A África do Sul não foi o único país a ter segregação racial como
política de Estado, mas foi um dos mais sangrentos.
A trajetória desses dois homens se cruzou
a partir da luta por autonomia de seus países. Samora Machel foi o primeiro
presidente de Moçambique independente, depois de uma guerra contra os
portugueses que durou mais de dez anos; Nelson Mandela, líder do Congresso
Nacional Africano, condenado a prisão perpétua em 1962 por alta traição por
combater o Apartheid , na África do Sul.
O regime do Apartheid,
“segregação” na língua africâner, foi implantado pelo primeiro-ministro Hendrik
Verwoerd em 1948. Este sistema político defendia o desenvolvimento
político separado e uma supremacia branca em relação a todos os diferentes
grupos que compunham a população nacional: negros das diferentes etnias,
mestiços e outros imigrantes não-brancos, como os indianos. Era herdeiro
de uma ideologia cujas origens remetiam também a doutrina religiosa dos
primeiros colonizadores da região, os africânderes - descendentes dos bôeres,
holandeses que se estabeleceram durante o século XVII no Cabo da Boa Esperança.
A comunidade que lá se formou desenvolveu
cultura e língua própria (o africâner), e um calvinismo particular, que os
fazia acreditar que eram eleitos por Deus. Isso legitimava a ocupação do
território e expulsão dos negros porque sua missão era preservar as diferenças
“naturais” das raças. Misturá-las ou igualá-las seria contrariar a lei divina.
A presença britânica na África do Sul
acentuou ainda mais o abismo existente entre a população negra e os brancos. Ao
tomarem o cabo dos bôeres em 1815, os ingleses forçaram uma intensa migração
para além do rio Orange, o maior da África do Sul. Essa migração contou com um
confronto direto entre os africânderes com os povos xhosas, suazis e zulis que
habitavam a região, com um massacre destas populações.
Apenas
em 1910 houve uma reconciliação entre ingleses e africânderes e surgiu União
Sul-Africana, cuja liderança política era a dos descendentes dos bôeres. A
legislação desse novo país excluía os direitos dos que não tinham ascendência
europeia, limitando o acesso de terras aos negros, mestiços e indianos a apenas
8% do território sul-africano. A eles restavam apenas as regiões menos férteis
e sem jazidas de minerais.
Por mais espantoso que isso possa parecer
nos dias atuais, a África do Sul não foi o único país a adotar a segregação
como política de Estado. Além do caso mais óbvio da Alemanha de Hitler, ou das
leis segregacionistas do sul dos EUA que vigoraram até a década de 1960, outras
colônias europeias na África também governavam deste modo.
Diferente da imagem idílica construída por
Gilberto Freyre a respeito da colonização portuguesa na África, grande parte
das colônias lusitanas possuía um estatuto especifico para a população negra. O
Estatuto do Indigenato, decretado em 1954, é o exemplo mais claro disto, já que
classificava a população negra em indígenas e assimilados.
Assim como o processo de subjugação dos
negros na África tem a ver com a constituição história desses países, a luta
contra isto também é muito antiga. Na África do Sul, antes da I Guerra
Mundial, alguns grupos de negros tentaram o apoio de Londres contra essas
medidas tão restritivas. Sem sucesso.
Em 1912 foi fundado o Congresso Nacional
dos Nativos Sul-Africanos, que na década de 1920 se transformou no Congresso
Nacional Africano. Esta foi uma das organizações mais importantes da luta
contra o Apartheid. Outros grupos também se organizaram como A
Organização Política Africana (1902), que reunia mestiços, e o Congresso
Indiano Sul-Africano (1912), formado por imigrantes indianos.
A oposição à política de Estado se
intensificou quando o regime se radicalizou ainda mais. A partir de 1930 muitos
africânderes embarcaram para Alemanha para concluir os seus estudos. Ao terem
contatos com a política de Hitler, notaram a possibilidade de conciliar prática
e discurso, possibilitando justificar e tornar “legítimos” argumentos que antes
eram baseados apenas na religião.
Ao retornarem à África do Sul, esses
brancos sul-africanos desenvolveram o “nacional-cristianismo”, além de um
sistema que pudesse “proteger” a raça e a cultura africânder. Esta foi a ideia
principal do Partido Nacionalista, criado em 1938, e que venceu as eleições e
assumiu o governo no final da década de 1940.
Ao assumirem o poder, os nacionalistas
impuseram leis ainda mais restritivas como as que proibiam as relações sexuais
e casamento interraciais, e as que separavam as residências por categorias
raciais: os não-brancos deveriam viver em reservas. Além disso, restringiam o
acesso aos negros a todas as áreas das cidades e os obrigavam ao uso de
passaporte. Desobedecer estas ordens significava prisão e condenação.
Toda tentativa de oposição ao governo foi
reprimida de maneira truculenta como a destruição do bairro de Sophiatown, em
que 60 mil pessoas foram expulsas de suas casas. Ou o massacre de Shaperville,
em 1960, quando 70 pessoas foram mortas e 250 feridas. Ou, ainda, em 1976, em
Soweto, quando crianças e jovens foram mortos por reivindicarem um ensino de
qualidade. Em 20 anos de regime, há uma estimativa de 2 milhões de pessoas
removidas de suas moradias, 4 milhões presas por não portarem o passaporte e 7
mil prisioneiros políticos.
