Caderno escrito por Anna de Assis revela bastidores do casamento
conturbado, mais de 100 anos após a morte de Euclides da Cunha.
“Vim para
matar ou morrer”, anunciou Euclides da Cunha à soleira da porta da residência
de seu maior rival, Dilermando de Assis. A ameaça antecedeu o que os jornais
cariocas chamaram de “A tragédia da Piedade”, um caloroso tiroteio no subúrbio
do Rio de Janeiro que resultou na morte de um dos escritores mais aclamados do
Brasil. Os acontecimentos da manhã do dia 15 de agosto de 1909 findaram um
matrimônio conflituoso de quase 20 anos: Euclides abraçou a morte, em defesa da
honra. No dia anterior, sua esposa, Anna Emília Ribeiro, a S’Anninha, se
retirara para a casa de Dilermando com o filho bastardo nos braços, após uma
briga em que pedira a separação. Anna foi condenada pela opinião pública como a
adúltera que provocou a tragédia, e Dilermando, o campeão de tiro que
assassinou o gênio destemperado. Mas um documento descoberto recentemente
mostra outras dimensões destes heróis e vilões que foram personagens até de
minissérie de TV.
“Não venho ofender nem acusar”,
justificou-se S’Anninha na primeira página do pequeno caderno em que se
propunha a narrar episódios da vida conjugal com o primeiro marido. Uma vida,
segundo ela, marcada por infelicidade, desgosto e humilhação. “Venho cumprir
com um sagrado dever e dar desencargo à minha consciência e tranquilidade a meu
espírito, dizendo que de nós três: Euclides, Dilermando e eu, três criminosos,
o mais responsável sou eu. Sim! E isso porque, abrindo as portas do lar a um
desconhecido de meu marido, ausente, longe, perdido no extremo norte do Brasil,
abria também as do crime, fechando-as sobre a primeira vítima enlaçada e
escolhida pela fatalidade”.
Até a sua morte, em 1951, Anna não falou
publicamente sobre o ocorrido. Segundo a família, ela costumava dizer que o
silêncio era sua defesa. Não se calou para sempre: deixou um testemunho que
ficou guardado por mais de 100 anos numa estante em Belo Horizonte. O
manuscrito intitulado O Caso do homicídio de Euclides da Cunha por
Dilermando de Assis – Exposição e narrativa dos fatos feitos escrito do próprio
punho da mulher da vítima estava entre as coisas de Gregório Seabra Jr.
(1874-1941). Assistente do advogado Evaristo de Moraes, que defendeu Dilermando
nos dois julgamentos que o absolveram por legítima defesa, em 1911, pelo
assassinato de Euclides da Cunha e, em 1916, pelo do filho, Quidinho. Em maio
passado, o bisneto de Seabra Jr., Luiz Henrique Oliveira, encontrou o documento
e decidiu devolvê-lo à família de S’Anninha. “Era o desejo de meu bisavô
e, depois, meu pai, mas naquela época não existia internet. Ninguém podia ler,
era assunto confidencial”, conta.
Feita a vontade dos antepassados, hoje o caderno
está nas mãos de Anna Sharp, neta de S’Anninha e Dilermando, que é escritora e
assumiu um compromisso com a memória da avó. Assim que terminar o livro Vozes
do passado, sobre a Tragédia da Piedade, pretende doar o manuscrito à
Biblioteca Nacional. Por ora, o material está fora do alcance de
pesquisadores e jornalistas, com exceção de alguns trechos, aos quais a
reportagem teve acesso.
Sharp diz
que o testemunho de S’Annninha no “diário” confirma a história contada à sua
mãe, Judith Ribeiro de Assis, por sua vez, autora de Anna de Assis:
História de um trágico amor (1989). Para a neta, a avó foi uma mulher à
frente de seu tempo, que não aceitava a submissão ao marido, que a maltratava.
Amou demais e pagou por isso. A terapeuta imagina que o documento é “a
entrevista que nunca deu, contando tudo em detalhes, desde a primeira noite com
Euclides. As núpcias foram um estupro, ele rasgou todas as roupas dela,
chamando-a de ‘vaca’. Ela conta essa brutalidade, o ódio que ele tinha das
mulheres”.
Euclides da Cunha é retratado como um homem
que tinha acessos de raiva, antes mesmo de saber que era traído. Nesses
momentos de cólera, o escritor xingava a esposa, cuspia-lhe na face e a ameaçava.
Em uma página, ela narra que ele “insultava-me como um alucinado, rompendo nos
maiores destemperos, tomando os meus vestidos e despedaçando-os todos nas
maiores ameaças”. Segundo ela, o marido “queria impor-me o amor e pretendia-o
por meio dos insultos e das brutalidades!”. Em uma passagem forte, S’Anninha
acusa-o de tê-la forçado a beber seu escarro de sangue que fora depositado em
um balde, após uma crise de tosse tuberculosa. “Dispus-me a suportar com
paciência o meu triste fardo, tratando com a estima natural e derivada
convivência diária. Detestava-o, no entanto, e o temia”, escreve.
