Condecorado
por bravura na guerra do Paraguai, d. Obá II d'África pode ser considerado um
pioneiro dos modernos movimentos de afirmação da negritude
Eduardo
Silva
A morte de Abiodun, no final do século
XVIII, marcou o início da decadência do império ioruba na África Ocidental - no
seu auge chegou a controlar a área entre o rio Níger, ao leste, e o rio Volta,
a oeste, e a conquistar o reino de Dahomey -, que deixou de ser grande
'vendedor' de escravos para ter seu povo vendido em grande quantidade,
'iorubanizando' a Bahia até 1850. Alafin Abiodun, segundo a tradição oral
africana, deixou a fama de sábio e de ter realizado um "longo e
próspero" reinado para seus súditos. Poderoso, possuía centenas de esposas
e foi pai de nada menos que 660 crianças - segundo o reverendo Samuel Johnson
(1846-1901), pastor em Oyó, capital do império, e decano da historiografia
ioruba.
Presume-se que pelo menos um desses
filhos foi aprisionado, acabou vendido em Salvador como escravo e recebeu o
nome cristão de Benvindo. Usando seu prestígio como príncipe, Benvindo deve ter
conseguido envolver a comunidade ioruba em algum sistema de cotização e comprar
sua alforria. Certo é que seu filho, d. Obá II, já nasceu como homem livre.
Príncipe guerreiro, d. Obá apresentou-se
para lutar na Guerra do Paraguai (1864-1870), saindo oficial honorário do
Exército, por bravura. Em 1877, fixou residência no Rio de Janeiro, onde passou
a fazer campanha por melhores condições de vida, igualdade racial, abolição da
chibata e da escravatura.
Com dois metros de altura, voz firme e
modos de soberano, sua figura imponente chamava a atenção. Apresentava-se
sempre bem vestido, de fraque, cartola, luvas, guarda-chuva, bengala, pincenê
de ouro e suas "finas roupas pretas", como foi descrito pelo viajante
alemão Carl Von Koseritz. Ou, em ocasiões especiais, em seu elegante e
preservado uniforme de alferes, com galões e dragonas douradas, espada à cinta
e chapéu armado com penachos coloridos.
A elite da época, ignorando a história da
África e os direitos reais africanos, entendia d. Obá II como um subproduto da
Guerra do Paraguai (ver box), uma espécie de
veterano resmungão, "meio amalucado", figura meramente folclórica.
Por outro lado, o povo negro reconhecia e seguia sua liderança como príncipe
real. Escravos, negros libertos do cativeiro e homens negros livres, ou seja,
que nunca foram escravos, não só compartilhavam suas ideias como contribuíam
financeiramente para a publicação nos jornais. E depois se reuniam em suas
modestas casas para ler em voz alta e discutir os artigos.
Mas o que interessava tanto aos leitores?
D. Obá pensava de um modo bem diverso da elite que via as raças humanas
essencialmente diferentes; para ele, pareciam perfeitamente semelhantes, e o
valor dos homens não estava na cor da pele, mas no mérito, no valor guerreiro e
humano de cada um. Por isso, a defesa da igualdade entre os homens se torna um
dos pontos centrais de sua prática política, e a abolição total da escravatura
vira sua bandeira de luta pública a partir de 1882.
Soldado valoroso, defensor da pátria nos
campos de batalha, d. Obá II d'África se sentia com autoridade moral para
criticar abertamente a classe dominante e os escravistas: "o único desejo
que certos ingratos brasileiros têm é serem acompanhados da preguiça, e não
desejarem o bem-estar do país, nem coadjuvar o cego desejo da nação inteira em
ser de uma só vez lavada a grande mancha da escravidão", publicava o
jornal Carbonário, em 8 de junho de 1883.
Mesmo comprometido com a abolição total,
não poupava elogios, através do jornal Carbonário, aos responsáveis por leis
como a do Ventre Livre (1871): "Ei-lo o gabinete 7 de março de 1871, onde
teve à sua frente os eminentes estadistas [...], o imortal Rio Branco e todos
os seus membros bem conhecidos". E também a Lei Saraiva-Cotegipe (1885),
conhecida como a dos Sexagenários,"[...] o digno barão de Cotegipe no
honrado gabinete de 20 de agosto de 85, que em ambos tenho fielmente
militado".
E quando sentia que o rumo dos
acontecimentos necessitava de uma boa ajuda, apelava para as forças do
sincretismo afro-brasileiro: "invoco sempre ao bem-estar dos conselheiros
enfermos [...] em todas as minhas preces [...] a santa Bárbara e aos mais
santos da África", confessou ele em outubro de 1887, no primeiro aniversário
da abolição do açoite. Três anos mais tarde, em julho de 1890, após a áurea lei
que pôs fim à escravatura, o príncipe negro d. Obá II d’África morria no Rio de
Janeiro, mas seu sonho de igualdade sobrevive.
Eduardo Silva
é pesquisador na Fundação Casa de Rui
Barbosa, no Rio de Janeiro, e autor de Dom Obá II d'África, o príncipe do
povo: vida, tempo e pensamento de um homem livre de cor. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
Fonte
– Revista Nossa História - Ano II nº 19 - Maio 2005
Saiba
Mais – Bibliografia
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a
República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
JOHNSON, Samuel. The history ofthe Yorubas: from the earliest
times to the beginning ofthe ritish Protectorate. Lagos: C.S.S., 1976.
KOSERITZ, Carl Von. Imagens do Brasil. São Paulo: Martins,
1943.
SILVA, Alberto da Costa e.
A enxada e a lança: a África antes dos
portugueses. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; São Paulo: EDUSP, 1992.
Assista à reportagem: “Ecos da Escravidão”,
que traça o longo e difícil caminho do cativeiro à abolição, a luta pela
liberdade, as formas de alforria, os principais abolicionistas. Ainda analisa a
polêmica: é possível ou não reparar os males deixados à população negra por
anos e anos de trabalho escravo?
Os repórteres Carlos Molinari e Débora Brito
foram aos principais polos de trabalho escravo no Brasil (Vale do Paraíba,
Bahia, Pernambuco, Minas Gerais).
Saiba
Mais – Links
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