Concebida a partir de um modelo autoritário, desde os tempos de D. João
VI a polícia desperta medo e desconfiança na população.
Não
era, com certeza, uma tarefa simples. Acomodar na cidade do Rio de Janeiro o
príncipe regente e seu séquito significava encontrar, num curto espaço de
tempo, locais suficientes para hospedar de 12 a 15 mil pessoas. Mas o primeiro
intendente de polícia Paulo Fernandes Viana a desempenhou com habilidade, em
virtude dos amplos poderes que lhe eram atribuídos. Coube a ele garantir o
cumprimento da lei das aposentadorias, que obrigava aquele que tivesse sua casa
marcada com as letras PR, isto é “Príncipe Regente” (ou, como interpretava o
povo, “Ponha-se na Rua” ou ainda “Prédio Roubado”), a entregar o imóvel para a
acomodação dos recém-chegados.
A Intendência Geral de Polícia fora criada
pelo Alvará de 10 de maio de 1808, dois meses depois de a Corte portuguesa
aportar no Rio de Janeiro. Mantendo a mesma jurisdição que esse órgão tinha em
Portugal, a atuação da polícia compreendia, além da manutenção da ordem
pública, o cuidado com o espaço urbano, incluindo a responsabilidade de prover
a limpeza, a salubridade, a iluminação, o arruamento da cidade, o abastecimento
de água. A Intendência tinha também autoridade judicial sobre delitos que
ameaçavam a ordem urbana, julgando e punindo os desordeiros, desocupados,
escravos fugidos, capoeiras, ciganos, aventureiros.
Responsável pelo cargo até 1821, Paulo
Fernandes Viana, entre outras providências, organizou a Guarda Real de Polícia
da Corte, integrada pelo famoso major Miguel Nunes Vidigal (1745-1843), que foi
imortalizado em Memórias de um Sargento de Milícias. O aviso de “Lá
vem o Vidigal!” provocava fugas e tumultos. A chibata, arma usada por seus guardas,
é que dava início à ação policial. Assim escreve Manuel Antônio de Almeida
(1831-1861) no seu romance: “O Major Vidigal era o rei absoluto, o
árbitro supremo de tudo o que dizia respeito a esse ramo de administração, era
o juiz que julgava e distribuía a pena, e ao mesmo tempo o guarda que dava caça
aos criminosos; nas causas da sua imensa alçada não havia testemunhas, nem
provas, nem razões, nem processo; ele resumia tudo em si; a sua justiça era
infalível; não havia apelação das sentenças que dava; fazia o que queria e
ninguém lhe tomava as contas. Exercia, enfim, uma espécie de inquisição
policial”.
A ação violenta e arbitrária da polícia
nessa época já era criticada por contemporâneos, como o jornalista Hipólito
José da Costa (1774-1823), que escrevia, de Londres, o Correio
Braziliense. Incomodado particularmente com a inclusão da censura à
imprensa nas atribuições da Intendência, Hipólito criticava os excessos
cometidos no Brasil, confrontando-os com as leis inglesas.
E, de fato, a criação da Polícia
Metropolitana de Londres pelo ministro do Interior, Sir Robert Peel
(1788-1850), em 1829, marcaria o surgimento de um outro modelo de polícia, cuja
missão básica era prevenir o crime e a desordem, como alternativa à repressão
pela força militar e à severidade da punição legal. Essa nova visão levaria à
construção de um outro conceito de segurança, entendida como um bem público e
universal, que deveria ser garantido pelo Estado sob a forma de um serviço
oferecido à sociedade, sem distinção de classe social e sem interferência da
política local.
No Brasil, o surgimento das instituições
policiais teve como característica principal a ação repressiva voltada para a
manutenção da ordem pública diante da crescente diversidade social e étnica do
século XIX. O poder discricionário da polícia se tornou liberdade de ação
frente aos preceitos legais e normativos, e o arbítrio foi considerado o
principal instrumento de controle e manutenção da segurança do Estado, gerando
uma tradição de desrespeito aos direitos individuais. O excesso de poder
revelou-se uma característica quase “natural” do exercício da autoridade
policial, funcionando como um mecanismo de aplicação extralegal da justiça.
