Coronéis locais, forças estaduais e Exército se uniram para combater as
“cidades santas”, territórios autônomos criados por caboclos.
Cerca de
200 seguidores do monge e curandeiro José Maria estão reunidos em Irani. Todos
eles homens simples, sertanejos, refugiaram-se ali na esperança de evitar um
confronto com as forças do governo. Mas é tarde demais: a essa altura, o
simples agrupamento – em uma região de conflitos fronteiriços e de
instabilidade social – já é considerado uma atitude hostil às autoridades. Em
resposta à “ameaça”, o governo resolve atacar: uma força de 58 soldados do
Regimento de Segurança do Paraná entra em combate com os sertanejos. Morrem 21
pessoas, entre elas os chefes dos grupos em confronto – o coronel João
Gualberto Gomes de Sá e o monge José Maria.
Conhecido como Batalha do Irani, o
enfrentamento daquela madrugada de 22 de outubro de 1912 é considerado o início
da Guerra do Contestado, uma longa e sangrenta disputa entre os seguidores do
monge e as forças policiais e militares. O estopim da batalha inaugural foi
alimentado por um intrincado acirramento de ânimos na região. Havia muita coisa
em jogo. Os estados de Santa Catarina e Paraná travavam uma disputa
territorial. Crescia no campo a concentração de gente pobre e sem lar,
inclusive posseiros e colonos expulsos de suas casas para a construção de uma
estrada de ferro. A crise alimentava a forte religiosidade popular, criando
comunidades autônomas, cuja mera existência desafiava o coronelismo vigente.
Depois de Irani, todas essas tensões se converteram em guerra aberta.
A luta se estendeu até janeiro de 1916, em
dezenas de batalhas numa área de 20.000 quilômetros quadrados, causando a morte
de mais de 10.000 pessoas – vitimadas não só pelos combates, mas por epidemias
e pela fome provocada no cerco final às “cidades santas” ou “redutos”, como
foram chamados os povoados rebeldes.
O grupo de José Maria chegou ao Irani
(então município de Palmas, no Paraná) vindo de Taquaruçu (município de
Curitibanos, em Santa Catarina), de onde tinha sido expulso a mando do prefeito
local, o coronel Albuquerque, homem conhecido por sua arrogância e
autoritarismo. Em setembro de 1912, ele solicitou à capital o envio de forças
policiais, afirmando que havia em suas terras uma concentração de “fanáticos” e
“monarquistas”. Na verdade, os sertanejos que ali chegavam vinham em busca de
cura e atendimento por parte do monge, em ajuntamento que cresceu a partir da
tradicional festa de Bom Jesus, em agosto daquele ano. O local tornou-se um
polo de atração para uma grande população de caboclos, sitiantes independentes
e ervateiros expulsos de suas terras pela construção da Estrada de Ferro São
Paulo-Rio Grande.
Diante da ameaça do coronel Albuquerque, o
monge José Maria dispersou seus seguidores, dirigindo-se ao Irani com um grupo
reduzido. Ao fazê-lo, porém, enredou-se em outra disputa renhida: o conflito
sobre a divisa entre os dois estados. As autoridades paranaenses interpretaram
a migração como uma “invasão catarinense” no território contestado (daí o nome
da guerra).
Os episódios de perseguição policial
contra o monge José Maria foram motivados pelo temor da concentração de gente
pobre do campo. As autoridades locais e estaduais, em sua maioria grandes
fazendeiros e oficiais da Guarda Nacional, sentiam que tinham como missão
subjugar os sertanejos que não se submetiam mais aos seus respectivos coronéis.
Formavam-se grupos autônomos, com fortes vínculos religiosos, nos quais
expectativas místicas mesclavam-se à crítica social. Originalmente, essas
comunidades não eram hostis nem militarizadas, mas seu anseio por independência
despertou a ira dos governantes, da imprensa e dos fazendeiros. A linguagem
cabocla passou a ser desqualificada pelas autoridades como “puro fanatismo”.
