Ricardo Salles
Em
carta confidencial ao ministro dos Negócios da Guerra, datada de 13 de dezembro
de 1869, o marquês de Caxias, comandante-em-chefe das forças militares
brasileiras no Paraguai, depois de louvar feitos de bravura praticados pela
tropa brasileira e por seus oficiais, lamentava ter que relatar que assistira a
"muitos atos vergonhosos e que altamente depõem contra nosso
Exército". Em sua opinião estes fatos se deviam à introdução do elemento
servil nas fileiras, com "seus maléficos resultados por meio dos exemplos
imorais, e de todo contrários à disciplina e subordinação, dados constantemente
por homens que não compreendem o que é pátria, sociedade e família, e que se
consideram ainda escravos que apenas mudaram de senhor...". Caxias se
referia aos libertos, isto é, escravos recém-libertados por seus senhores, no
caso com a finalidade de servir no Exército em campanha no Paraguai.
A participação de libertos na Guerra
do Paraguai é um dos assuntos mais falados e mais deturpados de nossa história.
Depois de um longo período em que foi simplesmente ignorada, a partir dos anos
70 do século XX, sua presença na guerra passou a ganhar grande destaque. Nesta
época, consolidou-se uma imagem do exército imperial como composto
majoritariamente por negros escravos, libertados para fazer a guerra de seus
senhores. Estes, diante da convocação militar, teriam optado por enviar seus
cativos para a guerra. Por um lado, o silêncio e mesmo acobertamento da
participação de libertos na guerra realizados pela memória oficial, sobretudo
militar, com seus heróis e monumentos grandiosos. Por outro, baseada em
testemunhos preconceituosos e racistas de paraguaios, argentinos, europeus e
mesmo de brasileiros, a crítica fácil e sensacionalista de uma versão
alternativa que se contenta em ridicularizar a nossa história, sempre vista
como farsa. Duas versões opostas, mas que conduzem a um mesmo resultado cruel:
um povo sem história, ou com uma história envergonhada.
Logo de início, um primeiro equívoco
desta memória perversa a ser desfeito: como a grande maioria dos soldados
brasileiros era composta por negros e mestiços, portanto eram todos escravos.
Uma relação simplificada que esconde um enorme preconceito, ainda presente no
senso comum e em inúmeros textos historiográficos, que equiparam negros a
escravos. Em 1867, no auge da guerra e do recrutamento, os escravos eram 12,4%
da população, enquanto que negros e mestiços livres representavam 52,5% deste
total. Assim, não há por que assumir, como fizeram paraguaios, argentinos e
testemunhas estrangeiras, que os soldados brasileiros, por serem em sua maioria
negros, eram escravos. E os cativos libertados para compor as fileiras do
Exército que tanto incomodavam Caxias? Não seriam uma comprovação da tese de
que escravos libertos por seus senhores comporiam a maioria da tropa que fez a
guerra?
Um
"Mapa dos libertos que têm assentado praça desde o começo da guerra",
realizado em abril de 1868, que consta do Relatório da Repartição dos Negócios
da Guerra, pode lançar alguma luz sobre o assunto. Dos 70.943 indivíduos enviados
para o Paraguai até aquela data, 3.897, ou 5,49% do total, eram libertos. O
Relatório, entretanto, assumia que o mapa era incompleto por falta de dados de
algumas províncias e que o número de libertos deveria ser maior. Entretanto,
não há por que acreditar que este número tenha sido superior a 10% do contingente
enviado ao Paraguai. Diferentes investigações sobre o assunto, examinando
documentação de recrutamento em províncias que mais enviaram soldados para a
guerra, como Rio Grande do Sul, Bahia e Rio de Janeiro, confirmam esta
afirmação. Mais ainda, sabemos pelas atas de reuniões do Conselho de Estado,
realizadas na virada dos anos de 1866 para 1867, que foi considerada e, em
seguida, descartada a alternativa de se libertarem escravos em massa para
atender às necessidades da guerra. Segundo a maioria dos conselheiros, a medida
seria de difícil execução, muito onerosa aos cofres do Estado, já que os donos
dos cativos teriam que ser indenizados, e poderia vir a colocar em perigo a
ordem pública. Por tudo isso, o Conselho recomendou que a libertação de cativos
para a guerra fosse realizada de forma controlada.
