Sonegação,
paraíso fiscal, roubo de documentos... Mensalão da Globo ainda terá muitos
capítulos pela frente.
Poderia ser roteiro de novela. Ou de um
filme B. Mulher em férias vai ao local de trabalho com uma sacola e sai com
milhares de páginas de um processo que envolve a cobrança de R$ 615 milhões.
Seis anos depois, um homem tenta vender os papéis comprometedores, no
submundo da informação, por 200 mil reais. Como todo roteiro de thriller sobrevive
graças à tensão da dúvida, neste caso a incerteza é: a mulher agiu para
ajudar ou prejudicar a empresa da qual era cobrada a fortuna? O caso envolvendo
a Globopar, controladora da TV Globo, ilustra o impacto da internet na Era da
Informação. Num passado não muito remoto, os documentos relativos à autuação
pelo Fisco do maior grupo de comunicação do Brasil provavelmente ficariam
dormentes nas gavetas de repórteres investigativos de empresas concorrentes
por causa do pacto de silêncio que vigora entre quase todos os homens brancos,
ricos e reacionários que controlam a grande mídia.
Agora, o cerco foi rompido por um blog –
logo apelidado carinhosamente de “Organizações Cafezinho”. Miguel do Rosário,
que toca O Cafezinho, é blogueiro sujo. Foi dele o furo sobre a
existência do processo de sonegação da Globopar. Sob o título Bomba! O
Mensalão da Globo, Miguel escreveu: “A emissora disfarçou a compra dos
direitos de transmissão dos jogos da Copa do Mundo de 2002 como investimentos
em participação societária no exterior”. A notícia foi compartilhada por mais
de 2 mil pessoas nas redes sociais e deu início a um típico turbilhão
“internético”. Em algumas horas, havia sido replicado ou comentado em dezenas
de blogs. A versão original e as que se inspiraram nela foram disseminadas
rapidamente nas redes sociais – a reprodução publicada no Viomundo foi
compartilhada por 10 mil leitores no Facebook. Uma repercussão à altura do Jornal
Nacional.
Tanto que a Globopar foi forçada a emitir
notas oficiais apresentando sua própria versão, algo inédito. Nêmesis dos
Marinho, neste caso, Miguel do Rosário escreveu durante 15 anos sobre café numa
newsletter criada pelo pai, José Barbosa do Rosário, que por ironia foi
repórter de O Globo. Isso explica o nome do blog mantido por ele, que viu a
audiência saltar de 5 para 50 mil leitores diários nas últimas semanas.
Miguel tem cerca de 300 assinantes
(calcula em 36 mil reais seu faturamento em 2012, contra 12,6 bilhões de reais
das Organizações Globo). O Cafezinho exibe um único anúncio, da Rede Brasil
Atual, enquanto as Organizações Globo abocanham mais de 45% de todas as verbas
publicitárias do governo federal, acumulado de 5,9 bilhões de reais entre 2000
e 2012. A força dele e de outros blogs “sujos” reside na horizontalidade. Em
tese, não existe hierarquia entre blogueiro e comentaristas: eles frequentam
diferentes espaços na blogosfera, fazendo sugestões de conteúdo, críticas e
debatendo com outros leitores. Atuam como abelhas polinizadoras. Tudo muito
distante da hierarquia verticalizada das Organizações Globo, em que a família
Marinho manda e quem tem juízo obedece. Talvez os globais tenham sido pegos de
surpresa pela repercussão da denúncia. Quem lida com a blogosfera, não. Foram
os próprios leitores, de forma voluntária, que fizeram o trabalho de
formiguinhas. As 12 páginas de documentos em papel timbrado da Receita Federal
– parte do processo contra a Globo – compartilhadas por Miguel no site de
hospedagem Slide Share, logo bateram 160 mil visualizações.
O que dizem os documentos? Na versão da
Receita, a Globo simulou uma operação de investimento nas ilhas Virgens
Britânicas, refúgio fiscal do Caribe, através de uma empresa de fachada de
nome Empire. Objetivo: deixar de recolher os impostos devidos no Brasil na compra
dos direitos de transmissão da Copa do Mundo de 2002. Por conta disso, a
Receita cobrou, em outubro de 2006: 183 milhões de reais em imposto sonegado,
157 milhões de reais em juros de mora e 274 milhões de reais em multa,
totalizando 615 milhões de reais.
O auditor fiscal Alberto Sodré Zile, que
assinou a representação fiscal para fins penais, na qual foi nomeado um dos
irmãos Marinho, José Roberto, escreveu que em tese houve crime contra a ordem
tributária, cometido pela Globopar ao “omitir informação ou prestar declaração
falsa às autoridades fazendárias”. A julgadora Maria de Lourdes Marques Dias,
encarregada de avaliar o recurso final da empresa, escreveu que a fiscalização
“constatou a existência de simulação”. Nas palavras dela, a Globo adquiriu “em
aparência, uma pessoa jurídica com sede nas Ilhas Virgens Britânicas; no
entanto, menos de um ano depois, a sociedade é dissolvida e seu patrimônio
vertido para que a TV Globo obtivesse a licença que a permitiria transmitir os
jogos da Copa do Mundo de 2002”.
