 minutos
Parte 3 - 1935 - O Assalto ao Poder / 98 minutos

 Saiba Mais – Link

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Revolução Renovadora

Prestes a completar 80 anos, a chegada de Vargas ao poder transformou a política do país e abriu as portas para a industrialização

     Como entender a Revolução de 1930 oitenta anos depois? O movimento abarcou vários períodos, foi seriamente contestado, reprimiu brutalmente seus opositores, ganhou o apoio da classe operária e transformou a economia e o modo de se fazer política no país. Aparentemente contraditório, assim como seu principal protagonista, Getúlio Vargas (1882-1954), ele abriu um período da História do Brasil sobre o qual ainda há muita coisa no ar.
     Cansada da política ultrapassada da velha República – período que vai da proclamação da República à chegada de Vargas ao poder (1889-1930) –, a Revolução concretizou a vontade de transformação que a população brasileira tanto queria. Com exceção da oligarquia cafeeira paulista e das outras que dependiam do governo central, a sociedade apoiou com entusiasmo o movimento, que abriu espaço para outras lutas políticas: partidárias, parlamentares, sindicais, estudantis e militares. A classe operária, os novos grupos burgueses e os setores médios urbanos queriam apresentar suas plataformas políticas ou reivindicações.
     Embora não tenha modificado profundamente o país – o capitalismo e o clientelismo permaneceram e a reforma agrária não aconteceu –, a Revolução de 1930 representou um marco em nossa História. Isso porque antes, durante a Primeira República, a economia era essencialmente agrária e girava em torno da exportação do café, enquanto o poder político estava centralizado nas mãos dos grandes cafeicultores.
     Nos anos 1920, a chamada política do “café com leite” – revezamento de mineiros e paulistas na Presidência do país – estava com os dias contados. A produção cafeeira entrou numa crise sem volta, que acabou sendo agravada pela quebra da Bolsa de Nova York em outubro de 1929. Com isso, setores da economia não vinculados ao café, como aqueles ligados à produção e à exportação de carne no Rio Grande do Sul, ficaram fortalecidos.
     O fato de Washington Luís (1869-1957), presidente da República de 1926 a 1930, não abrir mão de um candidato paulista para a sua sucessão ajudou a organizar a oposição à oligarquia cafeicultora paulista. Como era a vez de um presidente mineiro no rodízio, a insistência de Washington Luís no nome do paulista Júlio Prestes (1882-1946) levou ao lançamento de um candidato de oposição. O rompimento de Minas Gerais com São Paulo foi decisivo para os acontecimentos políticos que se seguiram, assim como a organização da Aliança Liberal, que, além dos mineiros, também contava com o Rio Grande do Sul, a Paraíba, o Partido Democrata Paulista e os tenentes.
     O candidato do governo acabou saindo vitorioso nas eleições nada secretas e evidentemente fraudulentas de março de 1930, fato reconhecido pelo governador do Rio Grande do Sul, Borges de Medeiros (1863-1961), na edição de 19 de março do jornal A Noite: “Fraudes houve em todo lugar, inclusive aqui.” Getúlio Vargas havia obtido quase 100% dos votos do estado, resultado que levou o bloco da Aliança Liberal a se articular para chegar ao poder por outros meios.
     Os tenentes – que gozavam de grande prestígio desde a revolta do Forte de Copacabana (1922), a revolução paulista (1924) e a coluna Prestes-Miguel Costa – achavam que havia chegado a hora de pegar nas armas e tomar o poder, enquanto Borges de Medeiros pregava a conciliação. Pensando em levar adiante o plano dos militares, Vargas se encontrou com o então líder tenentista Luís Carlos Prestes (1898-1990) em duas ocasiões – novembro de 1929 e janeiro de 1930 –, e lhe entregou 800 mil dólares para comprar armamentos. Em maio de 1930, Prestes rompeu com os tenentes e ficou com a maior parte do dinheiro para fazer “a verdadeira revolução”: a comunista. Rompeu sozinho. Todos os tenentes ficaram do lado de Vargas.