E é exatamente neste ponto que o
"Mapa" fornece elementos para se desfazer um segundo equívoco: o de
que escravos foram libertados para substituir seus senhores nas fileiras. Os
3.897 libertos arrolados no "Mapa" estão divididos em cinco
categorias: da Nação (267); da Casa imperial (67); dos Conventos (95); da Conta
do governo (1.806); Gratuitos (753) e Substitutos (889). Escravos da Nação eram
os africanos trazidos ilegalmente para o país depois da proibição do tráfico
internacional de escravos em 1850 e apreendidos pelo governo, que os mantinha e
a seus descendentes - sob sua custódia. Formalmente livres, na prática eram o
que a própria designação deixava transparecer, escravos da Nação. Trabalhavam
em obras públicas, eram alugados a particulares e, em 1867, prestaram seu
último serviço à Nação, indo morrer e matar no Paraguai. Escravos dos conventos
pertenciam a estas instituições, formalmente subordinados ao Estado imperial, e
que libertaram seus cativos para a guerra. A categoria Conta do governo, com a
maior parcela de libertos enviados para a guerra, representava os escravos
libertados por seus donos mediante indenização, parte em dinheiro, parte em
títulos públicos.
Libertar escravos fujões, insubmissos
ou doentes (ainda que as autoridades militares devessem recusar recrutas sem
boas condições físicas) para a guerra mediante indenização, mesmo que
parcialmente em títulos públicos, poderia representar um bom negócio e angariar
algum prestígio a seus donos por seu ato patriótico de contribuição ao esforço
de guerra. Prestígio que também buscavam os senhores que ofereciam seus
escravos como Voluntários da Pátria, sem requerer qualquer contrapartida
financeira, como podemos observar na rubrica dos Gratuitos.
É na categoria dos Substitutos, pouco
menos de um quarto do total, que podemos encontrar os escravos libertados para
fazerem a guerra de seus senhores. Esta rubrica continha claramente o caso dos
indivíduos que, convocados para a guerra, enviaram um substituto em seu lugar,
prática comum na época, no Brasil e em outros países. Não era raro pagar um
indivíduo livre como substituto para o serviço militar, inclusive e talvez
principalmente nos períodos de guerra. Na sociedade escravista brasileira,
poderia ser mais barato comprar um escravo para este fim, ainda que os
documentos também revelem o caso de substitutos pagos. É duvidoso, no entanto,
que os que assim agiram fossem filhos de fazendeiros, como quer o senso comum,
querendo escapar de suas obrigações militares. Famílias ricas dispunham de
meios materiais e de prestígio social mais do que suficientes para evitar que
seus filhos fossem à guerra como simples recrutas. O mais provável é que se
tratasse de pessoas pobres e remediadas, muitas delas pequenos proprietários de
escravos, que não tiveram outro recurso para evitar a ida aos campos de
batalha.
Finalmente,
houve um número indeterminado de escravos fugidos que se engajaram como homens
livres, buscando, assim, se assegurar de que não seriam reconduzidos ao
cativeiro, já que, uma vez aceitos pelo Exército, o governo não permitia sua
reescravização. Mesmo que tivesse que indenizar seus antigos senhores.
