A assembleia que se reuniu de 1962 a 1965 em Roma
trouxe ventos de primavera para o mundo católico, operando reformas e abrindo
novas perspectivas. Meio século depois, que saldo restou do otimismo da época?
Confirmações, enrijecimentos, mudanças de rota... Especialistas avaliam os ecos
do Concílio no mundo atual.
Frei Betto, teólogo.
Aqueles que
hoje comandam a Igreja Católica conservam uma visão negativa do mundo.
A Igreja Católica se encontra em um
impasse. Promoveu o Concílio Vaticano II, quando aprovou importantes mudanças
estruturais, mas não levou os documentos à prática após a morte do papa Paulo
VI. João Paulo II e Bento XVI simbolizam o empenho em fazer a Igreja retroceder
frente ao programa conciliar. Portanto, não penso que haja necessidade de um
Concílio Vaticano III, e sim que se apliquem as decisões do Vaticano II.
Aqueles que hoje comandam a Igreja
Católica conservam uma visão negativa do mundo (acusado de relativismo de
valores); sentem-se incomodados com o pluralismo religioso; insistem em manter,
como estrutura básica da instituição, o modelo paroquial, próprio de uma
sociedade pré-moderna, na qual relações humanas eram determinadas por
proximidade geográfica; miram com desconfiança a mulher, impedida de acesso ao
sacerdócio, como ser ontologicamente inferior ao homem; conservam uma visão
deturpada da sexualidade, a ponto de condenarem relações sexuais que não tenham
como estrito objetivo a procriação dentro do matrimônio; abominam as relações
homoafetivas, e têm pouca sensibilidade ao mundo da miséria e da pobreza.
No entanto, dentro dessa mesma Igreja
Católica vicejam novos modelos pastorais, como as Comunidades Eclesiais de Base
e a Teologia da Libertação, que facilita a releitura da Bíblia pela ótica dos
oprimidos e das mulheres.
Ana Maria Tepedino, teóloga (PUC-Rio)
Não conseguimos implementar tudo, mas há renovação dentro das igrejas, com pequenas experiências nos movimentos e comunidades.
Não conseguimos implementar tudo, mas há renovação dentro das igrejas, com pequenas experiências nos movimentos e comunidades.
O Concílio visava a refletir sobre
identidade e missão da Igreja Católica, buscar caminhos próprios e, com outras
instituições, descobrir o que se poderia fazer pelo mundo. O Vaticano II mudou
profundamente a Igreja e suas relações. Havia grande efervescência social,
intelectual, política, econômica e religiosa.
Diante desse quadro, João XXIII convocou
os bispos do mundo inteiro, professores de universidades católicas, movimentos
e associações, pastores e teólogos de outras igrejas para dialogar e refletir.
Houve mudanças em relação
aos leigos, agora convidados a uma participação maior e mais efetiva na Igreja.
Houve mudança na linguagem, menos abstrata e mais metafórica e simbólica, que
melhora a compreensão e nos chama a um novo protagonismo. E na hierarquia, a
vivência de uma comunhão e corresponsabilidade maior entre os bispos. Surge uma
teologia em que a Igreja é povo de Deus em comunhão, e expressa a relação de
Pai, Filho e Espírito Santo, entre si e conosco, como modelo na perspectiva de
abertura aos outros, da nossa relação com o transcendente, com a natureza e com
a realidade.
Muita gente gostaria de um novo concílio.
Não conseguimos implementar tudo, mas há renovação dentro das igrejas, com
pequenas experiências nos movimentos e comunidades, nas paróquias, nas
organizações eclesiais, nas obras em que os responsáveis agem com seus dons
pessoais, fazendo caminho para a experiência de Deus (espiritualidade).
Padre Sérgio Costa Couto (Arquidiocese do Rio de Janeiro)
Encontramos muito progresso, mas aqui e ali alguma coisa descarrilou. Devemos retomar seus textos, que ainda têm muito a nos falar.
Encontramos muito progresso, mas aqui e ali alguma coisa descarrilou. Devemos retomar seus textos, que ainda têm muito a nos falar.
“Poucas vezes, ao longo de sua história,
teve a própria Igreja, e todos os observadores de boa vontade, tão forte
sensação de ser movida por uma grande esperança”. Esta observação otimista foi
de Joseph Lortz, em 1965. Não é apenas a palavra de um historiador sério que
reflete sobre a documentação, mas o ânimo de um padre que vivia aquele momento
do Concílio Vaticano II. Segundo historiadores e testemunhas, o clima de
universalidade superava as divergências.
Os documentos, acaloradamente discutidos e
emendados, eram por fim aprovados com maiorias espantosas: mais de 2.000 votos
contra três ou quatro, por exemplo! Contudo, a Igreja também vive no seu tempo.
Não conseguimos evitar as influências do “mundo”. Algumas são melhores do que
outras. Em 1968, em pleno processo de aplicação das disposições conciliares,
somos atingidos por um ambiente de revolução. Os documentos eram cada vez menos
lidos, superados por um “espírito do concílio”, que, como jovem rebelde e
inconsequente, recusava a própria e milenar herança.
