Na gestão de
seus negócios, os jesuítas desenvolviam no tempo da Colônia práticas
administrativas similares às dos grandes senhores de engenho.
Paulo de
Assunção
O papel dos jesuítas foi sem dúvida de
vital importância na construção do catolicismo brasileiro. Muito já se escreveu
sobre o impacto da catequese entre os indígenas e o modelo educacional
implementado por esses religiosos na América portuguesa. No entanto, suas
práticas temporais - isto é, não espirituais, de cunho econômico -, receberam
pouca atenção em comparação com questões pedagógicas e culturais. Estas, guardadas as devidas proporções, nem
sempre foram o único alvo do seu interesse. Aos colégios jesuíticos se
associavam as propriedades da Companhia de Jesus - essenciais para a manutenção
da sua obra evangélica - e, por consequência, todo o universo da administração
colonial. A necessidade de manter as atividades religiosas e o sustento dos
religiosos impuseram diversos problemas à gerência das fazendas da Ordem,
exigindo de muitos gestores habilidade e pragmatismo na solução dos problemas
administrativos, bem como ações eficazes para contornar os frequentes impasses
políticos que marcaram os duzentos anos de presença jesuítica em terras
brasileiras.
Os negócios temporais dos jesuítas durante
esse período foram norteados por atitudes, práticas e regras de caráter econômico,
de acordo com o modelo de exploração colonial. A ação dos padres administradores/procuradores,
que organizavam e davam impulso às atividades produtivas, revela que muitos
deles deveriam possuir, além de um arcabouço espiritual, conhecimento profundo
do sistema produtivo a que estavam vinculados. Esta configuração revelou, não raras
vezes, as relações com o poder administrativo dos membros da Companhia,
sujeitos, em algumas circunstâncias, aos ataques e às críticas de seus próprios
pares, por adotarem condutas que se distanciariam do ideal jesuítico. Setores
da sociedade colonial alertavam para o fato de que o temporal e espiritual
possuíam interesses divergentes. Na
medida em que os olhos dos jesuítas se voltavam para os bens terrenos, viravam
as costas para as questões espirituais. Na verdade, a Companhia de Jesus
prosperou sem perder o discurso do pioneirismo e da ação heroica dos primeiros
tempos. A instituição somente acrescentou aos seus registros dados temporais da
produção, administração, balanços, débitos e créditos. Os funcionários de Deus
trabalhavam orando, cultivando, contando e ampliando a seara divina.
Em cartas, relatórios e outros documentos
dirigidos aos padres superiores, procuradores, prefeitos e reitores dos
colégios de Lisboa, Porto, Coimbra e outras localidades do território
português, eles registraram a forma como eram administradas as diversas
propriedades da ordem, ao mesmo tempo em que destacavam a necessidade e a
importância da manutenção das propriedades produtivas para o bom funcionamento
da instituição. Esta farta correspondência permite reconstituir e compreender o
pano de fundo do contexto social em que os religiosos atuaram. Os documentos
revelam um complexo jogo político e econômico envolvendo jesuítas, nobreza,
monarca, funcionários da Coroa, mercadores e escravos, em relações nem sempre
amistosas e tranquilas. Possibilitam-nos entender quem eram aqueles homens que
viveram entre o temporal e o divino, na fronteira entre os "exercícios
espirituais" e a gerência de suas propriedades.
A Companhia
de Jesus, revelam as cartas, soube interagir com o universo produtivo colonial,
produzindo gêneros de consumo para suas residências e colégios. Envolvidos com
a produção de açúcar, eles adotaram práticas administrativas similares às dos
grandes senhores de engenho. Este comportamento é esboçado nos registros, onde
são demonstradas as preocupações como a falta de liquidez, dependência de
crédito, manutenção dos meios de produção, o transporte e encargos de
distribuição. A tudo isso se acresciam seus deveres espirituais.
Os livros ou rol de contas, elaborados
pelos religiosos, registravam as transações das propriedades com detalhes.
Esses informativos eram enviados ao padre-procurador para análise. A prestação
de contas a cada safra e a inspeção das finanças eram de fundamental
importância para se saber como estavam os recursos dos colégios e se as
propriedades estavam sendo bem administradas. Também permitiam ao padre provincial
tomar as decisões econômicas mais acertadas. Este tinha abaixo do seu comando
os padres-reitores dos colégios de suas províncias e os padres-procuradores. Os
primeiros controlavam os irmãos-dos-colégios e os padres-administradores. Havia
também os padres-visitadores, cuja função era verificar se as
"Constituições da Companhia de Jesus" estavam sendo seguidas conforme
as práticas espirituais e temporais.
O padre-procurador, além de suprir as
necessidades dos bens dos colégios e residências do Brasil, era responsável por
um minucioso exame dos relatórios e contas enviados pelos
padres-administradores das propriedades. Por meio dessa documentação, era
possível verificar a totalidade das operações realizadas: produção de
pães-de-açúcar, arroz, fumo, especiarias e outros produtos; quantidade de
cabeças de animais e de negros; os gastos com reposição dos instrumentos de
produção, com as doenças da escravaria, com os fretes dos produtos que iam da
colônia para o reino e vice-versa. Portanto, o padre-procurador era aquele que
centralizava os papéis de todas as transações efetuadas, podendo mensurar a
queda ou o aumento da rentabilidade. A obrigatoriedade de relatórios demonstra
um sistema de controle e fiscalização atuante.