     O assassinato do presidente do estado da Paraíba, João Pessoa, vice na chapa de Getúlio, em julho de 1930, embora não tivesse motivos políticos, foi usado para acirrar os ânimos e convencer o futuro presidente e seus aliados civis de que a revolução armada era uma necessidade. Com isso, teve início, no dia 3 de outubro de 1930, um movimento encabeçado pelos tenentes que tomou os quartéis de todo o país, até com certa facilidade. Ao perceberem que a revolução havia sido vitoriosa, os generais Tasso Fragoso (1869-1945), João de Deus Mena Barreto (1874-1933) e o almirante Isaías de Noronha (1874-1963) depuseram Washington Luís e instalaram uma junta governativa que entregou o poder a Getúlio Vargas na madrugada de 31 de outubro, quando este chegou ao Rio. Três dias depois, o ex-candidato derrotado tomou posse como Chefe do Governo Provisório. Era o fim da “velha” República e o começo da “era Vargas”.
     A vitória da Revolução reforçou uma ideologia positivista que pregava a crença na importância da indústria, em um governo centralizador e autoritário e no paternalismo com os trabalhadores. Vargas acreditava – talvez com razão – que seria possível, naquela época, proclamar a independência econômica do Brasil, cortando os laços de dependência com o exterior. Se realmente existiu, tal possibilidade foi frustrada pela Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Em relação à classe operária, o novo governo foi, ao mesmo tempo, condescendente e altamente repressivo. Os trabalhadores urbanos obtiveram ganhos significativos: salário-mínimo, jornada de trabalho de oito horas e regulamentação do trabalho de menores e das mulheres. Mas, ao mesmo tempo, a estrutura sindical ficou totalmente atrelada ao Ministério do Trabalho.
     Não se pode falar da Revolução de 1930 sem considerar tudo o que ocorreu nos anos seguintes. Em julho de 1932, teve início uma rebelião em São Paulo que pretendia cobrar do presidente a convocação de uma Assembleia Constituinte. Debelada a revolta, uma segunda Constituição acabou sendo promulgada no dia 17 de julho de 1934, e resultou na eleição indireta de Vargas como presidente. Por tudo isso, ele enfrentava uma forte oposição: parte dos tenentes que o haviam apoiado em 1930, desiludida com o governo, que consideravam não ter cumprido as promessas de campanha, criou, em março de 1935, a Aliança Nacional Libertadora.
     Getúlio ainda perdeu boa parte dos aliados gaúchos, que deixaram de apoiá-lo por causa de disputas de poder nas eleições estaduais de outubro de 1935. O governador do Rio Grande do Sul, Flores da Cunha (1880-1959), que intervinha na política fluminense, fez com que toda a bancada do estado se opusesse a Getúlio no Congresso, reforçou ostensivamente o Corpo de Provisórios e a Brigada Militar, e tentou jogar Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Mato Grosso e Rio de Janeiro contra Vargas.
     Com grande inteligência política, Getúlio uniu o país em torno do combate ao comunismo – pois sabia melhor do que ninguém que os comunistas, que na época estavam desarticulados ou presos, não ofereciam perigo algum –, conseguiu neutralizar seus opositores e até ganhou o apoio destes. Sabia, contudo, que deixaria seu cargo em 1938, quando haveria novas eleições. Mas o presidente não queria que os paulistas retomassem o poder com Armando de Salles Oliveira (1887-1945).
     No dia 10 de novembro de 1937, Getúlio deu o golpe que estabeleceu o Estado Novo. Sem poder contar totalmente com seus antigos aliados – e prevendo a vitória dos paulistas nas eleições de 1938 –, ele passou a se apoiar cada vez mais nos generais e coronéis simpatizantes do fascismo, que garantiram a permanência de Vargas no poder.
     Eram poucos os que, nessa época, defendiam um governo liberal. A direita, representada pelos integralistas, tinha simpatia pelo fascismo. A esquerda, dos tenentes, não descartava um regime repressor para impor suas propostas nacionalistas, antilatifundiárias e liberais. E os comunistas, que se uniram aos tenentes na Aliança Nacional Libertadora, acreditavam numa ditadura de classe para acabar com a exploração do homem pelo homem. Os mesmos generais que apoiaram Getúlio o depuseram em 29 de outubro de 1945. Mas o voto direto o levou, em 1950, outra vez à Presidência, que ele deixou definitivamente quando se suicidou no dia 24 de agosto de 1954, momento em que vinha sofrendo ataques constantes de seus opositores.
     Afinal, por que não foi possível enfrentar os desafios econômicos sem recorrer à ditadura? Por que os direitos humanos foram tão desrespeitados durante o Estado Novo, ao mesmo tempo em que se tomaram medidas de proteção aos trabalhadores? Pelo visto, essa fase marcante da História do Brasil deixa até hoje muitas questões em aberto.