Esse padrão prevaleceu por toda a época
imperial e resistiu às mudanças republicanas, que não conseguiram garantir os
direitos civis para toda a população. Não houve interação entre polícia e
sociedade, uma vez que as práticas policiais continuaram arbitrárias. A chibata
dos tempos do Vidigal foi substituída pelo conhecido “pé na porta”, que ainda
hoje dá início à ação policial junto às populações pobres.
Durante o regime militar, após o golpe de
1964, a segurança pública passou a ser tratada como prioridade a partir da
Doutrina de Segurança Nacional, resultando no aprofundamento do modelo
autoritário da instituição policial, voltada para o total controle da
informação na luta contra o inimigo interno — as organizações políticas de
esquerda. A tortura, prática rotineira nas delegacias em todo o país, tornou-se
visível para a sociedade nacional ao atingir outros grupos sociais, em especial
os de classe média, o que favoreceu o fortalecimento de campanhas contra o
regime.
Os anos 1980 se caracterizaram pela
rejeição da concepção militarizada da ação policial, identificada como “herança
da ditadura”. Setores de esquerda, com diversas orientações partidárias,
demandavam a remodelação e a modernização das instituições policiais, com a
adoção de linhas de ação que respeitassem os direitos dos cidadãos.
A Constituição de 1988 representou uma
mudança na concepção da segurança pública. Além de “dever do Estado”, como
afirmava o art. 144, ela passou a ser também responsabilidade de todos, o que
significava, formalmente, o reconhecimento de um Estado democrático, no qual a
concepção de ordem está diretamente relacionada às atitudes e valores do
cidadão, quer isoladamente, quer em coletividade.
O processo de redemocratização do Brasil
trouxe uma expectativa de expansão de direitos individuais, políticos e sociais
mediante a concretização do estado de direito. No entanto, tem-se observado a
permanência do exercício arbitrário e ilegal do poder, que tem resultado em uma
série de violações, entre as quais se destaca a violência da polícia, que
significa o abuso da força nas suas intervenções, particularmente da força
letal, bem como o uso da tortura para obter confissões nas investigações e para
garantir o controle dos presos. Todas as evidências indicam que essa
brutalidade é exercida fundamentalmente contra alguns dos grupos mais
vulneráveis da sociedade: moradores de favelas ou bairros pobres, e negros.
A violência policial representa uma das
graves manifestações de violação de direitos humanos no Brasil. Se, por um
lado, a instituição tem a atribuição do uso da força física, isto deve se dar a
partir de limites claros, fundamentados nas leis. Mas as práticas cotidianas
das polícias revelam que não há efetivamente clareza acerca dos limites do
trabalho policial.
A consequência desse quadro é uma forte
deslegitimação das instituições policiais, que são percebidas com desconfiança
e descrença pela população, o que não significa a negação do papel da
instituição. Grande parte da sociedade
civil tem reivindicado que as organizações policiais atuem no sentido de manter
e preservar a ordem pública, mas espera que a atuação cotidiana delas aconteça
sem a violação de garantias individuais e coletivas. O desafio que se coloca é
como utilizar a força baseando-se na legalidade e na legitimidade.
No entanto, há uma parcela da sociedade
civil que deseja uma polícia mais repressiva e violenta para os criminosos, a
partir de uma concepção de direitos que se aplica apenas aos que são
considerados cidadãos de bem. Ao negar-se a universalização de direitos e
apoiar as estratégias de “guerra contra o crime”, defende-se a permanência de
práticas autoritárias, que historicamente têm se mostrado ineficazes, porque
não dão conta de dois aspectos fundamentais: a manutenção da ordem pública não
se dá com o extermínio da diferença e a democracia não se consolida pelo uso da
violência.
Ana Paula Miranda é
professora da Universidade Candido Mendes (Ucam) e diretora-presidente do
Instituto de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro (ISP).
Lana Lage é
professora titular da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro
(Uenf) e coordenadora de projetos do Instituto de Segurança Pública do Estado
do Rio de Janeiro.
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