Nestes 50 anos, encontramos muito
progresso, mas aqui e ali alguma coisa descarrilou. Devemos retomar seus
textos, que ainda têm muito a nos falar. No Vaticano II, temos uma orientação
para nossa época, como o Concílio de Trento o fez para a sua. Durante os
pontificados de Paulo VI, João Paulo II (sobretudo) e Bento XVI não faltaram
documentos urgindo, corrigindo e exortando, segundo a necessidade do momento.
Quantos os conhecem? Penso ser este o problema de nosso tempo: a Igreja se
expressa, mas a sua expressão chega fragmentada; cada um lê o que quer. Nossa
missão é apresentar a fé cristã ao homem de hoje, mas fazê-lo com tranquilidade
e sem esconder que algumas de suas exigências podem pesar, mas nunca serão
impossíveis com a graça de Deus.
Novos rumos para velhos dogmas
O Concílio Vaticano II tentou manter o catolicismo sintonizado com um
mundo que mudava vertiginosamente. Mas terá sido bem interpretado?
Até a década de 1960, o padre celebrava a
missa em latim e de costas para os fiéis. Neste mesmo período, a Igreja
Católica afirmou que a separação entre o Estado e a religião era um fruto
positivo da filosofia moderna. Estas e outras profundas transformações abalaram
alguns importantes alicerces em que a Igreja de Roma se baseou a partir do
século XVI, com o Concílio de Trento (1545-1563). Era a crise da identidade
tridentina, levada a termo com a realização do Concílio Vaticano II
(1962-1965), o maior evento religioso do século passado, a 21ª grande reunião
de bispos e alguns religiosos de todo o mundo com o intuito de discutir os
rumos que a Igreja deve tomar.
A Igreja foi se isolando e se fechando
desde o século XVI, primeiramente como reação ao cisma protestante, que adveio
das inquietações teológicas de Martinho Lutero (1483-1546), e, posteriormente,
ao pensamento liberal e à doutrina comunista. Tornava-se uma “fortaleza
sitiada”, interpretando a emergência da modernidade como um grande mal que se
abatia sobre o cristianismo. No século XIX e no início do XX, esta tendência
foi reforçada ainda mais com os papas Gregório XVI (1831-1846), Pio IX
(1846-1878) e Pio X (1903-1914), que lançaram inúmeras condenações contra os
principais elementos da cultura moderna, ficando conhecida como ultramontana,
“detrás os montes”, ou seja, referente àqueles que estão aquém dos Alpes, com
Roma e apoiando todas as decisões do Sumo Pontífice. Porém, essa tendência
passou a conviver com diferentes movimentos no seio do catolicismo que, ao
contrário, defendiam uma Igreja capaz de dialogar com o mundo, mais aberta à
participação do fiel em suas atividades, e que respondesse de forma mais
plausível aos desafios do mundo.
Quando o Concílio Vaticano II foi
convocado, o mundo já estava bem diferente daquele dos séculos anteriores: já
vira duas grandes guerras, o surgimento do nazifascismo, a emergência e a
consolidação de Estados comunistas por todo o mundo, a concretização das
democracias liberais, o desenvolvimento dos meios de comunicação, a
liberalização moral, o pluralismo religioso e a diminuição da influência das
instituições religiosas na esfera pública. O Vaticano II foi a resposta da
Igreja aos novos desafios colocados pelo novo mundo que surgia. Ou seja, uma
grande tentativa de atualizar a Igreja – realizar seu aggiornamento,
palavra em italiano que significa atualização, muito utilizada pelos bispos e
religiosos participantes do concílio.
O fato é que este concílio se diferenciou
de todos os anteriores, pois não tinha sido convocado para condenar uma forma
de se pensar e agir, nem para promulgar dogmas, como acorrera nos vinte já
então realizados. Em quatro anos, de 1962 a 1965, inúmeras questões doutrinais,
morais e políticas foram debatidas em uma assembleia instalada na nave central
da Catedral de São Pedro, no Vaticano, com a presença de milhares de bispos e
religiosos, vindos dos quatro cantos do planeta. A Igreja precisava dar uma
resposta a esse mundo em transformação, reafirmar seu papel na
contemporaneidade e apontar novos rumos. Precisava demonstrar que não era uma
instituição tradicional e milenar já sem contato com a realidade circundante e
sem ressonância no mundo.
Foram debatidos temas que mudaram
significativamente o rosto do catolicismo. Pretendia-se passar de uma Igreja
fechada em si mesma a uma Igreja aberta ao mundo, capaz de seguir sua missão,
levando a mensagem evangélica a todos os confins do mundo, e assim aprender com
ele. Uma profunda mudança de compreensão de si mesma, que ainda se continua a
sentir.
A assembleia produziu quatro
constituições, nove decretos e duas declarações. Um ponto de seus documentos
mais centrais, a Constituição Pastoral Gaudium et spes (07/12/1965),
afirma que a Igreja “está firmemente persuadida de que pode receber preciosa e
diversificada ajuda do mundo, não só dos homens em particular, mas também da
sociedade, dos seus dotes e atividades (…) caminha juntamente com a humanidade
inteira. Experimenta com o mundo a mesma sorte terrena”. Com essa ideia,
entendia-se o mundo moderno não mais como um inimigo a ser combatido, mas –
naquilo em que trazia de positivo em relação ao homem e seus maiores dramas –
um aliado.