Marly de Almeida Gomes Vianna é professora de História da Universidade Salgado de Oliveira e autora de Política e rebelião nos anos 30. (Editora Moderna, 1995)


Saiba Mais - Bibliografia
CARONE, Edgar. Brasil, anos de crise. 1930-1945. São Paulo: Ática, 1991.
FAUSTO, Boris. A revolução de 1930. São Paulo: Brasiliense, 1970 (há reedição recente).
MEIRELLES, Domingos. 1930, os órfãos da Revolução. Rio de Janeiro: Record, 2005.
MURAKAMI, Ana Maria Brandão (org). A Revolução de 1930 e seus Antecedentes. Coletânea de fotografias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
PANDOLFFI, Dulce. Da Revolução de 1930 ao Golpe de 1937: a depuração das elites. Rio de
Janeiro: FGV/CPDOC, 1987.

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Além da Era Vargas - É coisa nossa

Com a política econômica que ficou conhecida como “nacional desenvolvimentismo”, Vargas deu as bases para uma arrancada na indústria brasileira.
     Quando Getúlio Vargas voltou a pisar no Palácio do Catete, 20 anos após a chamada Revolução de 1930, muita coisa havia mudado no contexto político do Brasil. Prova disso é que, dessa vez, ele chegava ali como presidente eleito. Vargas também encontrou naquele início de década um novo cenário econômico no país, que já deixara de ser predominantemente agrário. O crescimento das indústrias trazia novos dilemas, e o conjunto das disputas políticas em torno desse tema configurou aquilo que acabou conhecido como “nacional desenvolvimentismo”.
     A expansão industrial seguia seu trilho desde a Primeira República. Mas até então a economia brasileira apoiava-se fundamentalmente na exportação de produtos primários, com destaque para o café. A partir de 1929, com a crise e o quadro de guerra mundial que aos poucos ganhava forma, abria-se uma conjuntura favorável no Brasil para a produção voltada ao mercado interno. 
     Vargas enxergou isso. E do período que vai do seu primeiro governo até o Estado Novo, houve uma inflexão no setor: consolidou-se uma importante estrutura de órgãos de proteção e planejamento para a produção doméstica. Além disso, foram estabelecidos novos marcos jurídicos para a fabricação de diversos produtos primários e para a regulação do mercado de trabalho. 
     Não demorou para que os efeitos fossem sentidos. Ao longo dos 15 primeiros anos do governo Vargas, a indústria já era a área de maior crescimento da economia. Em 1947, dois anos depois que o presidente foi destituído do governo, a produção industrial ultrapassou a dos setores primários. No entanto, ao final dos anos 1940, quando o marechal Eurico Gaspar Dutra já estava na Presidência, ficou evidente que a continuidade do crescimento da indústria trazia dilemas políticos e econômicos. 
     Um dos principais pontos era o fato de que a construção de novas indústrias no país implicava cada vez mais importações de máquinas e insumos industriais. Em um país dependente da exportação de produtos primários, isso era bastante problemático. Os preços internacionais das mercadorias que saíam daqui tendiam a oscilar no mercado internacional e, em geral, ficavam abaixo dos valores dos bens industriais que precisavam ser importados.
     Na tentativa de driblar esse problema, o governo Dutra aproveitou os resultados do superávit da balança comercial, como nos anos da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), para realizar essas importações. Mas isso foi feito por uma gestão fortemente opositora à intervenção do Estado Novo (1937-1945), o que significa, por exemplo, que durante o período não se constituíram políticas de orientação das importações. 
     As divisas conquistadas esgotaram-se rapidamente por conta das largas necessidades da indústria e, depois, pela importação de produtos direcionados para o consumo individual que muitas vezes já eram fabricados internamente. Foi a deixa para que defensores do planejamento atuassem na cena pública a fim de buscar outras soluções para o dilema. Quando Getúlio Vargas voltou à cena nas eleições presidenciais de 1950, trouxe uma intensa defesa pelo planejamento estatal em prol da industrialização. O tema tornou-se central durante a campanha eleitoral, com importância equivalente ao discurso pela legislação social e trabalhista – que tinha maior apelo popular.
     Em sua crítica ao governo Dutra, Vargas – que desde seu período ditatorial defendia o planejamento estatal como condição para a industrialização – ressaltava não só o direcionamento das importações para a indústria, como também, para ele, era necessário aplicar a mesma política para as indústrias de base e para a infraestrutura de transporte e energia. O Estado deveria programar um conjunto de investimentos nessas áreas para permitir um crescimento integrado de diferentes subsetores industriais. Um salto da atuação estatal resultaria em uma arrancada na industrialização, ele apostava.
