Explorando
contrastes estéticos e propondo uma forma mais colorida de se entender o país,
o movimento tropicalista virou pelo avesso a cultura popular brasileira no
final dos anos 60.
“Por entre fotos e nomes/ os olhos cheios de cores...” Os versos de Caetano Veloso, embalados pelas guitarras
estridentes, sacudiam as jovens tardes de domingo da nascente mídia eletrônica
no final de 1967. Nascia o Movimento Tropicalista, com a proposta de engolir
tudo que se repudiava como kitsch ou rançoso, produzindo uma nova forma, muito
mais colorida, de enxergar as coisas, de entender o país, de assumi-lo
ambiguamente como antigo e moderno ao mesmo tempo.
Em vez do nacionalismo, sugeria pensar a
cultura local em diálogo permanente com a cultura universal; em vez de algo
impalpável tratado como popular, lidar com a realidade concreta das massas
urbanas e de seus meios de comunicação. Propunha, enfim, a contaminação do
cenário popular pelo show business, associando-se a guitarra do rock de Jimi
Hendrix e dos Beatles ao berimbau da capoeira e à sanfona do baião de Luiz
Gonzaga. E, heresia das heresias, para a crítica cultural da época,
apresentar-se no Programa do Chacrinha, um ícone popular da televisão e do mau
gosto.
Pouco menos de quarenta anos antes, o
poeta Oswald de Andrade, num tom muito semelhante, havia escrito o “Manifesto
Antropófago”. No “Manifesto”, Oswald propunha uma experiência de contaminação
com as culturas que nos cercam, o que condiz com a estética e a prática
tropicalistas. Quatro anos antes, no “Manifesto da Poesia Pau-Brasil”, ele já
ensaiava essa linha de entendimento do país, numa visão do Brasil em cores, e
não em preto-e-branco. Dizia Oswald no manifesto publicado pelo "Correio
da Manhã" em 1924: “Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da favela,
sob o azul cabralino, são fatos estéticos”.
Quatro anos antes, no “Manifesto da Poesia
Pau-Brasil”, Oswald já recusa o entendimento linear, fechado, para interpretar
o país. A inspiração da filosofia nietzschiana não acaba nesse retrato do
Brasil em que colaboram o erudito e o popular, o elevado e o carnavalesco,
pois, de maneira irreverente, Oswald critica a tradição antiquária e
bacharelesca há muito entranhada entre nós, como o “lado doutor, o lado
citações, o lado autores conhecidos”; “Rui Barbosa: uma cartola na Senegâmbia”;
as “frases feitas”; o “falar difícil” e “os homens que sabiam tudo [e que] se
deformaram como borrachas sopradas”. Oswald então investe contra o
“gabinetismo” e “a prática culta da vida” propondo uma linguagem fragmentada e
não-erudita: “Como falamos. Como somos.” E a alquimia tropicalista da união de
contrários já se encontra presente no projeto modernista de Oswald, que reúne o
primitivo (“Bárbaros, crédulos, pitorescos e meigos”) e o moderno (“Leitores de
jornais”), “a floresta e a escola”, o “dorme nenê que o bicho vem pegá” e as
“equações”.
Retomando a discussão sobre o Movimento
Tropicalista, seria interessante pensá-lo a partir de sua diferença com a bossa
nova, gênero predominante até então como proposta na música brasileira. O estilo
bossa-nova, que tinha surgido em 1958, é contemporâneo de uma proposta
desenvolvimentista para o país, com a ascensão de Juscelino Kubitschek e a
construção de Brasília.
O projeto dos arquitetos Oscar Niemeyer e
Lúcio Costa para Brasília vinha ao encontro de um certo consenso que havia
entre artistas e intelectuais sobre a possibilidade de se criar nessa linha um
projeto cultural para o país.
O fato é que a linguagem moderna de João
Gilberto e Tom Jobim, entre outros, tinha tudo a ver com o traço de Niemeyer,
de busca de uma linguagem artística objetiva e funcional, que cortasse qualquer
excesso. Por isso, esses intérpretes e compositores recusavam os estilos
musicais da geração anterior, ligados, principalmente, à Rádio Nacional,
considerados exagerados, operísticos e melodramáticos. Não por acaso a
gravadora Elenco, uma das mais modernas da época, contrata o designer César
Vilella para introduzir nas capas de discos uma outra concepção de design,
usando desenhos geométricos e fotografias em alto contraste em preto-e-branco,
em contraposição às fotos coloridas e formais dos intérpretes. Tudo muito
afinado com o estilo contido dos cantores e com o desempenho discreto no palco
à base de banquinho e violão.
