Atraídos
pela propaganda oficial, brasileiros de todas as partes tentaram a sorte na
Amazónia, no início da ditadura, mas em vez de prosperidade encontraram um
território controlado pela violência e trabalho escravo.
Regina
Beatriz Guimarães Neto
Consequências de vários projetos de colonização aprovados pelo INCRA
(Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), tanto oficiais quanto da
iniciativa privada, a década de 1970 ficou marcada pela derrubada sem
precedentes da floresta amazônica. Grandes clareiras deram lugar, da noite para
o dia, a cidades. O barulho das máquinas e de pequenos aviões se somava ao
burburinho de homens e mulheres de diversas regiões do Brasil, sobretudo do
Sul, que chegavam a lugares tão distantes quanto Rondônia e Mato Grosso
seguindo as precárias estradas abertas na mata. Os jornais e as propagandas do
governo e das empresas privadas estimulavam esse novo bandeirantismo. Faziam
alarde das riquezas da região, da abundância de terras e das inúmeras
oportunidades de trabalho que iam surgindo. O que se chamou de
"colonização" pelos governos militares se encaixava numa narrativa
majestosa sobre a grandeza do Brasil. Era a versão moderna do mito do Eldorado
amazônico.
Esses projetos de colonização passaram a
ser um instrumento de poder do Estado para direcionar o deslocamento, sobretudo
de pequenos proprietários, do Sul para o Norte. Para a ditadura militar, era
prioritário controlar os movimentos sociais no campo. A "questão da
terra" era um problema de segurança nacional. Por isso, as empresas de
colonização se beneficiaram dos incentivos financeiros do Estado, através da
Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) e da Superintendência
do Desenvolvimento Sustentável do Centro Oeste (Sudeco) e outros programas ou
projetos governamentais, como o Polocentro, o Proterra, o Polonoroeste e o
Prodeagro. Programas desenvolvidos com recursos obtidos pelo governo federal
junto ao Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) ou ao Banco Mundial.
Nos estados que compõem o território
amazônico, instaurou-se um grande mercado de terras, em que o governo
controlava o acesso, a posse e a distribuição de áreas a serem exploradas.
Empresas de colonização, como a Sinop, a Indeco, a Incol, a Codemat, Jurena
Empreendimentos e a Colonizadora Líder, entre outras, adquiriam grandes
extensões, com mais de 200 mil hectares, através de licitações abertas pelo
Estado para a compra de terras devolutas, que podiam ser compradas a preços
irrisórios. A Indeco (Integração, Desenvolvimento e Colonização), por exemplo,
adquiriu do estado de Mato Grosso, em 1973, para efeito de colonização, 400 mil
hectares de terra, a Cr$ 50,00 o hectare. Incorporando terras contíguas, logo
apareceria como dona de mais de 1 milhão de hectares, num território encravado
em terras indígenas. A colonizadora Sinop adquiriu 650 mil hectares, num
primeiro momento, criando três núcleos de colonização, na área coberta pela
BR163 (Cuiabá-Santarém).
Em sua origem, as empresas que se dirigiram
para a Amazônia não eram diretamente ligadas ao agronegócio. Algumas pertenciam
a capitalistas estrangeiros, interessados em especular com a terra. Estas
colonizadoras destinavam apenas uma pequena parte no caso de Alta Floresta
(área explorada pela Indeco), mais ou menos 13% de toda a área enquadrada no
projeto - para pequenos agricultores. Eram oferecidos lotes com cem hectares,
que logo depois iriam sofrer um processo violento de fracionamento,
reproduzindo as mesmas condições das quais os colonos haviam fugido do Sul.
A
construção de novas cidades na região foi anunciada como o melhor caminho para
o país superar o "atraso". Ser moderno, como preconizava a
publicidade oficial, relacionava-se à adoção de novas tecnologias e à expansão
dos mercados. A paisagem da floresta era rasgada por estradas. Em propagandas
que exaltavam o "corredor de exportação", a BR-163 - Cuiabá-Santarém,
as novas cidades são apresentadas como exemplo de progresso. E mostravam seus
grandes saltos desde que clareiras foram abertas na selva.
Desde o primeiro momento da implantação dos
projetos de colonização, as plantas cartográficas que mapeavam os lotes urbanos
projetavam um território hierarquizado. Separavam por módulos os novos
habitantes, circunscrevendo o lugar social de cada colono. Reproduziam-se, no
plano da arquitetura urbana, as relações de poder em que as empresas assumiam o
controle sobre a circulação e a fixação dos moradores.
Os desenhos que projetaram a construção
das novas cidades na década de 70 podem ser vistos como um símbolo desta ordem
social. A cidade de Juína, próxima ao estado de Rondônia, é emblemática. Tem a
forma de vários octaedros interligados, cada qual representando um módulo, que
por sua vez é dividido em lotes. Estes octaedros que aparecem nas propagandas parecem
grandes colmeias, sugerindo, quase instantaneamente, que se trata de uma cidade
voltada para o trabalho. O desenho da cidade de Vila Rica, que se situa nos
limites com o estado do Pará, foi feito em forma de sino, evocando a
religiosidade do período colonial e a ostentação da riqueza aurífera.
Os núcleos urbanos dos projetos destinados
à colonização se envolveram também com a exploração de madeira por grupos
nacionais, mais tarde associados a empresas estrangeiras, à pecuária e à
mineração. A exploração de ouro no norte de Mato Grosso fez com que, a partir
do final da década de 70, houvesse uma verdadeira corrida para os garimpos
dentro dos projetos de colonização. Guarantã do Norte, Matupá, Terra Nova e
Colider cresceram com os garimpos do rio Peixoto Azevedo e rio Teles Pires.
