Compositores
populares não deram moleza à repressão da ditadura e usaram toda a ginga do
samba para driblar a exaltação ao trabalho.
Durante a ditadura do Estado
Novo (1937-1945) piscaram os sinais de alerta para os malandros e os que cultuavam
a malandragem. Com a criação do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), em
1939, a censura intensificou a repressão à "vadiagem" e ganhou corpo
a perseguição a quem exaltasse o não trabalho. Nada de anormal se considerarmos
que a Constituição imposta ao país em 1937 equiparava a ociosidade a crime e
estabelecia, no artigo 136, que "o trabalho é um dever social". O
ditador Getúlio Vargas (1882-1954) acolhia até com simpatia sua identificação
popular como "bom malandro" - no fundo um reconhecimento de sua
inteligência e esperteza política. Na propaganda estadonovista, porém, ele era
reverenciado como o "trabalhador número um do Brasil", ou seja, encarnava
o papel de antimalandro. Greves, ociosidade ou malandragem não eram digeridas
pelo governo Vargas, empenhado no desenvolvimento capitalista em terras
brasileiras.
E tudo o que conspirasse contra
esse "ideal patriótico" ficava sob a alça de mira do DIP e da
polícia. Inclusive os compositores populares, em especial os sambistas, que
passaram a ser vigiados, ao mesmo tempo em que o governo buscava atrair os
artistas para a sua área de influência, usando a moeda de troca dos favores
oficiais, a fim de tentar capturá-los na rede do culto ao trabalho. Houve,
evidentemente, músicos populares que morderam a isca. Ainda que por um mero
cálculo interesseiro ou em função de uma adesão, mais ou menos espontânea, ao
regime, o que de fato se viu foi uma enorme safra de canções que enalteciam o
mundo do trabalho, para não falar do Estado Novo e de sua personificação,
Getúlio Vargas. Mas houve também uma porção não desprezível de composições que
avançaram o sinal vermelho e, recorrendo a ardis variados, furaram o cerco da
ditadura.
Apesar da obrigação de submeter
suas obras à censura do DIP - os selos dos discos gravados em 78 rpm traziam,
em regra, o número de registro junto a esse órgão -, não foram poucas as gravações
que ultrapassaram os limites impostos. Quer porque a performance musical
dos intérpretes revestia a peça fria das letras das músicas de novo sentido,
quer porque a ironia que as contagiava subvertia seu significado à primeira
vista. Excepcionalmente, um ou outro samba abordava, de forma direta e reta,
as dificuldades da vida do trabalhador. E outros, como veremos, transitaram
por um terreno em que a questão do trabalho e da malandragem era exposta de
maneira ambígua, imprecisa.
A cruzada antimalandragem tinha
o objetivo de interromper a íntima relação que, ao longo da história da
música popular brasileira, unira o samba à malandragem. Mesmo assim, em pleno
império do DIP, de modo enviesado que fosse, figuras que viviam à margem do
trabalho regular continuavam presentes em muitas composições, como que a fornecer
um atestado de sua sobrevivência. É impressionante a quantidade de canções que
viraram muros de lamentação de mulheres insatisfeitas com seus parceiros
sanguessugas... Comumente compostas por homens e cantadas por mulheres, tais
músicas, embora com uma certa dubiedade, se ocuparam de tipos que voltavam as
costas ao trabalho.
Neste ponto, o samba se recolhe,
a melodia envereda pelo ritmo dolente da seresta e ela conclui, em tom de
lamento: "Se Deus um dia olhasse a terra/ E visse o meu estado". Logo
se vê que Sete e meia da manhã não exala o espírito oficial da época.
Sem maquiar o dia-a-dia do operário, trabalho aí rima com martírio, quando não
com "miserê" como se constata em outras composições. Isso atropela o
discurso governamental e determinadas análises de historiadores e cientistas
sociais que insistem em se referir quase exclusivamente à assimilação da
mensagem trabalhista pelos compositores populares. Estamos, nesse caso, muito
longe do elogio ao trabalhador que se encontrava nos pronunciamentos do
ministro do Trabalho Marcondes Filho (1892-1974) no programa de rádio Hora
do Brasil. Em vez de ser encarado como atividade humanizante e
regeneradora, o trabalho é percebido como sacrifício que se impõe aos que
vivem a luta pela sobrevivência.
Em São admito (1940), de
Ciro de Souza e Augusto Garcez, com interpretação de Aurora Miranda, outra
mulher reage contra o boa-vida que mora com ela. Nesse samba-choro, uma espécie
de peça de acusação, ela chega às raias da indignação: "Não, não admito/
Eu digo e repito/ Que não admito/ Que você tenha coragem/ De usar malandragem/
Pra meu dinheiro tomar/ Se quiser vá trabalhar, oi/ Vá pedir emprego na pedreira/
Que eu não estou disposta/ A viver dessa maneira/ Você quer levar a vida/
Tocando viola de papo pro ar/ E eu me mato no trabalho/ Pra você gozar."