O advento do Movimento Tropicalista reintroduz
estrategicamente no cenário a rejeição ao que já tinha sido recusado dez anos
antes pela bossa nova, o que se entendia como sendo uma estética excessiva,
borrada de tinta pelo kitsch. Não só isso: sugere a ambiguidade, juntando o
jeito clean de João Gilberto ao “sujo” de Vicente Celestino; o intimismo da voz
limpa de Nara Leão com a extroversão do Chacrinha; o fino da poesia concreta ao
brega dos boleros; o purismo nacionalista dos sons regionais nordestinos às
informações trazidas de fora pelo rock. Os artistas baianos redescobriram
Oswald e um país rico de contrastes. Essa sensibilidade se manifesta no filme
"Terra em Transe", de Glauber Rocha, na peça "O Rei da
Vela", do Grupo Oficina, na atuação desafiadora do artista plástico Hélio
Oiticica e no desempenho, nas canções e nos figurinos, do que à época se chamou
de Grupo Baiano, virando pelo avesso o que se entendia por cultura popular
brasileira.
Caetano, em entrevista ao poeta Augusto de
Campos, em abril de 1968, sugere ser possível a criação e a inventividade no
circuito de comunicação de massa, verdadeiro tabu naquele momento. O cantor e
compositor argumenta que o artista de sua época tem duas escolhas possíveis: ou
adere aos meios de comunicação ou se dedica à pesquisa “pura”, não contaminada
pelos interesses vulgares da mídia.
Se a primeira opção, raciocinava Caetano,
envolveria um compromisso do artista para com o patrocinador, o gosto do
público e outros entraves à sua liberdade de experimentação musical, ela
solucionaria, por outro lado, o risco de se cair, justamente em decorrência de
um excesso de resguardo, numa espécie de ostracismo no cenário cultural. É a
partir dessa reflexão que Caetano assume radicalmente os novos meios de
comunicação, pois, embora atuassem como “freio”, se constituiriam em via
privilegiada, no mundo contemporâneo, para o exercício de inovações musicais.
Apesar dos entraves postos no caminho do músico, os novos meios de comunicação
não seriam mais perniciosos do que o excesso de seriedade – atitude assumida,
segundo Caetano, pelos criadores da bossa nova ao longo da década de 60.
Assim, numa tomada de posição contra o
excesso de austeridade, Caetano procura conciliar João Cabral e Oswald de
Andrade, o rigor e a alegria, a experimentação e o deboche, a “informação” e a
“redundância”, ou, como lembra Augusto de Campos, “o fino e o grosso”. Nessa
entrevista, Caetano define o tropicalismo como um “neoantropofagismo”.
Hélio Oiticica fez coro com os músicos
baianos ao adotar radicalmente a perspectiva estética de Oswald de Andrade na
busca de uma nova imagem para a cultura brasileira. Sua formação se inicia como
artista plástico ligado aos projetos construtivistas, lidando com as ideias de
contenção e equilíbrio presentes no neoconcretismo, movimento carioca das artes
plásticas de que participou no final da década de 50. A partir de 1964,
Oiticica revolucionou sua vida e obra através de sua experiência com os
casebres “nos verdes das favelas”, que, como Oswald, eram vistos por ele como
“fatos estéticos”. E foi naquele ano que ele conheceu o morro da Mangueira,
seus moradores, sua escola de samba e seu carnaval. Tornando-se frequentador do
morro e passista da escola, Oiticica procurou enxergar a favela e sua população
com “olhos livres”. Os barracos e as manifestações culturais dos moradores do
morro eram vistos por ele para além de seus aspectos folclóricos na cultura
popular brasileira, pois foi a partir da descoberta da Mangueira que sua obra
se voltou definitivamente para o uso inovador do corpo e para a participação do
espectador nas suas instalações. Trabalhos como os Parangolés e conceitos como
o Crelazer abriram novos horizontes para as artes e para a cultura brasileira,
ligando-se diretamente às suas andanças pelas favelas cariocas. Sua identificação
com a Mangueira, suas vielas e barracos foi consequência de uma trajetória
artística que sempre questionou padrões acadêmicos pré-definidos. A obra
Tropicália, de 1967, foi a síntese estética dessa revolução.