As principais questões discutidas foram as
litúrgicas, isto é, aquelas relativas aos ritos do catolicismo; questões
ecumênicas, sobre as relações entre os cristãos separados; sacerdócio; a
missão; a educação; o diálogo inter-religioso e a liberdade religiosa. Entre
estes temas, uma nova perspectiva é assumida, consolidando a imagem de “Povo de
Deus”, a imagem de todos o fiéis, que agora são compreendidos como aqueles que
exercem um “sacerdócio comum nos Sacramentos”. O lugar dos leigos é elevado a
uma importância jamais assumida na história do catolicismo.
Mas o caminho que levou à promulgação dos
textos finais e seus avanços foi marcado por tensões entre sensibilidades
diversas no interior do concílio. Logo apareceram grupos que buscaram orientar
o concílio em suas decisões. Dois deles se mostraram extremamente aguerridos
para fazer valer suas posições nos resultados finais: um, mais progressista,
com a presença maciça de bispos de Alemanha, Áustria, Bélgica, Holanda e da
América Latina, inclusive do Brasil, como Hélder Câmara (1909-1999), que
defendiam uma distensão entre a Igreja e os valores modernos; e outro, que pode
ser chamado de conservador e era minoria, com a presença marcante de italianos,
ligados à Cúria Romana, franceses, norte-americanos e também alguns
brasileiros, como Geraldo de Proença Sigaud (1909-1999) e Antônio de Castro
Mayer (1904-1991). Além destes três bispos, que desempenharam importantes
papéis no concílio, o Brasil teve mais 243 representantes, entre eles José Ivo
Lorscheiter (1927-2007), Jaime de Barros Câmara (1894-1971), Eugenio de Araujo
Sales (1920-2012) e Clemente José Carlos Isnard (1917-2005).
Durante as reuniões, houve um crescente
embate entre essas duas concepções, que acabou resultando em um movimento de
conquista das mentes dos padres conciliares a partir de palestras, encontros e
até mesmo panfletagem. O grupo que saiu “vitorioso” do concílio foi aquele
defensor do diálogo com o mundo moderno, reconhecido como a “maioria
conciliar”, pois conseguiu inserir nos textos finais a sensibilidade que os
marcava, especialmente a compreensão de que o concílio não deveria condenar
abertamente nenhuma corrente moderna de pensamento. Porém, a “minoria
conciliar” – desejosa, entre outras coisas, de um novo dogma mariano, da
manutenção da liturgia do Concílio de Trento e de uma condenação formal do
comunismo – conseguiu inserir seus posicionamentos em alguns trechos dos textos
finais.
As resoluções conciliares foram
encontrando aplicação progressiva sob o comando do papa Paulo VI nos anos que
se seguiram ao final do concílio, em dezembro de 1965. Porém, as posições
contrárias presentes nos debates conciliares estenderam-se ao período
posterior. Por um lado, grande entusiasmo e otimismo disseminavam-se em alguns
meios, e, junto de alguns deles, também posicionamentos teológicos e litúrgicos
que excediam em muito as determinações do concílio. De outro, aqueles não tão
otimistas, defensores de uma aplicação calma e cautelosa, além dos que, como
Marcel Lefebvre e Antonio de Castro Mayer, radicalizam seu discurso assumindo
uma posição anticonciliar, afirmando inclusive ser o concílio ilegítimo.
Hoje, entre os historiadores do
catolicismo, há discussões sobre os significados do Concílio Vaticano II, sua
atualidade, ou se um novo concílio se faz necessário. A questão central se
debruça sobre os papados de João Paulo II (1978-2005) e Bento XVI. O primeiro
cumpriu e o segundo cumpre os programas do concílio? Ou, ao contrário, como
defendem alguns, eles dificultaram sua aplicação ao interpretar o concílio de
maneira restrita?
Rodrigo Coppe Caldeira é
professor da PUC-MG e autor de Os baluartes da tradição: o
conservadorismo católico brasileiro no Concílio Vaticano II (CRV,
2011).
Saiba Mais - Bibliografia
ALBERIGO, Giuseppe. Breve
História do Concílio Vaticano II. Aparecida: Santuário, 2006.
BEOZZO, José Oscar. A
Igreja do Brasil no Concílio Vaticano II. São Paulo: Paulinas, 2005.
Saiba Mais – Links
Em defesa de
uma Igreja Católica acuada pela Reforma Protestante, os jesuítas ganharam o
mundo.
Desde o
início
Cristãos-novos
chegaram com portugueses no século XVI e se integraram rapidamente à sociedade
da época.
Uma escolha
de fé?
Em “Habemus
Papam”, papa foge na hora de assumir o cargo com medo de não ser apto para
liderar a Igreja. Filme faz uma leve caricatura dos bastidores do conclave e
problematiza a situação da Itália hoje
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