Também foi assim com Alta Floresta, Paranaíta Carlinda e Apiacás, território
controlado pelo grupo Paranapanema. Já na parte mais a noroeste do estado,
reinava a Sopemi (Sociedade de Pesquisa e Exploração de Minério S/A),
subsidiária da De Beers, Consolidated Mines Ltda., nas grandes explorações e
pesquisas de diamantes, com sede na cidade de Juína.
Estas
cidades acabaram, assim, apresentando os maiores índices de aumento
populacional da Região Amazônica. Só Mato Grosso - após a divisão do estado, em
1977 - contabilizou mais de cem municípios novos até o ano 2000. Os municípios
de Sinop (74.831 habitantes), Alta Floresta (46.982), Juína (38.017) e Sorriso
(35.605), que surgiram como núcleos de colonização em finais da década de 70,
estão entre os maiores índices de crescimento do estado, segundo dados do censo
de 2000, do IBGE. No entanto, a "escravidão por dívida" e o não cumprimento
dos contratos de trabalho por parte dos patrões continuam sendo práticas usuais
na região.
As colonizadoras e grandes fazendas
contratavam a segurança de homens armados. Os herdeiros deste modelo de
colonização ainda utilizam instrumentos de vigilância sobre sua área de
influência, uns mais explícitos - como retirar os posseiros à força e até mesmo
queimando barracos -, e outros menos visíveis, oferecendo-lhes lotes em setores
mais afastados, insalubres, sem acesso a nenhuma infraestrutura.
Nos primeiros momentos da abertura das
novas áreas de colonização, as empresas construíram barreiras físicas, de
madeira ou cimento, para ter controle sobre a região. Utilizaram também
barreiras naturais, como rios de difícil travessia, para impedir a entrada dos
colonos sem identidade comprovada ou daqueles considerados indesejáveis. Os
moradores de Juína, cidade encravada em território indígena - Cinta-Larga,
Enawenê-Nawê, Erikbaktsa e Myky -, se acostumaram a conviver com os
"correntões" que ficam presos às guaritas das empresas onde se
abrigam sentinelas armadas. Elas se localizam em pontos estratégicos da área de
colonização. Ali se exige a identificação dos colonos, geralmente por meio de
uma carteirinha fornecida pela empresa.
Parcela
significativa de pequenos agricultores e trabalhadores, que chegaram à região
acreditando na possibilidade de adquirir um lote ou sonhando com novas
oportunidades de trabalho, acabou descobrindo que a terra prometida era o
paraíso da violência social. O trabalho escravo em propriedades rurais e áreas
de desmatamento tem sido alvo de constantes denúncias da Comissão Pastoral da
Terra e outras entidades.
Nos relatórios anuais da CPT, os estados
do Pará, Maranhão e Mato Grosso lideram os maiores índices de violência no
campo desde a década de 70. Esses números refletem um padrão de ocupação e
exploração da riqueza na Amazônia criado na época da ditadura, que acaba por
destruir a floresta amazônica em nome da construção de novas cidades e
estradas.
Atraídos pelas promessas do Eldorado
amazônico, homens e mulheres, em situação de grande pobreza, três décadas e
meia depois se deslocam de forma constante pela região em busca de trabalho.
Ora atuam nas áreas de mineração, ora participam das derrubadas da floresta. E
ainda nas grandes lavouras de soja, algodão e milho. Excluídos do mercado
regular de trabalho e sem qualquer documento de identidade, recebem variadas
denominações, sempre pejorativas, nos lugares por onde passam. São conhecidos
como "peões de trecho", "andarilhos" ou
"pés-inchados". Movem-se de uma cidade para outra, mudam de região e
de estado. Esses trabalhadores transformam o próprio caminho que percorrem na
sua morada. Trabalhar e caminhar, para eles, são sinônimos.
Regina
Beatriz Guimarães Neto é professora de
História na Universidade Federal de Mato Grosso e autora de A lenda do ouro
verde. Política de colonização no Brasil contemporâneo. Cuiabá: Unicen/apoio Unesco, 2002.
Fonte: Revista Nossa História - Ano II
nº 19 - Maio 2005
Saiba
Mais – Bibliografia
FERREIRA, Eudson de
Castro. Posse e propriedade territorial:
a luta pela terra em Mato Grosso. Campinas: Editora da Unicamp, 1986.
MARTINS, José de Souza. Fronteira: a degradação do Outro nos confins
do humano. São Paulo: HUCITEC, 1997.
OLIVEIRA, Ariovaldo
Umbelino de. A fronteira amazônica
mato-grossense: grilagem, corrupção e violência. Tese de Livre Docência -
Departamento de Geografia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo, 1997.
Saiba
Mais – Documentários
Mataram Irmã Dorothy
Em fevereiro de 2005, a irmã Dorothy Stang, de 73
anos, foi brutalmente assassinada. Ativista na defesa do meio ambiente e das
comunidades carentes exploradas por madeireiros e donos de terra na Amazônia, a
freira americana foi morta com seis tiros no interior do Pará. O documentário
revela os bastidores do julgamento dos assassinos de Dorothy e investiga as
razões de sua morte.
"Não vou fugir e nem
abandonar a luta desses agricultores que estão desprotegidos no meio da
floresta. Eles têm o sagrado direito a uma vida melhor numa terra onde possam
viver e produzir com dignidade sem devastar."
Direção: Daniel Junge
Ano: 2008
Duração: 94 minutos
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