Nova visão
do poder na República Velha questiona antigas abordagens sobre a influência de
mineiros e paulistas nas eleições para a Presidência do país.
Cláudia M.
R. Viscardi
Análises
recentes das sucessões presidenciais na Primeira República (1889-1930) mostram
que a famosa aliança entre Minas Gerais e São Paulo, chamada de política do
"café com leite", não controlou de forma exclusiva o regime
republicano. Havia outros quatro estados, pelo menos, com acentuada importância
no cenário político: Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco. Os
seis, para garantirem sua hegemonia, possuíam uma forte economia e (ou) uma
elite política compacta e bem representada no Parlamento. E, juntos ou
separados, participaram ativamente de todas as sucessões presidenciais
ocorridas no período.
Além desses estados, havia dois
coadjuvantes respeitáveis: o Exército e o Executivo. Os militares se destacaram
no regime em seus primeiros anos - durante a presidência dos marechais Deodoro
da Fonseca (1889-1891) e Floriano Peixoto (1891-1894) -, retornando ao poder em
1910, quando o país foi presidido pelo marechal Hermes da Fonseca (1910-1914).
Também provocaram impacto na República nos anos 20, através do movimento de
seus tenentes em prol de mudanças como a instituição do voto secreto, o fim das
fraudes eleitorais etc. Já o Executivo Federal conseguiu manter o privilégio de
intervir sobre as oligarquias mais frágeis, impondo seu controle sobre elas
quando julgasse oportuno, além de exercer atuação marcante na sua própria
sucessão e de ser o principal gestor da política monetária e cambial do país -
importante num contexto em que o fluxo de capitais externos, tal como hoje, era
responsável pela saúde da economia.
O poder de Minas Gerais nesse período é
explicado não pela força econômica do gado de leite, mas pela sua projeção
política garantida pela bancada de 37 deputados, a maior do país. E a
influência de Minas também derivava da forte cafeicultura, já que foi o segundo
maior produtor de café do Brasil até o final da década de 1920, sendo
responsável por 20%, em média, da produção nacional - a cafeicultura paulista
representava cerca de 55% e a fluminense 20%. A expressão mais adequada para a
pressuposta aliança Minas Gerais-São Paulo seria, então, "café com
café" e não "café com leite".
Mas a coincidência de interesses entre
dois estados cafeicultores já não seria suficiente para que dominassem, de
forma exclusiva, a Primeira República? Parece que não. Em que pese sua importância
na economia nacional, não foram os produtores de café os únicos controladores
do regime republicano.
Costuma-se ver nos livros didáticos os
cafeicultores como uma categoria sem diferenças internas. Mas eles divergiam
muitas vezes em relação às políticas governamentais sobre o produto e nem
sempre conseguiam atuar de forma compacta na defesa de seus interesses. Além
disso, questões envolvendo modelos de cafeicultura nos dois estados os
afastavam. O café produzido por Minas Gerais era, em geral, de qualidade
inferior ao de São Paulo e exigia investimentos específicos. O sistema de
transporte, as tarifas públicas, o tamanho das propriedades e o regime de
trabalho eram distintos. Tamanha diversidade dificultava acordos. A exemplo dos
obstáculos impostos pelo presidente mineiro Afonso Pena para viabilizar o
Convénio de Taubaté (1906/13) - primeira política de proteção ao café, pactuada
pelos três estados cafeicultores, com o objetivo de amenizar a crise do setor
-, que só foi posto em prática após os interesses mineiros e fluminenses
estarem assegurados, isto é, quase três anos depois de ter sido assinado.
Acreditar
que o sustentáculo da "política do café com leite" se encontrava na
coincidência de interesses cafeeiros dos dois estados significa diminuir, em
muito, a complexidade das relações que se estabeleceram entre os estados após
1889. E a análise minuciosa das sucessões presidenciais não sustenta essa
afirmação. Em geral, apenas duas sucessões são apontadas como rupturas do
acordo entre Minas e São Paulo: a de Afonso Pena/Nilo Peçanha, em 1910, que
opôs paulistas (a favor de Rui Barbosa) a mineiros (pró-Hermes da Fonseca); e a
de Washington Luiz, em 1930, quando os mineiros deram apoio a Vargas e os
paulistas a Júlio Prestes. Segundo nossa pesquisa, a primeira sucessão a
colocar em lados opostos paulistas e mineiros foi a de Rodrigues Alves, em
1906. Antes disso, a participação de Minas foi bem restrita em razão de suas
dissidências internas. Como nos demais estados, a Proclamação dividiu as elites
mineiras entre republicanos e monarquistas (restauradores). E mais adiante,
estiveram divididos entre partidários de Deodoro e de Floriano e, depois, entre
florianistas e prudentistas.