Hildebrando (1941/1942) é outro
indivíduo que povoa esse universo de pessoas que não integram o exército
regular da produção. Esse samba de Wilson Batista e Haroldo Barbosa, gravado
por Ciro Monteiro, nos coloca diante do paradoxo de uma família às voltas com
necessidades crônicas e um chefe de família que se entrega ao ócio:
"sempre descansando", "perambulando na rua", ele,
decididamente, "não quer procurar o que fazer".
Na pele de Dircinha Batista,
mais uma trabalhadora martela a mesma tecla em Inimigo do batente (1939/1940),
de Wilson Batista e Germano Augusto. Para começo de conversa, os dois autores
são simbólicos. Wilson era um mulato que jamais fincou pé num emprego convencional
e vira e mexe tinha contas a acertar com a polícia. Germano era um malandro que
se notabilizou, entre outras coisas, pela façanha de se apoderar, com golpes
de astúcia ou na marra, de composições alheias, além de figurar em parcerias
fictícias. Ambos se dão as mãos nesse samba para retratar as queixas de uma
mulher sofrida e cansada do "lesco-lesco" da vida de lavadeira que
vem consumindo os seus dias. Seu homem, "moreno forte", corpo
atlético, "tem muita bossa" mais, "diz que é poeta",
aguarda a gravação de um samba de sua autoria e "quer abafar (é de
amargar)". Enquanto isso ela coleciona frustrações:
"Se eu lhe arranjo
trabalho/ Ele vai de manhã, de tarde pede a conta/ Eu já estou cansada de dar/
Murro em faca de ponta/ Ele disse pra mim/ Que está esperando ser presidente/
Tira patente do sindicato/ Dos inimigos do batente." Paciência tem
limite. E a dela se esgotou: "Eu já não posso mais/ A minha vida não é
brincadeira/ É, estou me desmilingúindo/ Igual a sabão na mão da lavadeira
(...) / Não posso mais, em nome da forra/ Vou desguiar."
Seria possível multiplicar esses
exemplos de tipos malandros, de bambas e sambas que ressurgem, aqui e ali, em
composições gravadas ou lançadas entre 1940 e 1945, em pleno reinado do DIP.
Mas é interessante mostrar também a questão pelo outro lado, ou seja, da mulher
que abandona o companheiro, o lar e seus afazeres. Quantas não são as canções
que exibem aos nossos olhos a fragilidade do "sexo forte" a se
dissolver em lamúrias ao ser passado para trás. A música popular transformou-se
em solo fértil para a expressão das aflições dos homens.
Oh! Seu Oscar, samba da dupla Ataúlfo
Alves e Wilson Batista, sucesso estrondoso do carnaval de 1940, na voz de Ciro
Monteiro, flagra mais uma situação na qual as pedras do tabuleiro parecem
fugir do lugar habitual. Seu Oscar, trabalhador braçal, narra seu melodrama:
"Cheguei cansado do trabalho/ Logo a vizinha me falou:/ Oh! Seu Oscar, tá
fazendo meia hora/ Que tua mulher foi-se embora/ E um bilhete deixou/ O
bilhete assim dizia:/ Não posso mais/ Eu quero é viver na orgia!"
Aturdido, ele relembra o seu calvário: "Fiz tudo para ver seu bem-estar/
Até no cais do porto eu fui parar/ Martirizando o meu corpo noite e dia/ Mas
tudo em vão, ela é da orgia."
Seu Oscar, estivador, suportara
por ela um pesado fardo. O trabalho, mais uma vez, é aqui associado a
sacrifício, a martírio, em completo descompasso com a pregação da ideologia do
trabalhismo. O trabalhador, aliás, é indiretamente convertido em otário, dando
o duro no batente ao mesmo tempo em que sua mulher se atira à orgia.
Sintomaticamente, o título original dessa composição era Ela é da orgia, que,
diga-se de passagem, não tinha naquela época o sentido de bacanal que adquiriu
mais recentemente. Orgia era sinónimo de festa popular, regada a samba,
batucada e outras coisas do gênero.
Seja como for, não deixa de ser
significativa a repetição da palavra orgia na gravação de Oh! Seu Oscar. Ela
aparece nove vezes e seus versos-chave "Não posso mais/ Eu quero é viver
na orgia!" são repetidos sete vezes. Inclusive no final do disco, levando
a canção a passar por uma relativa mudança de significação. Se, graças à
ambiguidade de sua letra, Oh! Seu Oscar pôde levantar o primeiro prêmio
na categoria samba do concurso carnavalesco patrocinado pelo DIP em 1940, o
fato é que tudo indica que, no calor do carnaval, os foliões se empolgaram com
os versos que glorificavam a orgia. Na encruzilhada entre identificar-se com
as desventuras do trabalhador ordeiro ou com as aventuras da mulher farrista,
aqueles que pulavam mais um carnaval sob o Estado Novo não devem ter tido
maiores dificuldades em fazer sua opção.