     A conjuntura internacional também estava favorável à discussão do planejamento econômico. Eram os tempos do pós-guerra, momento em que se debatia a independência de países historicamente subjugados pela colonização. No âmbito das Nações Unidas, em 1948, foi criada a Comissão Econômica para a América Latina (Cepal). O órgão contribuiria para dar apoio técnico às políticas de industrialização, com o objetivo de combater o “subdesenvolvimento”. 
     Discutia-se também o alinhamento dos países aos blocos Ocidental (capitalista) ou Oriental (comunista), quadro que evoluiria para a Guerra Fria. Nas relações diplomáticas entre Brasil e Estados Unidos, Vargas buscou apoio dos governos de Harry S. Truman (1945-1953) e de Dwight Eisenhower (1953-1961) ao seu projeto de industrialização. Como resultado, nasceu a Comissão Mista Brasil-Estados Unidos (CMBEU), responsável por estudos e formação de quadros técnicos importantes para os investimentos nas indústrias de bases – indústrias produtoras de bens para outras indústrias, como aço, combustíveis, química pesada – e infraestrutura – energia, transporte e armazenamento, muito do que hoje se chama de logística.
     A intervenção estatal nesse complexo processo produtivo, porém, trouxe à tona, mais uma vez, o problema dos recursos. Desde os primórdios de sua formação, o Estado brasileiro se mostrou incapaz de constituir formas tributárias abrangentes para seu financiamento. Já o setor privado nacional, ao mesmo tempo em que reagia a qualquer aumento de tributação, era desinteressado nos investimentos de longo prazo necessários para a industrialização. A solução apresentada nos anos 1950 teve, então, que se voltar para fora: aumentar a presença do capital externo. 
     Vargas e sua assessoria econômica acreditavam que os governos dos países desenvolvidos e as agências multilaterais – como o Banco Interamericano de Desenvolvimento e o Banco Mundial – tinham a obrigação moral de financiar os países subdesenvolvidos. Foi nessa linha que o governo brasileiro participou das discussões da CMBEU, defendendo a aquisição de um empréstimo no valor de 300 milhões de dólares por meio do Eximbank e do Bird.
     Nessa época, em 1952, o Congresso Nacional aprovou a criação do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE), idealizado na CMBEU. A instituição seria responsável pela captação e a gestão dos recursos que viriam das agências estrangeiras. Mas suas atribuições também incluíam um plano interno: o banco foi o principal responsável pelo financiamento das estatais brasileiras e pela orientação do crédito de longo prazo com fins de industrialização e infraestrutura. 
     O conjunto de propostas e medidas que Vargas ia colocando de pé fez estudiosos associarem seu governo a um modelo específico de intervenção do Estado sobre a economia: era o chamado “nacional desenvolvimentismo”. Contrários a esse modelo, havia grupos liberais que, em geral, defendiam que a industrialização deveria estar subordinada a interesses exportadores. 
     Entre os que se consideravam desenvolvimentistas, havia diversas variações. Caso emblemático era o dos organismos de representação industrial que se opunham a qualquer projeto de monopólio em subsetores, como o que veio a se estabelecer na extração de petróleo, aprovado em 1953 com a criação da Petrobras.
     Nacionalistas eram as correntes políticas que simplesmente se interessavam no sentido de que toda a produção de bens para a indústria e o consumo fosse realizada dentro do país. Deste ponto de vista amplo, incluía aqueles que não faziam diferenciação quanto à origem do capital – nacional ou internacional. Porém incluía também casos extremos, como aqueles que pensavam que o capital externo era contra a industrialização e que, portanto, deveria ser excluído de setores “estratégicos” ou mesmo do conjunto da economia. 
     A eleição de Dwight Eisenhower nos Estados Unidos, em 1953, marcou um período de austeridade fiscal no governo americano que teve reflexos por aqui. A proposta de empréstimo ao Brasil foi cancelada e os trabalhos do CMBEU interrompidos, frustrando os principais investimentos do Estado brasileiro durante o governo Vargas. 
     Mesmo sem conseguir tirar do papel todas as suas propostas, Getúlio Vargas deixou de legado uma base sólida de intervenção estatal e de medidas para a economia que foram largamente aproveitadas após seu suicídio, em 1954. Quando assumiu a Presidência, em 1956, Juscelino Kubitschek não ignorou o projeto de industrialização que estava em rota no país. Virou a página, propôs outras soluções – como dar maior peso para o capital externo privado – mas partiu do capítulo que Vargas deixara escrito na história da industrialização nacional para seguir em frente.

