Línguas indígenas sobrevivem no português, influenciam nossa fala e
guardam sentidos ocultos.
“Há várias línguas faladas em português”,
afirma José Saramago no documentário Língua: vidas em português, e basta
olhar as variedades regionais para dar razão ao escritor. Como explicar essas
diferenças? Parte delas reside no fato de que os índios que aqui moravam
falavam centenas de línguas autóctones de diversos troncos linguísticos. Quando começaram a usar um idioma que veio de
fora – o português – nele deixaram impressas suas marcas, fruto de uma relação
que a sociolinguística denomina de “línguas em contato”. Como as línguas
indígenas eram diversas, as marcas que deixaram não foram as mesmas em cada
região.
No início do século XVI, o poeta Sá de
Miranda lançou aos mares do futuro a nau da língua portuguesa, vinculando seu
destino à expansão do comércio marítimo. Durante um par de séculos, caravelas
singraram “mares nunca dantes navegados”, carregando, entre outros, um bem
imaterial: o português, que passou a ser falado na Índia, na Malásia, na
Pérsia, na Turquia, na África, no Japão e até na China e na Cochinchina. Em
muitos lugares tornou-se “língua franca”, isto é, um idioma usado para
comunicação entre grupos de pessoas cujas línguas maternas são diferentes –
como ocorre hoje com o inglês.
A língua portuguesa já veio para cá
marcada por outras línguas com as quais havia convivido. Aqui, no território
que é hoje o Brasil, encontrou mais de 1.300 línguas, faladas por cerca de 10
milhões de habitantes, segundo estimativas de pesquisadores da Escola de
Berkeley que estudaram a demografia histórica do período e consideram que no
continente americano ocorreu "a maior catástrofe demográfica" da
história da humanidade.
As duas línguas gerais indígenas faladas
no Grão-Pará e no Brasil – a Língua Geral Amazônica (LGA) e a Língua Geral
Paulista (LGP) – nomearam conceitos, funções e utensílios novos trazidos pelos
europeus com adaptações fonéticas e fonológicas: cavalo (cauarú), cruz (curusá),
soldado (surára), calça ou ceroula (cerura), livro (libru
ou ribru), papel (papéra), amigo ou camarada (camarára).
Os portugueses começaram a
falar essas línguas e também tomaram delas muitos
empréstimos, a maioria sendo do tronco tupi, que mantinha grande número de
falantes espalhados por extenso território da costa atlântica. Desde o século
XVI, portugueses que tinham interesse econômico em comunicar-se com os índios começaram a
usar uma língua de base tupi que se tornou a Língua Geral. Os missionários
fizeram então uma gramática explicando como funcionava essa língua e passaram a
usá-la na catequese. Traduziram para ela orações, hinos e até peças de teatro.
Apesar de extintas, algumas dessas línguas
indígenas continuam sendo usadas por brasileiros, que nem desconfiam desses
empréstimos, em nomes de lugares, animais, vegetais, ervas, flores, plantas,
enfim, da flora e da fauna. Numa amostra coletada pelo linguista Aryon Rodrigues,
46% dos nomes populares de peixes e 35% dos nomes de aves são oriundos só de
línguas tupi.
De origem tupi é a palavra carioca,
nome de um rio que, segundo alguns especialistas, significa “morada (oca)
do acari”, um peixe que cava buracos na lama e ali mora como se fosse um
anfíbio. Para outros, é o nome de uma aldeia, a “morada dos índios carijó”. Da
mesma origem são os nomes de muitos lugares, como locais atuais do Rio de
Janeiro que conservaram as denominações de antigas aldeias: Guanabara (baía
semelhante a um rio), Niterói (baía sinuosa), Iguaçu (rio grande), Pavuna (lugar
atoladiço), Irajá (cuia de mel), Icaraí (água clara) e tantos outros,
como Ipanema, Sepetiba, Mangaratiba, Acari, Itaguaí.
Muitos topônimos indígenas perderam seu
sentido original. Os tupinambás denominaram de Itaorna uma praia em
Angra dos Reis. Nessa área, na década de 1970, foi construída a Central Nuclear
Almirante Álvaro Alberto, mas os engenheiros responsáveis desconheciam que o
nome dado pelos índios continha informação sobre a estrutura do solo – minado
por águas pluviais, que provocavam deslizamentos de terra das encostas da Serra
do Mar. Somente em fevereiro de 1985, quando fortes chuvas destruíram o
Laboratório de Radioecologia que mede a contaminação do ar na região, eles
descobriram o que significa itaorna: “pedra podre”.
