Política contra a seca no Ceará confinava flagelados famintos em campos de
concentração para impedir que invadissem as cidades e as enfeassem com suas
súplicas e penúria.
Frederico de Castro Neves
Sempre que pronunciamos as
palavras "campos de concentração" surgem imediatamente as imagens dos
horrores nazistas. No entanto, a expressão "campos de concentração" é
anterior à Segunda Guerra Mundial e pode ser utilizada para designar
experiências diferentes, sem genocídio programado. Foi este o caso das
políticas de controle estatal sobre a população de retirantes das secas no
Ceará na primeira metade do século XX, tema que, com algumas exceções, esteve
ausente por muito tempo dos trabalhos dos historiadores e cronistas. As
"obras contra as secas" apareciam como uma extensão do progresso, e
com isso as formas de assistência aos miseráveis eram tomadas como necessárias
e inevitáveis, não importando quais mecanismos tenham sido usados para impedir
as migrações e promover o trabalho árduo e mal remunerado. O objetivo destes
campos cearenses, os chamados "currais do governo", era combater as
invasões de retirantes nas cidades mais abastadas.
Em Fortaleza, a primeira destas
invasões ocorreu em 1877, quando cerca de 120 mil camponeses arruinados
ocuparam as principais praças e ruas de uma cidade que se procurava
"aformosear" com a implantação de jardins, cafés e edifícios de
padrões europeus, e portanto exigia do governo provincial uma resposta rápida e
segura, sobretudo para preservar o quadrilátero central de Fortaleza, onde os
principais prédios públicos estavam sendo construídos e as famílias mais
abastadas possuíam seus casarões. Os acampamentos - ou
"abarracamentos" - dos retirantes passaram a ser o objeto da
preocupação dos governantes, médicos e policiais, que viam nessa aglomeração de
famintos e doentes uma fonte de epidemias, criminalidade e prostituição. De
fato, a varíola chegou a infectar cerca de 80 mil pessoas, deixando o sistema
de transporte e sepultamento dos cadáveres em colapso. Os poucos coveiros, às
vezes recrutados entre os próprios retirantes, nem sempre conseguiam dar conta
da quantidade de mortos a serem enterrados, deixando corpos empilhados para o
dia seguinte. Não é à toa que o historiador Raimundo Girão afirmou que
Fortaleza, naqueles anos, se transformou na "metrópole da fome, a capital
de um pavoroso reino". O governo provincial, nestas graves circunstâncias,
tentou disciplinar os abarracamentos, dividindo a cidade em distritos
administrados por comissários, os quais tinham a função de organizar a
distribuição de comida, o alistamento de trabalhadores para as várias obras
públicas iniciadas no período e garantir a ordem interna, impedindo a
circulação dos retirantes pela cidade e combatendo a criminalidade e a
prostituição.
A repetição das invasões em
menor escala em 1888-1889 e 1899-1900 deixava claro para as autoridades que algo
mais definitivo deveria ser feito para poupar a população urbana das investidas
dos miseráveis, que pediam esmolas, furtavam as casas, saqueavam os armazéns e
prostituíam suas mulheres e filhas. Consolidava-se entre as elites cearenses
uma concepção segregacionista da assistência aos pobres em momentos de seca,
que levaria à criação do Campo de Concentração do Alagadiço, em 1915. Naquele
ano, os agricultores arruinados começaram a chegar em Fortaleza, anunciando
mais uma seca. O clima político era tenso: três anos antes o governo
provincial havia sido deposto por uma revolta popular, e após a sedição de Juazeiro
em 1914 "cabras" armados saqueavam as cidades em nome do Padre Cícero
e de Floro Bartolomeu. Pesando todos estes fatores, o governo decidiu adotar
uma solução radical para os retirantes. Na estação de Otávio Bonfim, na periferia
da cidade, eles eram desembarcados e conduzidos diretamente para um terreno
previamente preparado, cercado, iluminado e vigiado por homens armados, de
onde não poderiam mais sair. O coronel Benjamin Barroso, presidente do estado
na época, chamou este espaço de "campo de concentração", mas o povo continuou
a chamar de "curral", em referência aos currais abandonados durante
as secas, que eram ocupados pelos retirantes em sua trajetória em direção às
cidades.