Numa de suas notas oficiais a respeito do
caso, a Globopar negou irregularidades e afirmou que apenas escolheu “uma forma
menos onerosa e mais adequada no momento para realizar o negócio, como é
facultado pela legislação brasileira a qualquer contribuinte”. A empresa também
assegurou que não tinha dívidas com a Receita por ter aderido ao Refis –
programa que permite parcelamento e abate valores da dívida. Segundo a legislação
brasileira, quitação de dívida com o Fisco extingue a possibilidade de
processo criminal.
Apesar das declarações públicas da
Globopar, militantes digitais passaram a exigir algum tipo de comprovante do
pagamento. Estranhavam o fato de o processo 18471.000858/2006-97, nas consultas
feitas através do site do Ministério da Fazenda, aparecer com o movimento
congelado em 29 de dezembro de 2006. O que teria acontecido para permanecer
parado por mais de seis anos? A resposta foi dada pela própria blogosfera. No
caso do Viomundo, por um repórter investigativo que não quer se identificar.
Ele foi um dos internautas que descobriram que uma agente administrativa da
Receita Federal, Cristina Maris Meinick Ribeiro, tinha sido condenada a 4 anos
e 11 meses de prisão no início de 2013 pelo sumiço dos processos da Globo, que
tramitavam conjuntamente – a representação para fins penais e a cobrança dos
615 milhões.
“A Globo Comunicação e Participações não é
parte no processo [contra Cristina], não conhece a funcionária e não sabe qual
foi sua motivação”, afirmou a empresa dos Marinho em nota. Além disso, a
Globopar disse ter ajudado a Receita a recompor os processos, que teriam voltado
a tramitar – sugerindo, assim, que não tirou nenhum proveito do que chamou de
“extravio”. Mas o blogueiro Fernando Brito, de O Tijolaço, fez uma cronologia
do caso e cravou que o sumiço do processo beneficiou a Globopar. Ele escreveu:
“1– A Globo é autuada em 16 de outubro de 2006 por sonegação de impostos
devidos pela compra dos direitos de transmissão da Copa de 2002. Total da
autuação: 615 milhões de reais. 2 — No dia 7 de novembro, José Américo Buentes,
advogado da Globo, passa recibo de que recebeu cópia da autuação. 3 – No dia 29
deste mesmo mês, a Globo apresentou uma alentada defesa, de 53 páginas, pedindo
a nulidade da autuação. 4 — No dia 21/12/06, a defesa da Globo foi rejeitada
pelos auditores. 5 — No dia 29/12/2006, o processo é remetido da Delegacia de
Julgamento I, onde havia sido examinado, para o setor de Sistematização da
Informação, de onde são expedidas as notificações. Uma sexta-feira, anote. 6 —
Sábado, 30; Domingo, 31; Segunda, 1° de janeiro, feriado. Dia 2, primeiro dia
útil depois da remessa do processo ao setor, a servidora Cristina Maris Meirick
Ribeiro, que estava de férias, vai à repartição, pega o processo, enfia numa
sacola e o leva embora. 7 — Até o simpático Inspetor Clouseau concluiria,
portanto, que ela foi mandada lá com este fim. Estava só esperando chegar lá o
processo. Chegou, sumiu. 8 — Não é preciso ser um gênio para saber a quem
interessava que o processo sumisse antes da notificação, para que não se
abrisse o prazo de decadência do direito de recorrer e conservar a regularidade
fiscal”. Ou seja, Brito responde com “Globopar” quando se faz a pergunta
clássica: a quem interessava o crime? Mas, como se trata de uma novela, a trama
pode ser mais complicada do que parece.
Depois de uma temporada no Rio de Janeiro,
o repórter investigativo Amaury Ribeiro Jr. apurou que a íntegra do processo da
Globo na Receita está sendo oferecida no mercado clandestino da informação por
200 mil reais, o que sugere que o sumiço da papelada pode ter sido ação de uma
quadrilha de achacadores interessada em extorquir a Globo. Negociações para
entrega dos documentos teriam resultado até em tiroteio e morte, uma versão para
a qual não existem provas materiais ou testemunhas dispostas a falar.
Por sua vez, o blogueiro Rodrigo Vianna,
de O Escrevinhador, que trabalhava na Globo como repórter em 2006 –
assim como o autor deste texto – testou outra hipótese. Lembrou-se de que a cobertura
das eleições presidenciais daquele ano foram marcadas por mudança de postura da
Globo. Na temporada que antecedeu o primeiro turno, a emissora adotou pauta
dominada por fortes ataques ao candidato Lula, beneficiando o candidato tucano
Geraldo Alckmin. Rodrigo escreveu que “a cobertura global da eleição mudou
completamente no segundo turno, tornando-se mais ‘suave’. Em novembro de 2006,
um colega que também era repórter da Globo e que mantinha bons contatos com
Marcio Thomaz Bastos (então ministro da Justiça de Lula) disse-me: ‘Rodrigo,
agora eles sentaram pra conversar, o governo e os Marinho’”.
