Depois de
notabilizasse como conspirador e destruidor de presidentes, o jornalista e
político Carlos Lacerda enfrentou o desafio de transformar em estado a antiga
capital da República.
Marly Motta
Carlos Frederico Werneck de Lacerda nasceu
em 1914, no Rio de Janeiro. Se, por um lado, era neto de Sebastião Lacerda,
prestigiado representante da oligarquia fluminense, por outro era filho de
Maurício de Lacerda, político defensor dos direitos dos operários, e sobrinho
de Fernando e Paulo Lacerda, líderes do Partido Comunista Brasileiro. Seu nome
era uma homenagem a Karl Marx e Friedrich Engels. Em 1934, abandonou o curso de
direito para se dedicar à militância na Aliança Nacional Libertadora (ANL),
organização que reunia a oposição de esquerda ao governo Vargas. A violenta
repressão ao movimento comunista de novembro de 1935 o levou à clandestinidade
até 1938, quando foi trabalhar na revista O
Observador Econômico e Financeiro. Um artigo seu, publicado em janeiro de
1939, foi considerado prejudicial ao PCB e provocou sua "expulsão" do
partido, do qual, aliás, nunca fora membro. Banido da esquerda, associou ao
antigetulismo trazido da juventude um forte anticomunismo.
Lacerda ganhou notoriedade como jornalista
ao publicar no Correio da Manhã, em
22 de fevereiro de 1945, a entrevista com o escritor e político paraibano José
Américo de Almeida, em que este, rompendo o bloqueio da censura, criticava o
regime ditatorial de Vargas. No mesmo jornal, lançou a coluna "Na tribuna
da imprensa", destinada a cobrir os trabalhos da Assembleia Constituinte (1946).
Filiado à União Democrática Nacional (UDN), foi o candidato mais votado na
eleição de 1947 para a Câmara Municipal do Rio de Janeiro, então Distrito
Federal. A experiência parlamentar durou apenas um ano, já que renunciou ao
mandato por discordar da Lei Orgânica do DF, que dava aos senadores, e não aos
vereadores, o poder de examinar os vetos do prefeito carioca, indicado pelo
presidente da República.
O antagonismo entre Lacerda e o governo
chegou ao ápice na madrugada de 5 de agosto de 1954, quando o jornalista sofreu
um atentado na entrada do edifício onde morava, na Rua Tonelero, em Copacabana.
Foi ferido no pé, mas o major-aviador Rubens Vaz, que naquele dia lhe dava
proteção, foi morto. Os tiros na Tonelero foram o golpe fatal no cambaleante
governo de Vargas, que, à renúncia, preferiu o suicídio. Chamado de
"assassino de Vargas", Lacerda teve que se esconder para escapar da
fúria da multidão, que acorreu às ruas para chorar a morte do "pai dos
pobres".
No
entanto, pouco mais de um mês depois do suicídio, Lacerda derrotou um Vargas.
Não Getúlio, mas o filho Lutero, presumido herdeiro político. Na eleição de 3
de outubro, foi o deputado federal mais votado no Distrito Federal, com uma
diferença de quase 40 mil votos sobre Lutero, o segundo colocado.
A fama de “demolidor de presidentes” firmaria
em novembro de 1955, quando assumiu a liderança civil do movimento que tentou
impedir a posse dos eleitos em outubro, Juscelino Kubitschek e João Goulart, considerados
herdeiros do varguismo. Como escreveu em editorial da primeira página da Tribuna, no dia 9, "esses homens
não podem tomar posse; não devem tomar posse; não tomarão posse".
A conspiração, entretanto, fracassou por
conta da reação do ministro da Guerra, general Henrique Teixeira Lott, e
Lacerda ficou fora do país até outubro de 1956. Para se precaver contra sua
volta à cena política, Juscelino anexou uma nova cláusula aos contratos de
concessão de rádio e TV, mediante a qual os concessionários seriam punidos com
suspensão por trinta dias no caso de transmitir programas "insultuosos às
autoridades públicas". Segundo confissões do próprio ex-presidente, a
primeira pessoa em quem pensava ao acordar era Carlos Lacerda.
Na Câmara dos Deputados, onde permaneceu
de 1955 a 1960 - em 1958, foi, mais uma vez, o recordista de votos para a
bancada do Distrito Federal -, Lacerda foi o tribuno implacável, dono de uma
oratória que, segundo contemporâneos, "cortava os ares como rajadas de
fogo". A transformação da cidade do Rio de Janeiro em estado da Guanabara,
devido à transferência da capital para Brasília em abril de 1960, abriu uma nova
perspectiva para a sua carreira política: ser o primeiro governante do Rio
eleito pelos cariocas.
Logo no início da campanha, Lacerda
recebeu um precioso conselho do publicitário Emil Farhat: o momento não era de
demolir, e sim de construir. Ganharia a eleição o candidato que se mostrasse
mais capaz de conciliar a construção da nova Guanabara com a manutenção de um
lugar privilegiado para o Rio de Janeiro na federação. Em 1960, o eleitorado
foi às urnas para eleger também o sucessor de JK. Jânio Quadros venceu o
general Lott com uma margem mais confortável que a de Lacerda sobre seus
opositores, os deputados Sérgio Magalhães e Tenório Cavalcanti.