Ao contrário dos
"abarracamentos" das secas anteriores, que eram tentativas de
controle sobre os acampamentos espontâneos dos retirantes, o campo foi planejado
com o objetivo de conter o aumento descontrolado da criminalidade e da
prostituição. A distribuição de alimentos, roupas ou remédios era realizada em
seu interior, atraindo mais e mais retirantes, que não paravam de chegar. Mas,
apesar da obrigatoriedade e do confinamento, o governo não oferecia uma situação
de conforto sanitário, nem permitia que as famílias se acomodassem em espaço
suficiente. O "campo" apenas impedia o contato dos retirantes
famintos com a população da cidade, concentrando em um pequeno cercado todos
os recursos disponíveis para a assistência. Em pouco tempo, mais de 8 mil
pessoas se aglomeravam em casebres de taipa e cobertura de palha, sem as
mínimas condições de higiene, configurando um ambiente extremamente favorável
às doenças e aos conflitos. De fato, os poucos registros deixam uma impressão
de horror e morte, com corpos empilhados ao lado do campo, esperando transporte
para o cemitério, onde seriam atirados em valas comuns.
Para os retirantes, o
"campo" era o último recurso, cheio de sofrimento e dor, que sua
condição de sem-terra tornava inevitável. Mas nestes anos eles aprenderam a se
organizar em multidões aparentemente disformes e sem controle, que levavam o
medo às autoridades e aos comerciantes de alimentos. O simples ajuntamento de
retirantes já era suficiente para aterrorizar as populações das cidades mais
próximas às áreas secas. Em 1932, quando os saques a mercados no interior
começaram a acontecer já no início do ano, os governantes sabiam que algo mais
grave poderia acontecer, caso os conflitos se generalizassem por todo o Ceará.
Porém, o clima político nacional era muito instável, com as forças militares de
São Paulo levantando-se em armas contra o governo provisório de Getúlio Vargas.
O governo não poderia permitir mais uma fonte de conflito no norte do país. Um amplo
programa de "socorros públicos" foi então organizado, tendo como base
a construção de vários "campos de concentração" espalhados por todo
o território afetado pela seca. Desta vez, os retirantes deveriam ser enviados
a campos de trabalho, com o propósito de ocupar a mente instável e arredia
daqueles homens pobres, que, pressionados pela fome, não hesitavam em atacar os
armazéns.
Como se vê, o alto índice de
mortalidade entre os "concentrados" de Fortaleza em 1915 não foi
considerado um obstáculo para o planejamento das ações governamentais; pelo
contrário, a ideia de concentrar e isolar os retirantes foi aperfeiçoada e
ampliada. Em 1932, foram criados sete campos de concentração em locais
estrategicamente escolhidos, para que a rota de migração dos camponeses em
direção a Fortaleza fosse interrompida, reduzindo o número de retirantes que
chegavam à capital. Contudo, os campos de concentração não procuravam
interferir apenas na mobilidade dos homens pobres do mundo rural. No interior
de cada campo, uma série de medidas visava a combater costumes arraigados e
inserir novos comportamentos, tanto no que diz respeito ao trabalho quanto ao
trato com o próprio corpo. O trabalho era organizado por engenheiros e chefes
da Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS) e obedecia a um padrão
coletivo, em que a divisão de tarefas era fundamental. Os camponeses eram
divididos em grupos e executavam serviços simples e repetitivos, sob o
controle e a vigilância de um "feitor" e de um
"apontador". Ao menor sinal de atraso, desleixo ou rebeldia, o
trabalhador era cortado da lista de pagamento e não recebia sua ração diária de
alimentos. Na construção dos açudes, as turmas de retirantes removiam
manualmente pedras e areia das áreas a serem alagadas, sob os olhares sempre
severos dos chefes, sem domínio sobre o significado daquilo que estavam construindo.