Não há registro da guerra entre quatro
paredes sem ser pelos relatos de S’Anninha – incluindo o último depoimento à
polícia. Mas o caso é que a moça não escondeu a traição durante três anos,
tendo engravidado duas vezes do amante. Da primeira, nasceu Mauro, que teve uma
morte misteriosa, por inanição, aos 7 dias de vida. S’Anninha acusa Euclides de
tê-la proibido de amamentar o bebê. Da segunda, surgiu Luiz, registrado como da
Cunha, mas que o escritor chamava raivosamente de “a espiga de milho num
cafezal”, devido aos cachos loiros que a criança herdou do cadete.
Biógrafos do escritor chegaram a supor que
S’Anninha se entregou aos desejos da carne devido à ausência prolongada do
marido em casa. Em dezembro de 1904, poucos anos após ter sido correspondente
do jornal O Estado de S. Paulo na Guerra de Canudos, Euclides, autor já
conhecido por Os Sertões (1902), embarcou para uma expedição à
Amazônia. Só regressaria ao Rio de Janeiro em 1906, encontrando Anna Emília
grávida de três meses. A própria S’Anninha se acusa: “se errei, errava porque
queria errar. Tinha liberdade de ideias, de sentimentos, de amar. Portanto, não
digam que foi a liberdade derivada da ausência de Euclides a causa do meu
passo. Não! Não, porque sempre a tive, mesmo com a sua presença que me não
tolhia”.
O historiador Leopoldo Bernucci, professor de Estudos
Latino-Americanos na Universidade da Califórnia, pondera que o caderno precisa
ser analisado por especialistas. E observa que “o sexo teve uma força decisiva
no jeito como S’Anninha seguia com a vida”, já que ela não pensou nas
consequências desta paixão para um homem público. Segundo Bernucci, que há 20
anos estuda a poesia de Euclides da Cunha, o escritor, ao contrário da mulher
com quem se casou, era pouco ligado ao amor e menos ainda à figura feminina:
perdeu a mãe aos 3 anos e foi criado por parentes, já que o pai viajava sempre
a trabalho. Desde jovem, outros sentimentos lhe eram mais significativos, como
honra, lealdade e honestidade. “A mulher, para ele, era uma parte do protocolo
social. Acredito que não teve um pendor muito forte para a relação amorosa. Ele
tinha suas perturbações mentais, era muito nervoso, explosivo.
Ficava evidente no meio
social e as pessoas tentavam se manter afastadas”. Sua poesia, por exemplo,
apesar de romântica, era política, tinha apreço pelos ideais da Revolução
Francesa. Poucas foram as vezes em que se aventurou a escrever sobre amor e,
segundo o professor, quando o fazia, era de forma superficial. Para ele,
“Euclides foi vítima de seu tempo e de si mesmo”.
Mary del Priore, autora de Matar
para não morrer, indica que é preciso relativizar o relato autobiográfico,
principalmente neste caso, em que S’Anninha teria escrito seu depoimento logo
após a morte do marido, em um momento em que era condenada fortemente pela
opinião pública. A historiadora comenta que “a questão da honra masculina e a
virilidade eram coisas muito importes para o homem do fim do século XIX e
início do XX. Homens preferiam morrer a ter a honra questionada”.
A defesa da honra matou quatro pessoas. O
primeiro foi Euclides da Cunha, que num acesso de raiva partiu para Piedade com
uma pistola emprestada nas mãos, alvejando não só Dilermando, mas o irmão
Dinoráh, jogador de futebol do Botafogo, que cometeu suicídio por complicações
posteriores. Logo depois, Euclides da Cunha Filho, o Quidinho, para limpar o
nome da família, atacou pelas costas Dilermando, então marido de Anna Emília.
Teve o mesmo destino do pai. O quarto morto seria o próprio Dilermando, que
faleceu de infarto em 1951. “Ele foi o mais prejudicado, pois foi condenado a
carregar nas costas a pecha de causador de um desastre do qual foi vítima. Seu
erro: tinha apenas 17 anos e apaixonou-se por uma mulher bem mais velha, que
sabia o peso dos passos que deu para a desonra da família”, afirma Mary del
Priore.
A tragédia começou no altar e culminou num
desastre com muitas vítimas. Como o professor Bernucci lembrou, “aquele
casamento foi uma combinação que não deu certo desde o começo”. Uniu sob o
mesmo teto uma mulher que preferiu amar sem se ater às convenções sociais e um
homem para quem uma ideia tradicional de família era mais importante do que a
própria vida.
Saiba Mais – Bibliografia
ASSIS, Judith Ribeiro de.
Anna de Assis: História de um trágico amor. Rio de Janeiro: Bestbolso,
2008.
DEL PRIORE, Mary. Matar
para não morrer. Rio de Janeiro: Editora Objetiva. 2009.
GALVÃO, Walnice Nogueira.
Euclides da Cunha – Autos do processo sobre sua morte. São Paulo: Terceiro
nome, 2009.
Saiba Mais – Link
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