A influência das línguas indígenas nas
variedades usadas no Brasil não se resume em uma listagem de palavras exóticas
ou "folclóricas". Existem outras influências entranhadas nas camadas
profundas da língua, que penetraram em seus alicerces, mexendo com seu sistema
nos campos sintático, fonológico e morfológico. É o que os linguistas chamam de
"substrato".
No caso da fala individual, o substrato é
o conjunto de transferências adquiridas pela primeira língua, ou língua
materna, depois do contato com uma segunda língua. Do ponto de vista coletivo,
o substrato é o conjunto de vestígios que uma língua, quase sempre extinta,
deixa sobre outra língua, em geral a de um povo invasor. É a influência da
língua perdida sobre a língua imposta, que só se estabiliza após diversas
gerações. Exemplos disto são alguns processos de modalização do nome,
característicos do tupi, que deixaram suas marcas no português não pela via do
empréstimo cristalizado, mas pelo próprio mecanismo. Tanto na palavra netarana,
usada no Pará, quanto em outras do português regional, como sagarana,
canarana, cajarana, tatarana, há o uso do sufixo tupi rana (“como se
fosse”).
Esses resíduos ainda não foram
completamente inventariados, mas alguns deles foram identificados. O
indigenista Telêmaco Borba recolheu, em 1878, dados sobre a língua oti, que era
então falada no sertão de Botucatu, em São Paulo, e que foi extinta. Descobriu
que aquela língua, do tronco Jê, possuía sons que os grupos de língua tupi não
tinham, como o r retroflexo. E seus falantes levaram esse traço para o
português quando adquiriram a nova língua. Ele ali permanece até hoje no r
paulista, conhecido como r caipira.
No interior do Amazonas,
no rio Madeira, há o processo de “alçamento” e “abaixamento” de vogais.
“Alçamento” é o fechamento vocálico, como no caso de “popa da canoa”, que se
pronuncia pupa da canua, o que também é atribuído ao substrato da língua
indígena.
Nem sempre tais mudanças foram aceitas
pelos puristas da língua. Da mesma forma que o Império Romano considerou como
“línguas estropiadas” as variedades do latim faladas na Península Ibérica (que
mais tarde deram origem ao português, ao espanhol, ao catalão, ao galego, ao
mirandês), assim também os portugueses consideraram a variedade aqui falada
como “língua mutilada”. No Sermão do Ano Bom, em 1642, o jesuíta Antonio
Vieira, que viveu no Grão Pará, afirmou que “A língua portuguesa (...) tem
avesso e direito; o direito é como nós a falamos, e o avesso como a falam os
naturais”. Classificou as variedades locais do português de "meias
línguas, porque eram meio políticas [civilizadas] e meio bárbaras: meias
línguas, porque eram meio portuguesas e meio de todas as outras nações que as
pronunciavam, ou mastigavam a seu modo”.
Uma resposta a Vieira está na letra da
canção “Língua”, de
Caetano Veloso: “Gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de
Camões / (…) E deixe os Portugais morrerem à míngua / 'Minha pátria é minha
língua'/ Fala Mangueira! Fala! / Flor do Lácio Sambódromo Lusamérica latim em
pó/ O que quer / O que pode esta língua?/ (…) Vamos atentar para a sintaxe dos
paulistas”.
As línguas indígenas permanecem no
substrato do português e guardam informações e saberes, funcionando como uma
espécie de arquivo. Conhecer a contribuição efetiva que legaram à língua
portuguesa é entender como viviam os povos que as falavam e se apropriar dessa
experiência milenar.
José R. Bessa Freire é
professor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e autor do artigo
“Da fala boa ao Português na Amazônia Brasileira”, in Amazônia em cadernos
(Manaus, 2000).
Saiba Mais - Bibliografia
NOLL, Volker &
DIETRICH, Wolf (orgs.). O português e o tupi no Brasil. São Paulo:
Editora Contexto, 2010.
LIMA, Ivana Stolze &
CARMO, Laura do (orgs.). História Social da língua nacional. Rio de
Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 2008.
FREIRE, José R. Bessa
& ROSA, Maria Carlota (orgs.). Línguas Gerais. Política Linguística e
Catequese na América do Sul no Período Colonial. Rio de Janeiro: Eduerj,
2003.
LAGORIO, Consuelo Alfaro;
ROSA, Maria Carlota & FREIRE, José R. Bessa (orgs.). Política de Línguas
no Novo Mundo. Rio de Janeiro: Eduerj, 2012.
Saiba mais – Links
Saiba Mais - Filme
Língua: vidas em português
Direção: Victor Lopes
Ano: 2002
Duração: 90 minutos
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