A especulação de Vianna ganha alguma credibilidade
por conta das datas: o primeiro turno foi em primeiro de outubro de 2006, a
Globo foi autuada em 16 de outubro, Lula se reelegeu em 29 de outubro de 2006
e, esgotado o trâmite interno na Receita, o processo em que a Globopar era
cobrada em R$ 615 milhões sumiu no dia 2 de janeiro de 2007. Tanto a tese da
ação de achacadores quanto a de um acordo pelo qual gente ligada ao governo
Lula teria interesse em ajudar a Globopar são, por enquanto, meros exercícios
de especulação. O caminho natural para desvendar a trama seria ouvir a
funcionária condenada da Receita, Cristina Ribeiro.
O Ministério Público do Rio de Janeiro,
pelo menos no papel, disse que tentou fazê-lo. “O MPF ofereceu várias oportunidades
para que a servidora cooperasse com as investigações e indicasse os eventuais
co-autores do delito, porém a ré optou por fazer uso de seu direito
constitucional ao silêncio”, afirmou em nota. Em sua nota de 10 de julho, a
Globo Comunicação e Participações reiterou não ter “qualquer dívida em aberto
com a Receita”. Ou seja, deixou implícito que as acusações contra ela eram assunto
do passado.
No entanto, o repórter Amaury Ribeiro Jr.
apurou que a empresa teve contas bancárias bloqueadas recentemente. Em maio de
2013, tramitava na Justiça Federal do Rio a ação de execução fiscal número
2009.51.01.503546-4, proposta pela Fazenda Nacional contra a Globopar,
referente a uma dívida que em 9 de setembro de 2010 era mais de 173 milhões de
reais. Por causa do sigilo fiscal, a Receita Federal diz que não pode dar informações.
Instigado por entidades da sociedade civil, o Ministério Público do Distrito
Federal abriu apuração criminal preliminar sobre o caso – em 90 dias, decide se
transforma ou não em inquérito. O deputado Protógenes Queiroz propõe uma CPI da
Globo, mas terá dificuldades para recolher assinaturas num Congresso em que tantos
deputados e senadores são parceiros ideológicos ou comerciais da emissora.
As redes sociais e as ruas, no entanto,
continuam a fustigar os irmãos Marinho. Nas manifestações de junho e julho,
pela primeira vez milhares de pessoas protestaram diante das sedes da Globo no
Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Maceió, Fortaleza, Salvador e Porto
Alegre. Ironicamente, os irmãos Marinho, que advogam a necessidade de
transparência nos negócios de Estado e são concessionários de um serviço
público, pediram às autoridades a investigação de quem vazou a existência dos
processos que comprometem a Globo.
Peça-chave para esclarecer a trama, Cristina
Ribeiro apagou seu perfil no Facebook e trancou-se no apartamento que divide
com a mãe na avenida Atlântica, em Copacabana. Um imóvel similar ao que ela
ocupa, no mesmo prédio, foi avaliado em 4 milhões de reais. Por telefone, Cristina
disse a este repórter que nem sabia que tinha sido condenada em janeiro de 2013
pelo sumiço dos processos. A lei do silêncio imposta pelos barões da mídia
sobre seus próprios negócios – eventualmente suspensa por conta de disputas
comerciais entre eles –, para todos os efeitos, foi sepultada. O gigante
vertical tremeu diante da rede horizontal tecida a partir de um certo Cafezinho.
“Fora Rede Globo, o povo não é bobo”, bordão que surgiu nas longínquas greves
do ABC paulista, nos anos 80, ganhou versão digital: “Globo Sonega”, que militantes
projetaram sobre o prédio paulista da emissora, como se fosse uma logomarca
iluminada do século 21.
Assista a reportagem: A mulher
condenada por sumir com processo da Globo
Muito Além
do Cidadão Kane - Sorria você está sendo Manipulado
Produzido pela BBC de Londres e dirigido
por Simon Hartog, “Muito Além do Cidadão Kane”, documentário cujo o título faz
menção ao célebre personagem de Orson Welles no filme Homônimo. Após cinco anos
de pesquisas este documentário tem o propósito de desvendar como um só homem
pode dominar a forma de como todo um país recebe a sua informação, como essa
situação foi construída e mantem-se no poder até os dias de hoje.
Em visita ao Brasil, nos anos 80, o inglês
Simon Hartog conheceu o império do Sr. Roberto Marinho e se impressionou com a
estrutura edificada e o homem por trás dela, concentrado em Marinho e na TV
Globo, por que ele é o exemplo mais radical da prostituição entre a política e
imprensa no Brasil.
O documentário traz depoimentos de
políticos, artistas, jornalistas, como Brizola, Chico Buarque, Walter Clark, Armando
Nogueira, Antonio C. Magalhães, Lula entre outras personalidades brasileiras. O
Apoio da globo a Ditadura o desprezo pelas Diretas Já, e as eleições Collor X
Lula, analisando a cobertura da Globo em episódios que marcaram a história do
país.
Muito Além do Cidadão Kane mais do que
falar da TV Globo, relata sobre os processos e emaranhados que determinaram a
política de telecomunicações do Brasil.
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