Vencida a eleição, o grande desafio era:
como um político nacional, radical, que desprezava a "política da
conversa", poderia articular apoios para governar, fazer alianças com os
grupos locais, construir as bases políticas de um novo estado? Lacerda apostou
na montagem de um governo "técnico", que preservasse a administração
das disputas políticas.
A atenção dedicada ao governo estadual não
reduziu a participação de Lacerda na política nacional. O discurso que fez na
televisão no dia 24 de agosto de 1961, denunciando a manobra golpista de Jânio,
aliado com quem rompera pouco depois da posse, provocou a renúncia do
presidente no dia seguinte. A fama de "demolidor de presidentes"
voltou com força, ainda mais pela movimentação frustrada para impedir a posse
do vice João Goulart, o herdeiro do getulismo.
Em tempos de Guerra Fria, o anticomunismo
era uma importante bandeira, mas Lacerda sabia que precisava apresentar bons
resultados à frente do governo da Guanabara. Educação, urbanização e habitação
foram as áreas mais beneficiadas, e que até hoje dão a Lacerda um lugar
privilegiado na memória carioca. Contando com recursos externos e,
principalmente, com receitas oriundas do aumento de impostos, o governador
investiu tanto na construção de escolas, quanto de adutoras (Guandu), viadutos
e túneis (Rebouças e Santa Bárbara) e parques (Aterro do Flamengo), firmando,
assim, a imagem do administrador "tocador de obras". Afinal, para
enfrentar JK, o construtor da Novacap (Brasília), e seu possível rival em 1965,
Lacerda teria de "reconstruir" a chamada Belacap.
Foi polêmica a decisão de remover algumas
favelas da Zona Sul e de construir conjuntos habitacionais em subúrbios da Zona
Oeste, como os de Vila Aliança e Vila Kennedy, para abrigar os favelados. A ideia
de que o governador não gostava de "pobres", vinda desde a época do
suicídio de Vargas, foi alimentada pela chacina de mendigos ocorrida em 1962 -
corpos foram encontrados no rio da Guarda -, e habilmente explorada por seus
adversários. Tachado de "mata-mendigos", Lacerda passou a ser acusado
de pretender exterminar também os favelados.
A derrubada do governo Goulart pelo golpe
militar de 1964, incentivado e apoiado pelo Palácio Guanabara, não ajudou a
caminhada de Lacerda rumo a Brasília. Ao contrário. Decidido a exorcizar o
fantasma do "demolidor", o general-presidente Castello Branco
suspendeu as eleições previstas para 1965 e obteve a prorrogação de seu mandato
até março de 1967. Derrotado na própria sucessão na Guanabara, quando seu
candidato, Flexa Ribeiro, foi batido por larga diferença de votos por Negrão de
Lima, Lacerda teve que se defrontar com as mudanças institucionais impostas
pelo regime militar: fim dos partidos políticos, bipartidarismo (Arena e MDB) e
eleições indiretas para presidente e governador.
O estreitamento político em nível nacional
e o surgimento de outros personagens na política carioca, como Chagas Freitas,
levaram Lacerda a apostar na Frente Ampla, de oposição ao regime militar, e a
procurar dois antigos adversários, Kubitschek e Goulart, cassados em 1964. A
Frente Ampla fracassaria, e Lacerda também seria cassado, em 30 de dezembro de
1968, em seguida ao AI-5. Nove anos depois, a perspectiva da abertura política
o animou a dar uma longa entrevista ao Jornal
da Tarde (SP), entre 19 de março e 16 de abril de 1977. Como disse na
ocasião, "ainda não estava na idade de sair da política". No entanto,
a morte por septicemia, em 21 de maio, contrariou suas previsões.
Casado com Letícia Lacerda e pai de três
filhos, foi escolhido como modelo de governante por políticos cariocas, e
sempre lembrado em momentos de crise política, Lacerda ocupa um lugar especial
no imaginário político nacional e local, já que encarna, ao mesmo tempo, o
tribuno incendiário, "demolidor de presidentes", e o administrador
competente, o "construtor da Guanabara".
MARLY MOTTA é pesquisadora do CPDOC-FGV e autora de Saudades
da Guanabara. Rio de janeiro: Editora da
FGV, 2000 e de Rio, cidade-capital. Rio de janeiro: Zahar, 2004.
Fonte: Revista Nossa História - Ano II
nº 19 - Maio 2005
Saiba
Mais – Bibliografia
BENEVIDES, Maria Vitória. A UDN e o udenismo: as ambiguidades do
liberalismo brasileiro (194S-65). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.
DULLES, John W. Foster. Carlos Lacerda: a vida de um lutador.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, v. 1 (1992); v. 2 (2000).
FERREIRA, Jorge.
"Crises da República: 1954, 1955 e 1961". In: FERREIRA, Jorge e
DELGADO, Lucília de Almeida Neves (orgs.). O
Brasil republicano. O tempo da experiência democrática. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira. 2003.
LACERDA, Carlos. Depoimento. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1978.
Saiba
Mais – Filmes
Flores Raras
Direção: Bruno Barreto
Ano: 2013
Áudio: Português
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