“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

O Brasil de todos os pecados

Erotismo e religião se mesclavam nos tempos da colônia
Ronaldo Vainfas
     “Não existe pecado do lado de baixo do equador!” Este ditado que corria na Europa no século XVII e que se tornou verso de Chico Buarque é quase um lugar-comum quando se fala da liberdade sexual nos tempos coloniais. Já Gilberto Freyre, um dos maiores intérpretes do Brasil antigo, dizia que os portugueses aqui desembarcavam "escorregando em índia nua", que neles se esfregavam, fogosas e ar­dentes. Um verdadeiro clima de "in­toxicação sexual" teria explodido já no século XVI, o que nosso grande pernambucano não deixou de cele­brar com a linguagem libérrima de sempre. Afinal era a primeira prova da vocação do português e da índia, depois da negra e da mulata, para a mistura de raças que marcou nossa história desde 1500.
     Gilberto Freyre celebrou o frenesi sexual do período colonial, mas foi durante muito tempo uma voz solitá­ria. Muitos historiadores, antes e de­pois dele, lastimaram profundamente este clima de liberdade excessiva que todos julgavam existir na infância do Brasil. Um deles, Paulo Prado, autor de Retrato do Brasil, dizia que um dos grandes males de nossa for­mação foi a luxúria, palavra que usou, aliás, para dar nome a um dos capítulos do livro. Escreveu Paulo Prado que, também por causa desta desenfreada libidinagem, o brasileiro se tornou um povo triste. Sexo excessivo, desânimo, preguiça. Paulo Prado até citou um provérbio latino para ilustrar sua convicção: post coitum animal triste, nisigallus qui cantat (após o coi­to os animais ficam tristes, exceto o galo, que canta).
     A opinião implacável de Paulo Prado, que escreveu na década de 1920, parece repetir o desespero dos je­suítas e de outros cronistas do tempo colonial, sempre incansáveis em denunciar e lastimar a "dissolução de costumes" que grassava na terra. Américo Vespúcio, o célebre navegador, disse que tamanha luxúria era culpa dos índios, pois eles tinham tantas mulheres quantas qui­sessem, "o filho se unindo com a mãe, o primo com a prima e o encontrado com a que encontra". Grande exagero, sem dúvida, do florentino que deu no­me ao continente, pois os Tupinambá observavam vários tabus sexuais. Mas o português Gabriel Soares de Sousa, que escreveu no meado do século XVI, carregou nas tintas contra os índios. Deu a um de seus capítulos o título "Que trata da luxúria destes bárbaros" dizendo que, entre eles, enquanto as velhas ensinavam aos rapazes as artes do sexo, os homens costumavam pôr no pênis o pêlo de um bicho peçonhento, "que lho faz logo inchar, com o que se lhe faz o seu cano tão disforme de grosso, que os não podem as mulheres esperar, sem sofrer..." (Tratado descriti­vo do Brasil em 1557).
     Manuel da Nóbrega, primeiro provincial dos jesuí­tas no Brasil, em 1549, ficou tão desesperado com o que via, portugueses e índias gemendo pelos matos, que suplicou ao rei o envio urgente de mulheres brancas para casar com os portugueses. Nem que fos­sem "mulheres de má vida", isto é, prostitutas - dizia o jesuíta -, desde que viessem para casar! O recente filme Desmundo mostrou, por sinal com muito realismo e plasticidade, o destino que aguardava essas "ór­fãs" que desembarcavam no Brasil daquele tempo, obrigadas a casar com qualquer um que as quisesse. Nem por isso o ardor geral esfriava. Tempos depois de Nóbrega, outro je­suíta, este italiano, exclamou num ser­mão: "Oh! Se pudessem falar as ruas e becos das cidades e povoações do Brasil! Quantos pecados publicariam, que encobre a noite, e não descobre o dia! (...) Porque ainda a pena treme e pasma de os escrever" (Economia cris­tã dos senhores no governo dos escravos, 1700). Por essas e outras, frei Vicente do Salvador, que escreveu o primeiro livro chamado História do Brasil, ain­da em 1627, disse que não vingou por aqui o nome Terra de Santa Cruz que se lhe dera em 1500. Para o frei, fora tudo obra do Diabo, que, empenhado em remover o nome cristão da terra, trabalhou para que triunfasse outro nome, no caso o de "um pau de cor abrasada e vermelha" (o pau-brasil), mais ade­quado a seus propósitos.