Tomás Coelho Garcia é autor da dissertação “Denúncias públicas contra a 'violência policial'” (Iuperj, 2009). 

Saiba mais - Bibliografia
BIELSCHOWSKY, Ricardo. Pensamento Econômico Brasileiro – 1930-1964. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012. 
FONSECA, Pedro Cezar Dutra. Vargas, o capitalismo em construção. São Paulo: Brasiliense, 1989.  

Saiba mais - Na internet
ABREU, Alzira Alves de. “Desenvolvimentismo”. In: Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro – DHBB (http://cpdoc.fgv.br/acervo/dhbb).

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terça-feira, 18 de setembro de 2012

Seleção questionável

O controle da entrada de estrangeiros durante o Estado Novo classificava os judeus como imigrantes indesejáveis.  
Fábio Koifman

     Na Europa, crescia consideravelmente o número de judeus que saíam do continente em busca de refúgio em outros países. A década de 1930 foi marcada pela crise econômica mundial de 1929 e pela afirmação de alguns regimes fascistas, como o nazismo – despertando em muitos judeus o temor de perseguições. Com o início da Segunda Guerra Mundial (1939) e as expressivas vitórias militares alemãs, a situação piorou ainda mais.
     Enquanto isso, no Brasil, durante o primeiro governo de Getúlio Vargas (1930-1945), intensificaram-se as políticas restritivas à imigração. Essas medidas de controle da entrada de estrangeiros atingiram diretamente os judeus e eram apresentadas ao público como fundamentais para reforçar os valores e ideais de nação.
     Já em um discurso feito em 1930, quando ainda era candidato à Presidência, Vargas afirmou: “Durante muitos anos, encaramos a imigração exclusivamente sob os seus aspectos econômicos imediatos; é oportuno entrar a obedecer ao critério étnico, submetendo a solução do problema do povoamento às conveniências fundamentais da nacionalidade”.
     Naquela época, era intenso o debate dos setores da elite sobre o tipo de imigrante considerado desejável para encher os imensos vazios do território nacional e contribuir para o ideal de formação do povo brasileiro. Nesse contexto, as ideias eugenistas ganharam expressivo espaço. Seguindo essa lógica, o Estado deveria fazer intervenções para melhorar as gerações futuras. Para isso, foram estabelecidos critérios e valorações de características humanas para produzir a mais “adequada” seleção de elementos reprodutivos. No grupo de pessoas consideradas ideais para as futuras gerações de brasileiro estavam portugueses e suecos. No grupo dos inadequados, os indesejáveis, foram incluídos os orientais, negros, indígenas, judeus, todos os “não brancos”, assim como os portadores de deficiências físicas congênitas ou hereditárias, os doentes físicos ou mentais, além de homens e mulheres fora da idade reprodutiva.  A Constituição de 1934 trouxe as primeiras restrições. Naquele momento, o alvo foram os japoneses: um sistema de cotas diminuiu drasticamente o número de imigrantes vindos de seu país.
     Como naquele período os judeus imigravam de várias nações, com a vigência do novo sistema, israelitas de diferentes origens entraram no Brasil dentro das cotas de suas respectivas nacionalidades. A partir de 1935, ano do Levante Comunista, o governo Vargas intensificou o controle policial interno dos estrangeiros e determinou que a legislação relacionada à entrada de imigrantes fosse aprimorada.
     A primeira das instruções remetidas às representações diplomáticas e consulares brasileiras no exterior a respeito da concessão de visto a judeus (as chamadas circulares) foi emitida antes da decretação do Estado Novo, em 7 de junho de 1937. No período da instauração do regime ditatorial de Getúlio Vargas, o assunto ganhou uma dimensão ainda maior. A agilidade na tomada e na aplicação das decisões – decorrentes do período autoritário – tornou mais difícil a vinda de estrangeiros para o Brasil.