Boa parte
da crise social na região do Contestado tem relação com a construção da Estrada
de Ferro São Paulo-Rio Grande. Oferecida em concessão pelo governo federal, a
empreitada foi assumida pelo magnata norte-americano Percival Farqhar
(1864-1953), o mesmo que construiu a ferrovia Madeira-Mamoré em Rondônia e
detentor de diversas outras concessões em serviços públicos de transportes,
iluminação e mineração. Para realizar a obra na divisa entre Santa Catarina e
Paraná, recebeu o direito de explorar até 15 quilômetros de terras devolutas ao
lado de cada margem da ferrovia. Estas terras públicas, nos vales dos rios
Peixe, Iguaçu e Negro, eram habitadas havia décadas por comunidades de
posseiros e sitiantes independentes, que viviam de uma agricultura de
subsistência e da coleta da erva-mate, mas que não possuíam títulos de
propriedade. Farqhar organizou uma empresa subsidiária da ferrovia, a Brazil Lumber
and Colonization Company, com o objetivo de explorar as madeiras e depois
vender os terrenos para imigrantes europeus. Uma das primeiras medidas da
Lumber foi organizar um Regimento de Segurança com mais de 300 homens para
expulsar os posseiros das terras recebidas do governo.
Depois
de morto no Irani, José Maria foi santificado pelos sertanejos. No final de
1913, uma menina de 11 anos, Teodora, passou a relatar sonhos com José Maria: o
monge ordenava que todos voltassem a se reunir em Taquaruçu. O chamado da
pequena “virgem” atraiu para o povoado vários grupos de descontentes, que desta
vez sabiam estar desafiando as autoridades locais e estaduais. Além do grupo
inicial de seguidores do monge José Maria, dirigiram-se a Taquaruçu opositores
políticos dos coronéis que governavam em Lages, Curitibanos, Campos Novos e
Canoinhas. Também se agregaram a este polo antigos “maragatos” (federalistas),
descontentes com o domínio dos “pica-paus” (republicanos) – grupos que se
confrontavam no Rio Grande desde os tempos da Revolução Federalista de 1893 – e
identificados com a tradição de “São” João Maria.
Esse segundo povoado de Taquaruçu se
formou como uma “cidade santa”. O avô de Teodora, o velho líder Eusébio
Ferreira dos Santos, chamava a localidade de “Nova Jerusalém”, onde todos viveriam
em irmandade, num regime de justiça e bem-estar. Foram estabelecidas normas de
convívio e de subsistência baseadas em laços de solidariedade. Os sertanejos
declamavam os versos de José Maria: “Quem tem, mói; quem não tem, também mói; e
no fim todos ficam iguais!”. Moer era a forma de pilar o milho ou a mandioca,
isto é, os que tinham algum recurso e os que nada tinham viveriam como iguais.
Todos deviam trabalhar pela sobrevivência e em defesa da comunidade.
A invenção cabocla da “Cidade Santa” dava
um novo sentido ao que eles chamavam de “Monarquia”. Não era um regime
saudosista de restauração dos Bragança, mas uma “Lei do Céu”, um regime
político sem rei que abria o caminho para a afirmação de diferentes chefias
sertanejas. Negava a República vigente, dominada pelos coronéis e por grandes
proprietários.
Os sertanejos identificados com as
“cidades santas” adotaram um corte de cabelo rente e usavam chapéus com fitas
brancas na aba. Autodenominaram-se “pelados”, e chamavam de “peludos” seus inimigos
do governo, da estrada de ferro e ligados aos coronéis. Ao longo do ano de
1914, com a intensificação dos ataques das tropas do Exército e das polícias de
Santa Catarina e Paraná, as “cidades santas” multiplicam-se por quase todo o
planalto serrano de Santa Catarina – em Caraguatá, Bom Sossego, Caçador Grande,
Campina dos Buenos, Santa Maria, Pedra Branca e São Pedro. Eram povoados que
normalmente tinham uma praça central quadrada, em frente à igreja, onde
aconteciam as “formas”, como eram chamadas as reuniões gerais dos membros da
irmandade cabocla. Na experiência da construção das cidades santas, os
sertanejos criaram outras instituições, como o grupo dos “Pares de França” ou
“Pares de São Sebastião” – combatentes de elite, selecionados entre os homens
hábeis no facão e conhecedores da “Santa Religião”, como chamavam os seus
princípios ligados ao catolicismo rústico e à tradição de João Maria.