Novamente se criava uma
distância considerável entre a fala governamental e os comportamentos
expressos nas canções populares. De um lado, artigos inseridos no Boletim
do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio reforçavam uma certa
tradição ao enaltecer a mulher e colocá-la no seu "devido lugar"
como braço auxiliar do chefe de família. Nesses termos, o ministro Marcondes
Filho derramaria elogios sobre a "senhora do lar proletário" e
evocaria imagens historicamente vinculadas à mulher dona-de-casa: maternidade,
prole, berços. Lar, mulher, esposa, mãe e doçura formavam um composto especial
que evidenciaria a "divina fraqueza das mulheres".
De outro lado, em Oh! Seu
Oscar as relações entre os gêneros escapam da ótica de vitimização das
mulheres. Em vez de vítimas de uma sociedade machista, rebaixadas à condição
de pobres-coitadas, elas se revelam capazes de quebrar padrões de comportamento
instituídos. E não se trata de um caso isolado: muitas outras mulheres são
mencionadas em composições desse período por trocarem as prendas domésticas
pela gandaia. O que, em algumas situações, precipitava no ridículo a figura do
"malandro regenerado" ou do trabalhador traído.
Condenadas por seus parceiros
como Louca(s) pela boêmia (1941), título de um samba feito a quatro
mãos por Bide e Marçal e interpretado por Gilberto Alves, nem por isso elas se
enquadravam nos moldes do figurino estadonovista: "louca pela boêmia, me
abandonou/ E meu castelo dourado se desmoronou". No mesmo estilo e no
mesmo tom, Arnaldo Paes canta em Samba de 42 (dele, de Marília Batista
e Henrique Batista): "Emília diz que não é mais aquela/ Que não lava mais
panela/ Diz que vai viver sambando/ Ih! Ih! Emília enlouqueceu/ Saiu gritando:/
Quem não pode mais sou eu." Em tempo: Samba de 42 se opunha a Emília
(1941), de Wilson Batista e Haroldo Lobo, cujo personagem central, um
trabalhador, se queixava, pela boca do cantor Vassourinha, que não podia mais
viver sem Emília. E quem era ela? Alguém que sabia, como ninguém, lavar e
cozinhar, enfim, uma mulher de mil e uma utilidades domésticas.
Se atentarmos para aspectos
estritamente musicais, uma série de elementos importantes podem ser
incorporados a esta análise. Basta lembrar que nesses sambas os arranjos eram
sustentados, em geral, por pequenos conjuntos conhecidos como regionais, à
frente dos quais se achava muitas vezes o flautista Benedito Lacerda. Nada a
ver com a roupagem orquestral grandiosa que dominava, por exemplo, as
gravações dos sambas-exaltação, uma marca registrada da época do Estado Novo.
Em vez de assumir ares monumentais, temos frequentemente sambas bastante
sincopados, à base de breques, que muita gente chama de "samba
malandro", cuja fiel tradução se encontra, entre outros, num compositor
que fez escola por esses anos, Geraldo Pereira (1918-1955).
Todos esses fatos reabrem a discussão
de um velho tema: até que ponto as classes populares simplesmente reproduziam
o discurso estadonovista? Quais os limites impostos ao controle estatal?
Inegavelmente, apertaram-se os nós da camisa-de-força imposta pelo DIP aos
compositores populares. Estes foram como que sitiados por coerções e proibições
de toda ordem. Nem assim se apagaram os sinais - por mais ambíguos que fossem
- de uma resistência consciente ou inconsciente à ideologia do regime e aos
estilos de comportamento que ele estimulava.
Quando o assunto é a "Era
Vargas", notadamente o período estadonovista, há uma forte tendência a
enxergar os trabalhadores com os olhos do Estado, como se estes só
incorporassem os valores dominantes. Torna-se, desse modo, muito comum inflacionar
as aparências, construindo-se um mundo marcado sobretudo pela harmonia, pelo
consenso que caracterizaria as relações entre as classes e, em particular,
entre as classes trabalhadoras e o Estado. É como se as mensagens emitidas
pelos governantes penetrassem por inteiro na consciência dos receptores,
independentemente de qualquer operação de rejeição ou redefinição de seu
conteúdo.
O mesmo se aplica ao campo da
cultura, principalmente à área da música popular. Os exemplos comentados
levantam, entretanto, uma parte da cortina de silêncio que envolveu as vozes
dissonantes que, de uma forma ou de outra, se fizeram ouvir durante o Estado
Novo, o qual era, por definição, um regime de ordem-unida. Eles ajudam a
dissolver a aparente simplicidade das coisas e demonstram uma vez mais a
complexidade da própria história, entrecruzada, de ponta a ponta, por conflitos
e contradições de toda espécie. Afinal, por mais que se pretenda - sob esse ou
aquele regime - pôr todo mundo a entoar, em uníssono, uma mesma canção, sempre
haverá desafinados, justamente os que não se afinam pelo diapasão da ordem
instituída e que, à sua maneira, desafinam o coro dos contentes.
Adalberto Paranhos é professor
do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Uberlândia/MG e
autor de A invenção do Brasil como terra do samba: os
sambistas e sua afirmação social. São Paulo: História, Universidade
Estadual de São Paulo, 2003.
Fonte: Revista Nossa História - Ano I nº 04 – Fevereiro/2004
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Como Getúlio Vargas desenvolveu a imagem(identidade) do trabalhador brasileiro?
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