     Vargas considerava ideal a entrada de portugueses. O “elemento português” era apontado como “matriz” de nossa composição étnica, cultural e religiosa, e, portanto, europeia. Por outro lado, a restrição se estendia a vários outros povos, inclusive europeus. O critério utilizado era a maior ou menor capacidade de fusão, no sentido de propiciar casamentos desses novos imigrantes com a população aqui já residente, descente de africanos, indígenas ou de ambos e proporcionar, a partir dessa miscigenação, novas gerações superiores do ponto de vista preconceituoso da eugenia. Os judeus, por exemplo, eram considerados “inassimiláveis”. Os dirigentes do governo classificavam-nos como indesejáveis, pois acreditavam que os israelitas não tinham tendência a se miscigenarem com a população não branca brasileira.
     Tudo isso mostra a diferença entre o racismo, o preconceito e a presença de valores próprios da eugenia na legislação e na prática seletiva do Estado Novo em relação ao imigrante. Essa medida contrasta com o relativo tratamento sem discriminação que o Estado dispensava aos homens de todas as etnias já residentes no Brasil.
     Dois motivos podem ser considerados a base para que Vargas mantivesse liberada a entrada de portugueses nesse período. A primeira razão dizia respeito à conduta política. A maioria dos potenciais imigrantes portugueses era composta de gente de origem modesta e de limitada instrução técnica e cultural, e ainda proveniente da ditadura salazarista. Em última análise, Vargas acreditava que esses imigrantes não eram portadores de “ideias dissolventes”, diferentemente de muitos intelectuais recém-imigrados da Alemanha, da França, da Áustria, etc. Estes, em poucos meses no Brasil já estavam publicando artigos e produzindo reflexões sobre os mais diferentes temas junto aos brasileiros. Era algo que tenderia a fugir do controle do Estado Novo e, de certa forma, era visto como potencialmente perigoso para uma ditadura.
     A segunda razão estava na continuidade da política do branqueamento. Os chamados “quistos étnicos” eram indicações de que outras correntes imigratórias de europeus não tinham, de acordo com a terminologia da época, a mesma tendência à miscigenação que os portugueses. Vargas e setores das elites brasileiras estavam convencidos de que a composição étnica “não branca” de boa parte dos brasileiros explicaria o atraso e as dificuldades do país. Consideravam também que os portugueses, aparentemente, casavam-se mais com os “não brancos” aqui residentes. Dessa forma, seriam considerados imigrantes ideais.
     De qualquer forma, foi possível a continuidade de uma vida normal para os estrangeiros e seus filhos no Brasil, mesmo os de origens étnicas indesejáveis pelos critérios seletivos relacionados aos novos imigrantes. As restrições e o preconceito expressos na legislação e nas políticas imigratórias não foram transpostos para atos discriminatórios. O Estado brasileiro não desejava “reproduzir” no Brasil qualquer tipo de racismo, especialmente por considerá-lo elemento desagregador nacional, além de, potencialmente, tornar-se um fator de dificuldade no estabelecimento de casamentos interétnicos, no contexto do ideal do branqueamento.
     Apesar de todo o aparato burocrático e legal estabelecido com o objetivo específico de restringir a entrada de judeus no Brasil ao longo do Estado Novo, o país recebeu cerca de nove mil judeus no período considerado crítico, entre 1938 e 1941. Boa parte dessas entradas esteve relacionada a três fatores principais. O primeiro foi a brecha estabelecida nos últimos meses de 1938, possibilitando a concessão de vistos a parentes até segundo grau de judeus já residentes no Brasil. O segundo foi a boa vontade de alguns diplomatas brasileiros para conceder vistos mesmo à revelia das instruções, dos quais o mais expressivo foi o embaixador na França, Luiz Martins de Souza Dantas. Por fim, judeus que lograram entrar no Brasil não evidenciando a condição de israelitas.
     Considerando o montante de centenas de milhares de judeus saídos da Europa na época e o enorme contingente que bateu às portas das representações brasileiras naquele continente e recebeu visto, o número de imigrantes israelitas foi relativamente pequeno. O total de judeus que veio para o Brasil não superou os recepcionados pela Argentina e foi mais de dez vezes inferior ao número de refugiados que foram para os Estados Unidos no mesmo período.

