Tradução: Antonio Martins
Há mais de vinte anos, saiu a encíclicia Centesimus
Annus, do Papa polonês Wojtyla, por ocasião do centenário da Rerum
Novarum. Era o manifesto reformista, fortemente inovador, de uma
Igreja que se pretendia, dali em diante, única representante dos pobres, depois
da queda do império soviético. Àquele documento, meus companheiros parisienses
do Futur Antérieur e eu dedicamos um comentário que era também
o reconhecimento de um desafio. Teve por título “A V Internacional de João
Paulo II”.
Vinte anos depois, o Papa alemão renuncia.
Declara-se não só esgotado no corpo, e incapaz de se opor aos imbróglios e
à corrupção da Cúria Romana, mas também impotente no ânimo para enfrentar o
mundo. Esta abdicação, porém, só pode surpreender os curiais. Todos os que
estão atentos aos assuntos da Igreja romana sabem que outra renúncia, bem mais
profunda, dera-se antes. Ocorrera em parte sob João Paulo II, quando, com o
apoio fervoroso de Ratzinger, a abertura aos pobres e o empenho por uma Igreja
renovada pela libertação dos homens da violência capitalista e da miséria
terminaram.
Fora pura mistificação, a encíclica de
1991? Hoje, devemos reconhecer que, provavelmente, sim. De fato, na América
Latina a Igreja católica destruiu cada foco da Teologia da Libertação. Na
Europa, voltou a reivindicar o ordo-liberalismus. Na Rússia e
Ásia viu-se quase incapaz de desenvolver o discurso que a nova ordem mundial
permitia. E nos países árabes e Irã viu os muçulmanos – em suas diversas seitas
e facções – assumir o posto do socialismo árabe (e frequentemente cristão) e do
comunismo ortodoxo, na defesa dos pobres e no desenvolvimento de lutas de
libertação.
A própria reaproximação com Israel não foi
feita em nome do anti-fascismo e da denúncia dos crimes nazistas, mas… em nome
da defesa do Ocidente. O paradoxo mais significativo é que o grande impulso
missionário (desenvolvido de modo autônomo depois do Concílio Vaticano II)
refluiu em favor de ONGs católicas, rigidamente especializadas e depuradas de
qualquer característica genericamente “franciscana” Estas ONGs terminaram
dedicadas à prática dos “direitos do homem” que a Igreja (e dois Papas: o
polaco e o alemão) recusava-se a reconhecer nos países europeus ou na América
do Norte, onde ainda expressavam, com ressonância anticlerical e republicana,
as conquistas (residuais, ainda que eficazes) da laicidade humanista e iluminista.
Ao invés de se colocar à esquerda da social-democracia, como a Centesimus
Annus propunha, o papado situou-se à direita, no cenário social, e
junto a uma direita política próxima aos Tea Parties (inclusive
os europeus).
Agora, o Papa alemão abdica. É quase
divertido ouvir a mídia do mundo que ainda se interessa pelo assunto (muito
limitado, se considerarmos o espaço global). Ela pede ao novo Papa que
reconheça o ministério eclesiástico das mulheres; que estabeleça uma
administração colegiada burguesa da Igreja, que assegure uma posição de
independência em relação à política… propostas banais. Mas tocam o essencial?
Seguramente, não: é a pobreza, o que falta à Igreja. Seria enfim o momento de
compreender que o Papa não é um Rei: deve ser pobre, só pode ser pobre.
Tentarão mascarar o problema promovendo um
africano, ou um filipino, ao papado? Que horrível gesto racista seria, se o
Vaticano e os seus ouros e os seus bancos e a sua dogmática política a favor da
propriedade privada e do capitalismo permanecessem brancos e ocidentais! Pedem
conceder às mulheres o sacerdócio: não é pura hipocrisia, quando não lhes passa
nem pela antecâmera do cérebro que Deus possa ser declinado ao feminino? Querem
gestão colegiada da Igreja: mas já Francisco ensinou que o compartilhamento só
poderia se dar na caridade. Etc, etc.
