Proposta
original da Umbanda era negar o passado negro do país e submeter as religiões
vindas da África aos valores dominantes da cultura brasileira.
Artur Cesar
Isaia
As teses aprovadas no encontro tentavam,
por outro lado, ligar a Umbanda ao Espiritismo, que Allan Kardec, na França, em
meados do século XIX, tentara aproximar da ciência. A elite brasileira tendia a
valorizar essa vertente livresca do Espiritismo. Alguns dos primeiros
intelectuais da Umbanda preferiam apresentá-la como uma modalidade do
Espiritismo, reinterpretado em solo brasileiro e acrescido de um ritual,
inexistente na matriz francesa kardecista. Para eles, os rituais próprios da
Umbanda deviam ser mantidos porque a tornavam mais próxima ao povo. Essa
relação aparece claramente na literatura doutrinária umbandista que proliferou
na primeira metade do século XX. Alguns livros desta fase chegam a cogitar que
o próprio ritual tenderia a diminuir de importância na religião, ou mesmo
desaparecer, na medida em que o povo brasileiro se tornasse mais
"educado". Quando isso acontecesse, a população estaria menos presa a
certas práticas, como o uso de velas, o culto a imagens e mais próxima da
doutrina que os teóricos umbandistas divulgavam através dos seus livros.
Na maioria das obras da época a Umbanda
aparece articulada à vida urbana, prescindindo das práticas julgadas
primitivas, típicas do Candomblé, como o sacrifício de animais, as reclusões,
os toques de atabaques etc. Um periódico editado no Rio de Janeiro nos anos 50,
O Jornal de Umbanda, chegou mesmo a
publicar que o samba e o Carnaval eram indícios do mesmo "barbarismo"
do Candomblé. Em contrapartida, os primeiros dirigentes da Umbanda fizeram
questão de comprometer os adeptos da nova religião com uma imagem laboriosa,
saudável. Preocupavam-se bastante com os horários das giras (sessões), que não
deveriam conflitar com o período de descanso dos trabalhadores.
Também havia um cuidado muito grande com
a ingestão de bebidas alcoólicas durante os cultos. O marafo (aguardente)
deveria ser usado com muita parcimônia. A preocupação com o alcoolismo
corroborava a tendência de aproximar a nova religião do modo de vida dos
cidadãos honestos, produtivos e respeitáveis. Uma das teses aprovadas no
congresso de 1941 abordava o esforço dos umbandistas na erradicação do
alcoolismo, considerado nocivo e ameaçador para a classe operária. De forma
clara, a Umbanda procurou, no começo, distanciar-se das manifestações
mediúnicas disseminadas nas camadas populares, como a Macumba. Muitos registros
dessa época mostraram as atividades mediúnicas entre os pobres bastante ligadas
ao modo de vida dos negros. Em inúmeros registros da época encontramos a
expressão "baixo Espiritismo" denominando essas práticas, próprias de
segmentos marginalizados. Estas deveriam ser disciplinadas, ritual e doutrinariamente,
dentro da proposta de a Umbanda se afastar da negritude e da pobreza.
Quanto ao negro, este aparece sempre como
um sábio conselheiro. A sapiência do Preto Velho advém da idade avançada. Por
se tratar de um ancião, não representava nenhum risco físico à sociedade: é um
negro alquebrado pelos anos e muito familiar à "casa-grande", ao
mundo dos brancos, com quase nenhum traço do seu passado africano. A oposição à
ordem vai ser feita, na Umbanda, por outros integrantes do seu panteão: os
Exus. Essas entidades eram, contudo, consideradas como carentes de
"evolução", aquém, portanto, dos guias "luzeiros", como
Caboclos e Pretos Velhos. Na ancestralidade africana, os Exus desempenhavam um
papel importantíssimo, como mensageiros dos Orixás, estando ligados ao
movimento, ao dinamismo da vida, à energia sexual. Nas antigas Macumbas e na
própria Umbanda, os Exus passaram a ser representados com explícitas
aproximações com o demónio cristão.
Essas entidades, os Exus, eram
consideradas ambíguas e perigosas. Ou a Umbanda não trabalhava com as mesmas ou
o fazia apenas em ocasiões muito especiais, e assim mesmo cercando esses trabalhos
de muita privacidade e mistério. Sendo, na sua ótica, entidades
"primitivas", a Umbanda encarava os Exus numa perspectiva
evolucionista e - para "evoluírem" - tinham de se regenerar pelo
trabalho. Renato Ortiz faz menção ao chamado "Exu Batizado", ou seja,
àquele que, aceitando finalmente a ética cristã, reinterpretada pelo
Espiritismo, "evolui" e passa a frequentar os trabalhos de caridade,
junto com Caboclos e Pretos Velhos. O "Exu Batizado", para Ortiz,
representaria a submissão do transgressor às normas sociais dominantes.