Fábio Koifman é professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e autor de Quixote nas trevas: o embaixador Souza Dantas e os refugiados do nazismo. (Record, 2002). 

Saiba Mais - Bibliografia
BARROS, Orlando de. “Preconceito e educação no Governo Vargas (1930-45). Capanema: Um episódio de intolerância no Colégio Pedro II”. Rio de Janeiro: Cadernos avulsos da biblioteca do professor do Colégio Pedro II, 1987.
LESSER, Jeffrey H. O Brasil e a Questão Judaica: Imigração, diplomacia e preconceito. Rio de Janeiro: Imago, 1995.
MILGRAM, Avraham. Os Judeus do Vaticano. Rio de Janeiro: Imago, 1994.
SKIDMORE, Thomas E. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.

Saiba Mais – Links

Saiba Mais – Filmes 
Tempos de Paz 
No Filme Dan Stulbach é Clausewistz, um imigrante polonês fugindo dos horrores da Segunda Guerra, que, à época, já chegava ao fim. Sabendo falar português muito bem, ele desperta a desconfiança das autoridades brasileiras ao desembarcar no país. É nesse momento que sua vida se cruza com a de Segismundo, vivido por Tony Ramos, um inspetor da alfândega em crise sobre o que deve fazer nos novos tempos de paz. A relação entre os dois se torna um debate de quase uma hora, em que Segismundo pede para Clausewistz mostrar seus motivos para ficar no Brasil e provar que não é um comunista ou nazista. Se, nesse meio tempo, Segismundo não se emocionar, ele o mandará de volta ao navio. Paralelamente, mas não tão explorado, temos a história do Doutor Penna, interpretado próprio Daniel Filho. Militante comunista torturado nos porões da ditadura Vargas, o médico está no encalço de seu torturador. Segismundo é um personagem complexo e bem trabalhado, um homem que obedece às ordens, mas que se sente perdido com fim da guerra. Já Stulbach arranca risos, lágrimas e muitos aplausos na melhor atuação de sua carreira. A mistura de uma ingenuidade quase infantil com a dureza de quem viveu os horrores do Holocausto é expressa de forma bastante natural.
Direção: Daniel filho
Ano : 2009
Áudio: Português
Duração: 80 minutos

Um Passaporte Húngaro
Através do pedido de um passaporte o documentário parte em busca da história de uma família, dividida entre dois mundos e dois exílios: aqueles que se foram e aqueles que permaneceram onde estavam.
Primeira cena do filme - estou ao telefone, hesitante. - ' Consulado da Hungria? Eu queria uma informação... Uma pessoa cujo avô é húngaro tem direito a um passaporte húngaro? ' - ‘... Passaporte húngaro?!' - A pessoa do outro lado da linha parece surpresa, duvidando se entendeu minha pergunta. Eu insisto. '- Quais são os documentos necessários? ' '- é melhor você vir aqui. ' Não digo nada a ninguém, mas a ideia está lançada – vou pedir a nacionalidade húngara. O processo administrativo será o fio condutor do filme. Um filme sobre o que a gente é porque escolheu ser e o que a gente é porque recebeu como herança.
Direção: Sandra Kogut
Ano: 2001
Áudio: Português
Duração: 71 minutos
Tamanho: 249 MB