Já a participação de São Paulo na primeira
década republicana foi significativa em função de sua coesão interna. Vários
setores da elite política estiveram à frente do movimento republicano, reunidos
no Partido Republicano Paulista (PRP), e assumiram, ao lado dos militares, o
controle sobre os primeiros anos da República. Quando os paulistas se
articularam em torno de uma quarta presidência, em 1906, os mineiros uniram-se
e, aliados a gaúchos, baianos e fluminenses, formaram uma coligação conhecida
como "Bloco", impondo a São Paulo a retirada do nome de sua
preferência, a do paulista Bernardino de Campos.
Derrotados em suas prerrogativas, os
paulistas estiveram fora das articulações presidenciais até 1914, quando foi
eleito o mineiro Wenceslau Braz (1914-1918). E, durante a sucessão do mesmo
Wenceslau, novos problemas voltaram a acontecer: Minas Gerais aderiu
imediatamente ao nome de Epitácio Pessoa, proposto pelos gaúchos, enquanto os
paulistas se dividiam em torno de pelo menos duas outras candidaturas, a de
Altino Arantes e a de Rui Barbosa.
Entre idas
e vindas, os dois estados conseguiram finalmente realizar alianças em torno da
candidatura de Arthur Bernardes (1922-1926) e de Washington Luiz (1926-1930),
mas voltaram a se separar em 1930. E mesmo durante esse breve período como
aliados, as relações foram marcadas por conflitos. A exemplo do governo de
Bernardes, quando houve oposição dos mineiros à política de proteção ao café
comandada pelos paulistas. Além da conhecida hostilidade do presidente da
República Washington Luiz às ações de Antônio Carlos, governador de Minas
Gerais no mesmo período.
Diante da contínua fraude eleitoral e do
baixo comparecimento às urnas, a disputa pelo voto dos eleitores perdia
importância em relação à escolha prévia do candidato. O estado que conseguisse
lançar uma candidatura aceita pelas bancadas mais proeminentes teria a eleição
garantida. E mesmo quando havia competição eleitoral, o apoio ao escolhido era
quase unânime. Como um candidato poderia obter 97,9% dos votos? Foi o que
aconteceu com o mineiro Afonso Pena, presidente entre 1906 e 1909. Esse índice
tão pequeno de rejeição só é possível em eleições não confiáveis. O mais
difícil, portanto, em uma eleição na República Velha, era sagrar-se candidato
com o apoio das oligarquias dominantes.
Para isso, as negociações tinham que ser
longas e as regras, nunca escritas, mas sempre compartilhadas, tinham que ser
respeitadas. Primeira: o poder dos estados era desigual e hierarquizado.
Segunda: a cada eleição havia uma renovação parcial de poder entre eles,
rejeitando-se assim atitudes monopolizadoras. Terceira: a manutenção do regime
dependia do cumprimento dos princípios anteriores.
Com base nessas normas, as alianças foram
sendo feitas e desfeitas e em cada sucessão o jogo político era reiniciado. As
regras eram as mesmas, os acordos, porém, mudavam. Daí a conclusão que a estabilidade
do regime republicano não foi garantida por uma aliança de caráter exclusivista
entre dois de seus maiores estados. Ao contrário, quando se aliaram e excluíram
os demais parceiros, nos anos finais da República Velha, abalaram o modelo
político em vigor.
A instabilidade das alianças entre os
estados mais proeminentes - aliados a seus respectivos "satélites" -
surge, portanto, como garantia da continuidade do regime. Cada estado sabia seu
potencial de intervenção (reconhecido pelos demais) e estava livre para
construir, ou não, alianças a partir de seus interesses específicos.
Mas como explicar a origem da expressão
"café com leite" se, de fato, a aliança entre Minas Gerais e São
Paulo teve caráter apenas conjuntural, como as demais? Uma hipótese, ou melhor,
uma especulação: é provável que a expressão tenha sido criada pela imprensa, ao
final da década de 1920 - pois não foram encontrados registros anteriores -, numa
referência à aliança entre paulistas e mineiros em torno da indicação de Arthur
Bernardes e Washington Luiz. E reforçada pelo longo governo Vargas (1930-1945)
para desqualificar o processo político da velha república que ele pretendia
superar. Esta questão, porém, permanece em aberto para quem se dispuser a
desvendá-la.
CLÁUDIA M.
R. VISCARDI é professora de História na
Universidade Federal de Juiz de Fora e autora de O teatro das oligarquias:
uma revisão da "política do café com leite". Belo Horizonte: C/Arte,
2001.
Fonte: Revista Nossa História - Ano II
nº 19 - Maio 2005
Saiba
mais – Bibliografia
FERREIRA, Jorge e DELGADO.
Lucília de A. N. (orgs.). O Brasil
republicano: o tempo do liberalismo excludente. Da Proclamação da República à
Revolução de 1930. Vol. 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
FERREIRA, Marieta M. Em busca da Idade do Ouro. Rio de
Janeiro: Editora da UFRJ, 1994.
KUGELMAS, Eduardo. Difícil hegemonia: um estudo sobre São Paulo
na Primeira República. Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, 1986.
Saiba
Mais – Links
Nenhum comentário:
Postar um comentário