Até a década de 1960, as denúncias feitas
à Organização das Nações Unidas (ONU) não surtiram efeito: países como EUA e
Inglaterra se colocavam indiferentes ao problema, já que as relações comerciais
com a África do Sul eram mais importantes que as preocupações humanitárias.
No entanto, a partir deste período houve
uma mudança no cenário internacional com uma crescente valorização de ideais
como democracia, desenvolvimento nacional e justiça social. A opinião pública
fora da África do Sul passou a criticar esse regime, motivando protestos em
outros países. Diante das crescentes animosidades ao regime, a África do Sul
deixou de fazer parte do conjunto de países que compunham a Commonwealth, grupo
transnacional formado prioritariamente por ex-colônias britânicas, e se
declarou república independente em 1961. Com isso manteve a política de segregar
e reprimir violentamente sem qualquer contestação.
A política internacional na década de 70
contribuiu para mudar os rumos do Apartheid. Diante da situação de
extrema pobreza e caos social, a ONU decretou o embargo ao fornecimento de
armas para o país e em seguida recomendou aos países membros o boicote ao
fornecimento de petróleo. Em 1974, o país foi excluído da Assembleia Geral da
ONU.
As sanções internacionais não se limitaram
à ONU. O país foi boicotado nos esportes e nos encontros internacionais sobre
educação, cultura e leis trabalhistas. Na década de 80, ocorreram as punições
econômicas. Diante deste cenário, o regime passou a adotar medidas
completamente contraditórias como a ampliação de certos direitos a população
asiática, ao mesmo tempo em que aumentava a repressão contra todos
sul-africanos sem ascendência europeia.
O Apartheid ainda durou
até 1992, quando o seu término foi aprovado pela população branca durante o
governo de Frederik de Klerk. O país só conheceu eleições livres em 1994, em
que Nelson Mandela foi eleito o primeiro presidente negro da África do Sul,
instaurando um governo de unidade nacional, com garantias de que não
aconteceria uma guerra de cunho racial. A África do Sul, enfim, era de todos
sul-africanos.
Quatro anos depois, Mandela se casou com
Graça Machel, viúva de Samora. Mais uma vez a trajetória desses heróis se
cruzaram, ainda que em diferentes planos.
Cristiane Nascimento é pesquisadora da Revista de História
da Biblioteca Nacional.
Saiba Mais - Bibliografia
Hernandez,
Leila Maria Gonçalves. A África na sala de aula: visita à
história contemporânea. São Paulo: Selo Negro, 2005
Saiba Mais - Internet
FRY,
Peter. Culturas da diferença: seqüelas das políticas coloniais portuguesase
britânicas na áfrica austral. Afro-Ásia, 29/30 (2003), 271-316.
MAZRUI,
Ali A (Ed.). Coleção História Geral da África. Brasília: UNESCO,
Secad/MEC, UFSCar, 2010. Vol. VIII.
Saiba Mais – Link
Saiba Mais – Filmes
Um Grito de Liberdade (Cry Freedom)
A história de uma amizade
memorável entre dois homens inesquecíveis. A tensão e o terror da atualidade da
África do Sul é poderosamente retratada neste emocionante filme realizado por
Richard Attenborough, que nos conta a história de um ativista negro Stephen
Biko (Denzel Washington) e de um editor liberal de um jornal branco que arrisca
a sua própria vida para divulgar ao Mundo a mensagem de Biko. Depois de ter
conhecimento dos verdadeiros horrores do Apartheid,
através das descrições de Biko, o editor Donald Woods (Kevin Kline) descobre
que o seu amigo foi silenciado pela polícia. Determinado a fazer ouvir a
mensagem de Biko, Woods embarca numa perigosa aventura para escapar da África
do Sul e divulgar ao mundo a impressionante história de coragem de Biko. A
fascinante história mostra as facetas da humanidade nas suas vertentes mais
terríveis e mais heroicas.
Direção: Richard
Attenborough
Áudio: Inglês/Legendado
Duração: 157 minutos
Em Nome da Honra (Catch a Fire)
Os
tempos são difíceis para os negros da África do Sul, mas Patrick Chamusso (Derek
Luke) tem a sua casa, sua família, e um bom emprego na refinaria de óleo de
Secunda. Ele não quer tomar partido no movimento anti-Apartheid, preferindo ao invés disto, levar uma vida comum.
Patrick está ausente do trabalho quando terroristas tentam explodir a
refinaria. Ele tirou o dia de folga para assistir o time de futebol que ele
treina jogar na final, e para visitar secretamente o filho que tem com sua
ex-namorada. Nic Vos (Tim Robbins), um policial branco que tenta manter a ordem
em situações voláteis, prende Patrick e dois trabalhadores negros. Para manter
o seu casamento, Patrick esconde o álibi que poderia salva-lo, até que a esposa
é presa e espancada e ele mente que ajudou os terroristas. Mas Vos percebe a
mentira em sua confissão e o liberta. Patrick volta para casa transtornado, e
se junta aos ativistas na luta por um novo país.
Direção: Phillip Noyce
Áudio: Inglês/Legendado
Duração: 110 minutos
Mandela Luta Pela Liberdade (Goodbye Bafana)
Direção: Bille August
Áudio: Inglês/Legendado
Duração: 140 minutos
Em Minha Terra (Country of My Skull)
Direção: John Boorman
Ano: 2004
Duração: 105 minutos
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