Getúlio Vargas
Getúlio Vargas é um exemplo de como cinema e história podem andar de mãos dadas. Principalmente quando o diretor tem o talento e a inventividade de Ana Carolina. Este é um filme essencialmente de montagem. Todo o material usado traz a assinatura do DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), da Agência Nacional e o material de arquivo cinematográfico da Fundação Cinemateca Brasileira. Getúlio Dornelles Vargas é o personagem principal dessa história, da qual todos devem saber o início, meio e fim. Foram 20 anos de silêncio; muita coisa ficou esquecida, virou lenda, foi deturpada, ou teve o seu significado transformado pelo tempo. Muita mentira tornou-se verdade e vice-versa. O registro do cinema nos trás novamente aqueles tempos, não com obrigação de decifrar verdades, mas para nos fazer participar da emoção. São, portanto, as imagens do dia-a-dia, registradas nas câmeras dos artistas anônimos, testemunhas das décadas passadas. Paralelamente, é feita uma reconstituição dos anos 30 a 50 com filmes e músicas da época: Fla x Flu, corridas no Jockey, esquinas de São Paulo, o Palácio Rio Negro em Petrópolis, a FEB na guerra, a visita de Dutra a Nova Iorque, os famosos discursos do Presidente Vargas e o seu suicídio.
Direção: Ana Carolina Teixeira Soares
Ano: 1974
Áudio: Português
Duração: 76 minutos

Olga
O filme (baseado no livro homônimo de Fernando Morais) retrata uma grande história de amor, em todos os sentidos: a luta; aos ideais; ao marido; a maternidade. Olga Benário (Camila Morgado) é uma militante comunista desde jovem, que é perseguida pela polícia e foge para Moscou, onde faz treinamento militar. Lá ela é encarregada de acompanhar Luís Carlos Prestes (Caco Ciocler) ao Brasil para liderar a Intentona Comunista de 1935, se apaixonando por ele na viagem. Com o fracasso da revolução, Olga é presa com Prestes. Grávida de 7 meses, é deportada pelo governo Vargas para a Alemanha nazista e tem sua filha Anita Leocádia na prisão. Afastada da filha, Olga é então enviada para o campo de concentração de Ravensbrück.
Direção: Jayme Monjardim
Ano: 2004
Áudio: Português
Duração: 141 minutos
Tamanho: 429 MB

O Velho - A História De Luiz Carlos Prestes
Uma história cinematográfica das esquerdas brasileiras. É isso o que se esboça nesse belo documentário vencedor do Festival É Tudo Verdade de 1997; melhor Documentário no 5º Festival de Cuiabá e o Prêmio APCA de Resgate Cultural e Histórico. A trajetória de Luiz Carlos Prestes, recontada por ele mesmo e por uma constelação de parentes, contemporâneos e também desafetos, lança uma luz particular sobre oito décadas da vida política brasileira. O filme de Toni Venturi se vale ainda de uma notável compilação de materiais de arquivo, muitos desconhecidos até então, e de curtas vinhetas ficcionais.
O caminho de "ouro de Moscou" na insurreição comunista de 35; Olga Benário, o primeiro amor de Prestes, na verdade espiã do Exército Vermelho; a participação dos agentes estrangeiros no levante; o cruel assassinato de Elza por importantes dirigentes do PCB; o surpreendente acordo entre Vargas e Prestes em 46; a equivocada posição do Velho diante do iminente golpe de 64... Finalmente, estes fatos marcantes e obscuros são trazidos à tona para ajudar a entender nosso passado recente.
Direção: Toni Venturi
Ano: 1997

Áudio: Português
Duração: 105 minutos