Ao longo do conflito, modificaram-se os
perfis e as características das lideranças caboclas. As virgens e os
“meninos-deuses”, que tinham muito poder nos redutos iniciais de Taquaruçu e
Caraguatá, foram perdendo importância política para as “lideranças de briga”,
como eram chamados peões, posseiros e tropeiros, como Chiquinho Alonso, Vanuto
Baiano e Adeodato, comandantes que se legitimavam pela capacidade militar de
dar combate aos “peludos”.
O conflito se agravou com a chegada da
expedição chefiada pelo general Setembrino de Carvalho (1861-1947). Sete mil
soldados do Exército atuaram no cerco e no combate aos redutos. Entre março e
abril de 1915, após longa batalha, veio abaixo Santa Maria, a maior das cidades
santas, com mais de 20.000 habitantes. Depois Setembrino recolheu o grosso de
suas tropas, e os redutos remanescentes de Pedra Branca e São Pedro foram
destruídos por poucas unidades militares e grande número de “vaqueanos civis”
(os capangas dos coronéis), até a rendição dos últimos sertanejos, em janeiro
de 1916. Esta fase final do conflito, conhecida como “açougue”, foi pontuada
por uma série de massacres e degolas de combatentes já rendidos.
À custa da concessão de terras públicas e
da expulsão de caboclos pobres, estava garantido o caminho não apenas para a
estrada de ferro, mas para o branqueamento definitivo da população do planalto.
Nas décadas seguintes, o incentivo à ocupação das terras por imigrantes
europeus consolidou o processo. Algumas
concentrações de caboclos, em torno de monges, foram fortemente reprimidas por
forças policiais, até sedimentar na região o silêncio sobre a guerra. Ainda
hoje, os descendentes dos sertanejos que lutaram no Contestado vivem em
situação precária, espremidos em pequenos lotes ou na periferia das grandes
metrópoles.
Paulo Pinheiro Machado é
professor da Universidade Federal de Santa Catarina e autor de Lideranças
do Contestado: a formação e a atuação das chefias caboclas (Ed.
Unicamp, 2004).
Saiba Mais - Bibliografia
MONTEIRO, Duglas
Teixeira. Os Errantes do Novo Século: um estudo sobre o surto
milenarista do Contestado. São Paulo: Duas Cidades, 1974.
VINHAS DE QUEIROZ,
Maurício. Messianismo e conflito social: a Guerra Sertaneja do
Contestado (1912-1916). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.
Saiba Mais - Links
Saiba Mais - Documentários
O Contestado
– Restos Mortais
O conflito envolveu
milhares de posseiros, pequenos proprietários, comerciantes, autoridades
municipais, índios, negros, imigrantes europeus e fanáticos religiosos. Foi
repreendido pelo Exército e forças militares regionais associadas a “coronéis”
e seus jagunços. O levante provocou a morte de mais de 20 mil pessoas, durou
cerca de quatro anos e abrangeu um território do tamanho do estado de Alagoas.
Direção: Sylvio Back
Ano: 2012
Duração: 1h58minutos
Contestado:
Uma Guerra Esquecida - Caminhos da Reportagem
Foram quatro anos de conflito, dez mil mortos,
milhares de homens do Exército convocados. Os combates que se estenderam por
uma região de mais de vinte mil quilômetros quadrados, no planalto serrano de
Santa Catarina. A Guerra do Contestado – 1912 a 1916 – envolveu caboclos,
pequenos fazendeiros, posseiros, interesses econômicos, disputas de poder e
religiosidade. Hoje, a população local ainda enfrenta um dia-a-dia de pobreza,
em um cenário que contrasta com uma das regiões mais prósperas do país.
A reportagem resgata essa
história e investiga os motivos da guerra, a dimensão que teve e o porquê de
ter ficado esquecida por tantas décadas.
Reportagem: Fernanda
Balsalobre
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