Em textos escritos sobre o tropicalismo, Oiticica
destacou o projeto de modernização da música popular de Caetano Veloso e
Gilberto Gil. Afirmava que suas ações ganhavam contornos “dramáticos”, pois
levavam para a arena da cultura de massas temas ligados aos “problemas
universais na arte de vanguarda”. Esse era um debate que, até o surgimento dos
músicos, travava-se apenas nos meios acadêmicos ou na crítica cultural
especializada. Para Oiticica, as manifestações de Gil, Caetano e os Mutantes
não eram simples apresentações de músicos. Quebrando os padrões estéticos que
imperavam no show business brasileiro da época, ainda ligados ao estilo de
contenção e refinamento da bossa nova, os tropicalistas não mais vestiam
smoking em suas performances. Também dispensavam em suas apresentações o banco
servindo de apoio ao violão e uma orquestra ou conjunto musical discreto no
fundo do palco. Os tropicalistas adotaram inovações, como o uso de guitarras,
amplificadores, cenários e figurinos. O excesso banido pelos anos da bossa nova
voltava à cena, fazendo parte de uma organização estratégica em que tais
elementos não eram apenas acessórios “aplicados sobre uma estrutura musical”,
mas sim uma síntese criativa de diferentes áreas da arte, como a música, o
teatro e as artes plásticas. Oiticica observava em várias frentes – shows,
capas de disco, roupas – a existência de uma linguagem visual complexa e
universal. No palco tropicalista, “os elementos não se somam como 1+1=2, mas se
redimensionam mutuamente”. Nos trabalhos e apresentações dos baianos – e no seu
trabalho também – o artista plástico procurou ir ao encontro dos elementos
descritos por Oswald em “Pau-Brasil”: a “síntese”, o “equilíbrio”, a
“invenção”, a “surpresa”, uma “nova escala” e uma “nova perspectiva”.
O tropicalismo rompeu radicalmente com o
país em preto-e-branco, contido e de smoking, e inaugurou um país colorido,
fragmentado e universal, criando uma nova imagem para o Brasil. A cor local é
recuperada, sem dúvida, embora não atenda a expedientes exóticos,
folclorizantes. Mesmo porque o movimento incorpora, como prescrevia Oswald de
Andrade no “Manifesto da Poesia Pau-Brasil”, “o melhor da nossa tradição
lírica” – como as canções sentimentais e melodramáticas divulgadas pela Rádio
Nacional –, sem deixar de contemplar “o melhor da nossa demonstração moderna” –
como as canções da bossa nova interpretadas por João Gilberto. O tropicalismo,
paradoxalmente, adotou uma prática colorida e aberta o suficiente para incluir
a estética cool do preto-e-branco. É como se o receituário de Oswald, no
sentido de sermos “apenas brasileiros de nossa época”, não se completasse sem o
modelo de desafinação legado pelos bossa-novistas. Segundo Caetano, em “Saudosismo”, canção de 1968, os tropicalistas teriam aprendido
com João Gilberto “pra sempre a ser desafinados”.
Santuza
Cambraia Naves é autora de “Da bossa nova à tropicália”. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 2001, e professora do Departamento de Sociologia e Política da
PUC-Rio.
Frederico
Oliveira Coelho é doutorando em Letras na mesma instituição. Ambos integram o
Núcleo de Estudos Musicais – CESAP/UCAM.
Saiba
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Não à guerra
civil
Sem resistir ao golpe, João Goulart partiu para o exílio e evitou uma luta sangrenta entre reformistas e golpistas.
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A salvação
da pátria
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O sol sem
peneira
O apoio da sociedade civil foi fundamental para a longa vida da ditadura militar no Brasil.
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Saiba
Mais Filmes
Tropicália
Áudio: Português
Duração: 89 minutos
Futuro do Pretérito: Tropicalismo Now!
Este documentário traz um
olhar direcionado para um dos movimentos culturais mais efervescentes da
história do Brasil, a Tropicália. O filme reúne entrevistas, intervenções
artísticas, esquetes e imagens do show de André Abujamra, criando uma ligação
entre os eventos ocorridos no final da década de 1960 e os dias atuais.
Áudio: Português
Duração: 76 minutos
Uma noite em
67
Filme sobre a final do III
Festival da Música Popular Brasileira da TV Record, 21 de outubro de 1967, que
revolucionou a música brasileira. Entre os candidatos aos principais prêmios
figuravam Chico Buarque de Holanda, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Mutantes,
Roberto Carlos, Edu Lobo e Sérgio Ricardo, protagonista da célebre quebra da
viola no palco. As músicas: "Roda Viva", "Ponteio",
"Alegria, Alegria", "Domingo no Parque". Com imagens de
arquivo e apresentações de músicas hoje clássicas, o filme registra o momento
do tropicalismo, os rachas artísticos e políticos na época da ditadura e a
consagração de nomes que se tornaram ídolos.
Áudio: Português
Duração: 85 minutos
Terra Em
Transe (1967)
Direção: Glauber Rocha
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