Existe uma narrativa mítica para o
surgimento da Umbanda, divulgada apenas na segunda metade do século XX, de
acordo com o antropólogo Emerson Giumbelli. Esta narrativa corrobora a
determinação de afastar a nova religião do universo cultural africano. Segundo
ela, a Umbanda teria surgido no início do século XX, mais precisamente no dia
15 de novembro de 1908, quando o espírito de um indígena - o Caboclo das Sete
Encruzilhadas - "manifestou-se" num médium de cor branca, bem posto
socialmente, morador do interior do Rio de Janeiro, transmitindo-lhe os
fundamentos da nova religião. O médium se chamava Zélio Fernandino de Moraes, e
é bastante sintomática a "coincidência" com a data da Proclamação da
República. Em alguns livros doutrinários, a religião aparecia, junto com a
Abolição e a República, como um marco na "evolução" do povo
brasileiro. Este "mito de origem" da Umbanda aparece carregado da
ética cristã, reinterpretada pelo Espiritismo francês do século XIX.
Reafirma-se nele a doutrina espírita baseada nas leis do progresso contínuo dos
espíritos, todas assentadas na ideia de reencarnação.
A Umbanda enfatizava uma relação estreita
com o catolicismo, talvez como estratégia de aproximação aos valores familiares
mais estimados pela sociedade brasileira. Isso aparece muito bem nas
denominações dos centros ou "terreiros", que fazem menção aos nomes
da Virgem Maria e dos santos, e nas imagens dos mesmos, sincretizadas com os
Orixás. Só na segunda metade do século XX ocorreria o processo de
"africanização" da Umbanda, onde os valores da negritude e a
identidade negra passaram a conquistar mais espaço. A representação dos Orixás
começa então a se aproximar da simbologia africana, tendo muitos centros
abandonado, inclusive, a correspondência com os santos católicos. Por outro
lado, a Umbanda desenvolveu, ao longo do tempo, uma notável capacidade de
adaptação às transformações sociais e às diferenças regionais do Brasil,
incluindo no seu panteão tipos como o malandro carioca e o boiadeiro
nordestino. Dessa maneira a Umbanda mudou inteiramente de feição.
Reinterpretando aqui a tradição africana, tornou-se sem dúvida mais capaz de
celebrar a diversidade social e cultural brasileira.
Artur Cesar
Isaia é doutor em História Social pela
USP, professor de História da Universidade Federal de Santa Catarina e
organizador da obra Orixás e Espíritos: o debate interdisciplinar na
pesquisa contemporânea (Editora da
Universidade Federal de Uberlândia, 2006).
Fonte
– Revista Nossa História - Ano III nº 36 - Outubro 2006
Saiba
Mais – Bibliografia
BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil. São Paulo: Pioneira EDUSP, 1971.
GIUMBELLI, Emerson. "Zélio de Moraes e as
origens da Umbanda no Rio de Janeiro". In: SILVA, Vagner (org). Caminhos da Alma. São Paulo: Summus,
2002.
ORTIZ, Renato. A morte branca do feiticeiro negro. Umbanda: Integração de uma religião
numa sociedade de classes. Petrópolis: Vozes, 1978.
PRANDI, Reginaldo. Segredos guardados. Orixás na alma brasileira. São Paulo: Companhia
das Letras, 2005.
Saiba
Mais – Link
Episódio 02
- Bezerra de Menezes
“O médico
dos pobres”, assim era conhecido o Doutor Bezerra de Menezes. Saiu de sua
cidade, no interior do Ceará, e veio para o Rio de Janeiro estudar medicina,
sua grande paixão. O que o diferenciava dos outros médicos? Uma enorme
compaixão e espírito de caridade. Fez carreira na política e, ao ser
apresentado ao espiritismo, assumiu publicamente a sua posição, causando muita
polêmica.
Negar os negros com um monte de negro já foto. O Brasil tá muito doente a África nem sabe o que é Umbanda. Aliás, lá mais de 90% do povo se concentra em religiões monoteístas, como Cristãos Ortodoxos, muçulmanos. Gente agora que a umbanda virou modinha vocês aparecem com essa. A religião é um mix de outras religiões e piada pronta, eu hem.
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