Quanto ao trato com o corpo, no
momento em que os retirantes entravam no campo eram obrigados a cortar o cabelo,
fazer a barba e tomar banho, sendo observados por médicos e enfermeiros que
administravam remédios e ditavam normas de comportamento coletivo a serem
rigorosamente seguidas, sob pena de exclusão imediata e perda do acesso às
rações. A vacinação também era obrigatória, e os exames frequentes procuravam
evitar a proliferação de doenças graves, mas eram vistos pelos retirantes como
uma invasão da intimidade e muitas vezes as crianças eram escondidas, mesmo
estando doentes, para não serem examinadas. Alguns campos, como o do Ipu,
tinham postos médicos, que procuravam zelar pelo controle das epidemias, embora
muitos enfermeiros tenham sido acusados de abusos e desrespeito. Os testes
laboratoriais com os mortos, por outro lado, eram vistos como profanação dos
cadáveres e, mais uma vez, o direito à assistência em tempos de seca foi
sentido pelos agricultores como sofrimento e humilhação.
Apesar da mortalidade intensa e
das medidas de disciplinamento, controle e vigilância, as diferenças entre os
campos brasileiros de refugiados das secas e os campos de extermínio de judeus
e outros dissidentes são claras. Burity não era Auschwitz. Os retirantes não
eram conduzidos deliberadamente para a morte, embora as condições em que eram
levados a viver debilitassem seriamente sua saúde. A concepção que criou os
campos no Ceará era, definitivamente, de assistência social e de
"socorros públicos". É preciso, contudo, que nossa avaliação, distante
no tempo e no espaço, não se deixe levar pelas aparências e consiga situar o
uso das expressões e as formas de lidar com os pobres a partir das pressões e
tradições vigentes em cada momento.
No total, segundo os dados do Ministério da Viação e Obras, cerca de 90
mil retirantes estiveram concentrados ao mesmo tempo nos "campos de concentração"
do governo, em 1932. O campo do Burity, na cidade do Crato, chegou a abrigar
quase 60 mil pessoas - mais da metade da população de Fortaleza à época, que
era de 100 mil pessoas. As dimensões dessa experiência social de isolamento e
concentração dos retirantes em tempos de seca ilustram o investimento feito
pelo governo e as opiniões expressas nos jornais da época demonstram que os
setores mais abastados de Fortaleza apoiaram e legitimaram a formação dos
campos, saudando seus resultados.
O relacionamento destas camadas
com os retirantes no Ceará passou por diversas modificações ao longo do período
tratado aqui. A caridade e o conforto pessoal, mecanismos de proteção à pobreza
mais comuns no universo das relações paternalistas rurais, parecem perder
validade diante da formação da sociedade aburguesada e individualista das
cidades, onde os pobres só encontram lugar nas instituições impessoais de
assistência social. Todavia, essa passagem nunca se processou completamente, e
o clientelismo, os alistamentos, a violência pessoal e o apadrinhamento convivem
com projetos e programas sociais, estatais e privados, que buscam amenizar a
miséria dos retirantes. Os "campos de concentração" expressam essa
contradição, em que valores de dois mundos se combinam na formação de uma
imagem dos pobres ora como vigorosos trabalhadores que tudo perderam com a seca,
ora como preguiçosos que preferem as esmolas do governo ao trabalho pesado nas
frentes de serviço.
Frederico de Castro Neves é professordo
Departamento de História da Universidade Federal do Ceará e autor de A Multidão e
a História: saques e outras ações de massas no Ceará. Rio de Janeiro: Relume
Dumará, 2000.
Fonte: Revista Nossa História - Ano I - nº 2 - Dez. 2003
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