A Igreja do Papa polaco e do alemão
concluiu o processo de aniquilação do Concílio Vaticano II, e esta liquidação
infelizmente não representou jamais uma “guerra civil” no interior da instituição,
mas apenas um torneio de esgrima entre prelados – ainda que sangrenta, como no
caso da neutralização do cardeal Martini – mas sempre esgrima. Ao colocarem uma
pedra sobre aquele Concílio, os dois últimos Papas bloquearam um impetuoso
movimento de renovação religiosa. Sobretudo, confundiram a Igreja com o
Ocidente, o cristianismo com o capitalismo. Era justamente o que a Centesimus
Annus prometia não voltar a fazer, uma vez acabada a histeria
anti-soviética.
Não bastava, porém, proclamar a pobreza,
para subordinar à cristandade as formas de vida do Ocidente capitalista. Era
preciso praticar a pobreza, alimentá-la, como uma revolução. Diante das crises
monetárias, de produção e sociais, os cristãos teriam desejado da Igreja uma
definição nova e adequada de “caridade”, de “amor pelo próximo”, da “potência
da pobreza”. Não a obtiveram. No entanto, muitos militantes cristãos refutam o
declínio que o Vaticano e o Ocidente parecem percorrer juntos.
Alguns pensam agora que “a renúncia de
Bento poderia finalmente tirar a Igreja do século XIX”; outros, que haverá uma
reflexão profunda e o reconhecimento da necessidade de uma reforma. Mas, ao
contrário, não terão razão aqueles para os quais estamos diante da “agonia de
um império doente?”. E que o gesto de Bento não é outra coisa além de um álibi
oportunista, uma tentativa extrema para fugir da crise? A única coisa de que
estamos certos é que qualquer reforma doutrinária será inteiramente inútil se
não for precedida, acompanhada e realizada por meio de uma reforma radical das
formas de presença social da Igreja, de suas mulheres e homens. Se estes
desistirem de associar a esperança celeste e a terrena. Se voltarem a falar da
“ressurreição dos mortos”, ocupando-se dos corpos, do alimento, das paixões dos
homens que vivem. Significa romper com a função que o Ocidente capitalista
confiou à Igreja – pacificar, com esperanças vazias, o espírito de quem sofre;
tornar culpada a alma que se rebela.
A descontinuidade produzida pela renúncia
de Bento suscitará efeitos de renovação se a ela se associar a recusa a
representar a “Igreja do Ocidente”. Talvez tenha chegado o momento de realizar
o que havia proposto a Centesimus Annus há vinte anos, e
reconhecer aos trabalhadores a condição de explorados, no Ocidente, pelo
Ocidente. Mas se o Papa polonês de então não conseguiu, é dúbio que possa
fazê-lo um aluno seu, de frágil carisma. A obra está confiada, portanto, aos
cristãos. E a nós todos.
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Igreja dos
Oprimidos
O documentário relata
várias histórias: da luta dos trabalhadores rurais para recuperar seu
sindicato; de dona Mariquinha, viúva de um posseiro assassinado e seu milagroso
esforço para sobreviver com os seis filhos; de Rosa e o trabalho comunitário no
bairro de Olaria; do camponês Pé de Ouro e sua família vivendo na mais extrema
miséria; de Oneide, a viúva de Gringo, o líder rural morto por pistoleiros
quando disputava em 1980 a presidência do Sindicato de Conceição etc..
Direção: Jorge Bodansky e
Helena Salem
Ano: 1986
Duração: 79 minutos
Tamanho: 301 MB
Vaticano – O
Mundo Oculto (Vatican – The Hidden World)
Direção: Richard Ladkani
Ano: 2010
Áudio: Inglês/Legendado
Tamanho: 253 MB
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