A verdade é que o esforço de guerra
foi imenso. Entre 150 e 200 mil homens foram mobilizados, um em cada vinte
homens, se levarmos em conta somente aqueles em condições de alistamento, isto
é, entre 15 e 39 anos de idade. Em relação à população cativa, um em cada grupo
de cem escravos do país foi alistado, se estimarmos em 10% das tropas o número
de libertos enviados para a guerra. As consequências sociais deste fato ainda
não foram de todo analisadas pelos historiadores, principalmente quando
consideramos que o recrutamento, além daqueles escravos que foram libertos
especificamente para a guerra, incidiu fortemente sobre os habitantes mais
pobres, em sua maior parte negros e mestiços, muitos dos quais também libertos,
que mantinham relações sociais as mais diversas com a população cativa. A
guerra equiparou todos - ex-escravos libertos, escravos fugitivos, substitutos
pagos, recrutas do Exército e da Guarda Nacional, brancos, negros e mestiços
pobres, jovens patriotas de classe média e de famílias abastadas - como
Voluntários da Pátria.
O Rio Grande do Sul foi a província
que mais combatentes mandou para o Paraguai, 34 mil soldados, 17% de sua
população masculina. Localizada em área fronteiriça, contava com uma estrutura
militar, baseada na organização de corpos da Guarda Nacional, mais permanente.
Por isso o número de Voluntários da Pátria foi relativamente pequeno, 3.200
soldados. A Bahia enviou pouco mais de 15 mil soldados, em torno de 2% de sua
população masculina, um percentual semelhante à média nacional. Nove mil deles
eram Voluntários da Pátria, majoritariamente negros e mestiços, sendo os
libertos algo em torno de 10% do contingente mobilizado. A Corte, coração
político e cultural do Império, enviou 11.461 soldados, ou 8% de sua população
masculina. Destes, 2.482 eram libertos, 22% do total!
Depois da guerra, a sociedade
imperial escravista não seria mais a mesma. O governo tivera que contar
pesadamente com o concurso de setores sociais antes excluídos da cidadania
restrita: negros e mestiços livres e mesmo com uma parcela simbólica e
socialmente significativa de escravos. Já então libertos e, mais importante e
inusitado, cumprindo o primeiro dever cívico de cidadãos do Império: a defesa
da pátria. A sociedade passara por uma experiência única de mobilização de
recursos materiais, mas principalmente humanos e ideológicos que abalaria sua
estrutura social hierarquizada e traria consequências diretas para a crise da
escravidão e do Império, abrindo caminho para o movimento abolicionista que
tomou conta dos corações e mentes de escravos, libertos e pessoas livres na
década de 1880.
É esta memória da guerra, que não
deixou apenas vestígios estáticos nos nomes de logradouros públicos em nossas
cidades, no bronze frio dos monumentos ou mesmo nas referências em obras de
literatura e teatro, que é importante resgatar. Uma memória viva, sofrida e
vivida, que se perpetuou em cantigas folclóricas, em ditos populares, como os
recolhidos por Manoel Querino, ele mesmo um negro recrutado para a guerra e
que, mais tarde, se tornou grande folclorista:
Sou soldado
da Pátria aguerrida
muito embora
nascido na paz
nasci livre,
qual águia no ninho
ser escravo
outra vez, não me apraz
Ricardo Salles é professor
na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e na Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro (Uni-Rio) e autor de Guerra do Paraguai. Memórias
e imagens. Rio de Janeiro: Biblioteca
Nacional, 2003.
Fonte: Revista Nossa História - Ano 2
nº 13 - Novembro 2004
Saiba Mais – Bibliografia
IZECKSOHN, Vitor. O cerne da discórdia. A Guerra do Paraguai e
o núcleo profissional do Exército. Rio de Janeiro: E-papers, 2002.
KRAAY, Hendnck.
"Escravidão, cidadania e serviço militar na mobilização brasileira para a
Guerra do Paraguai", in Estudos
Afro-Asiáticos, n. 33, setembro de 1998.
SOUSA, Jorge Prata de. Escravidão ou morte. Os escravos brasileiros
na Guerra do Paraguai. Rio de Janeiro: Mauad/ADESA, 1996.
Saiba
Mais – Links
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