As unidades produtivas procuravam ser
autossuficientes, atendendo as necessidades dos estudantes, dos jesuítas e dos
trabalhadores escravos e assalariados que compunham a estrutura da Ordem. O
excedente produzido era vendido com lucro e utilizado para a compra de outros
produtos necessários para manter as unidades funcionando. Num universo de
incertezas, os religiosos tinham de lutar para que a produção açucareira, entre
outras, gerasse lucro. Um trabalho inglório e difícil, pois além dos problemas
inerentes ao processo produtivo, tinham de se preocupar com as variações
climáticas, as oscilações do mercado e o jogo da política internacional.
Regulamentos referentes à administração
das unidades produtivas eram elaborados pelos padres-procuradores contendo
orientações àqueles que assumiam funções administrativas. Continham as
diretrizes básicas para uma boa gestão, entre estas o aconselhamento ao procurador
para assegurar-se de que todos os títulos de propriedade e os direitos de
possessão estivessem em acordo com as normas prescritas por lei e a
recomendação de que visitasse com frequência as propriedades para assegurar o
andamento das atividades. Entre outras orientações, devia cuidar para que os
"exercícios espirituais" e a "doutrina" estivessem sendo
bem praticados e evitar a presença de mulheres nas residências. Os regulamentos
indicavam um forte controle, centralizado no padre-provincial e no
padre-reitor. Estes deveriam ter conhecimento de todas as atividades empreendidas
pelos seus subordinados, os quais não poderiam agir, principalmente no âmbito
do plano temporal, sem a sua autorização.
A aquisição de mais terras visando a uma
maior produção de açúcar e outros produtos foi a solução encontrada para
atender as necessidades do mercado consumidor, que demandava bens, ou para
manter as condições de produção adequadas a um fluxo constante e estável. Os
jesuítas demonstraram que compartilhavam de práticas de um capitalismo
comercial, em que a tomada de decisão implicava correr riscos que deveriam ser
criteriosamente evitados.
A fusão da
imagem dos jesuítas com a dos senhores de engenhos não foi difícil de ser
estabelecida. Os propósitos dos "companheiros de Cristo" tinham sido
alterados com o decorrer do tempo, deixando-os sujeitos aos mecanismos do
contexto secular, e uma nova imagem da instituição surgira daí, misturando fé,
missionarismo, fortuna e poder. Nicholas Cushner, estudioso das propriedades
jesuíticas da América espanhola, já afirmava que as críticas às atividades
mercantis da Companhia de Jesus, na Europa e na América, eram em parte fruto de
uma mentalidade econômica medieval, que entendia serem determinadas práticas -
por exemplo, a venda de produtos visando ao lucro -, ilícitas por natureza.
Isso não combinava com o modelo idealizado de caridade cristã construído pela
sociedade para as ordens religiosas. Os
próprios inacianos tiveram, aliás, a mesma preocupação, ao questionarem quais
comportamentos seriam mais condizentes com os preceitos religiosos que defendiam.
Conscientes de que as obra de educação, catequização e assistência espiritual
deveriam continuar a existir, e eles precisavam de suas propriedades para
mantê-las, os religiosos lutaram, assim, para preservar o que haviam
conquistado.
Uma particularidade da
administração dos jesuítas é que ela gozava de alguns benefícios reais que lhe
permitiam autonomia em relação às obrigações impostas pelo sistema colonial,
pois a Coroa reconhecia o papel fundamental que esses religiosos exerciam na
defesa do cristianismo. Tais privilégios favoreceram suas propriedades, cuja
produção era praticamente toda comercializada com isenção de taxas e de
impostos. Contudo, no início do século XVIII, verificaram-se sensíveis sinais
de decadência na instituição; em parte causada pela situação econômica
enfrentada localmente pelas suas unidades produtivas; em parte por problemas de
relacionamento com os poderes políticos e econômicos de diversas partes da
Europa e da América.
Considerou-se afinal que os direitos e privilégios
conquistados pela Ordem comprometiam a economia do Estado português, e tal
argumento justificou as ações antijesuíticas do marquês de Pombal, o poderoso
ministro do rei d. José I (1750-1777). Pela lei de 3 de setembro de 1759, o
monarca ordenou que todos os religiosos da Companhia fossem "tidos,
havidos e reputados como desnaturalizados, proscritos, e exterminados do
território português e de todas as terras de além-mar". Rompeu-se assim
uma união de mais de dois séculos entre os jesuítas e a Coroa, sempre marcada
por uma tumultuada relação de interesses entre o poder temporal e o poder
espiritual.
Paulo de Assunção
é professor de História na Universidade
São Judas Tadeu, do Centro Universitário Capital (UN1CAPITAL) e do Centro
Universitário Assunção (UNIFAI) e autor de Negócios jesuíticos: o cotidiano da
administração dos bens divinos. São Paulo: Edusp, 2004.
Fonte: Revista Nossa História - Ano II
nº 19 - Maio de 2005
Saiba
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