     Brasil, terra de pecados, que muitos cronistas e historiadores associaram, em tom moralista, à liber­dade sexual e à ausência quase completa de religião. Afinal, nosso clero aqui sempre foi escasso, a Igreja desorganizada e muitos padres mal ligavam para seu ofício espiritual. Padres mal preparados e poucos, com a exceção quase solitária dos jesuítas, vale insis­tir, que Gilberto Freyre chamou, com bom humor, de "donzelões intransigentes" - incansáveis no propósi­to de propagar a fé e moralizar os costumes.
     Mas teria sido assim mesmo? Corria solto o pecado sem o menor vestígio de religião? Outro exagero é o que nos mostram os documentos da Inquisição que, por volta de 1591, mandou um visitador do Santo Ofício ao Brasil para averiguar a quantas andava a fé e o comportamento dos colonos. O que tais documentos revelam, antes de tudo, é o sentimento de culpa que atormentava - ou podia atormentar - os próprios portugueses, sabedores do quanto pecavam na terra, sobretudo com as índias. Mas como é possível saber o que se passava na consciência daqueles portugueses há 500 anos? A resposta está num tipo de denúncia que a Inquisição recolheu, naquele tempo, contra os que di­ziam que fornicar não era pecado: muitos colonos acusavam os que diziam, sobretudo em conversas masculinas nas tavernas, engenhos e vilas, regadas a vinho, que fornicar não era pecado. Narrando suas aventuras sexuais, muitos riam, enquanto alguns po­lemizavam, dizendo que fornicar era pecado sim, e pe­cado mortal que condenava ao inferno.
     Nessas polêmicas cotidianas é possível flagrar, sem dúvida, a evidência de que os portu­gueses viviam mesmo entre as índias, dando-lhes qualquer coisa em troca, um espelhinho, um pano, um mimo. Mas é também possível flagrar algum escrúpulo e o medo que todos tinham do inferno. Só o fato de discutirem muito este assunto, como era o caso, já dá mostra do quanto Deus e o Diabo impregnavam o cotidiano desses ho­mens. As reações dos fornicários mais presunçosos não deixa de ter interes­se. Uns diziam que fornicar só era pe­cado venial, mas não mortal. Outros diziam que dormir uma ou duas vezes com índia - que chamavam de negra da terra - não era pecado mortal, nem condenava ao inferno. Mas se dormisse sete vezes, aí sim, o inferno era certo. Alguns diziam que tinham mesmo que fornicar neste mundo, pois o Diabo ha­veria certamente de fornicá-los no Além, sendo ne­cessário compensar de antemão.
     O mais significativo, porém, é que quase todos que diziam não haver pecado tão grave assim na tal fornica­ção alegavam que só fornicavam com índias, pois eram elas "mulheres públicas", mulheres de má vida, prostitutas. Se fosse com virgens - diziam - com mulheres ca­sadas ou, principalmente, com mulheres brancas, aí sim o pecado era grave. Machismo e racismo, com algum verniz de moralismo cristão, eis o que se pode extrair, em doses variadas, dessas conversas masculinas no primeiro século do Brasil. Mais do que isto, mistura forte de libidinagem com religião, mesmo entre homens que se vangloriavam de sua virilidade, useiros a dormir com as índias nas redes, nos matos, onde fosse.
     Religião e sexo andaram juntos, pois, durante mui­to tempo no Brasil Colonial. E não é só neste caso de fornicários que encontramos a prova disto. Os docu­mentos da Inquisição nos revelam inúmeras outras situações semelhantes, uma vez que o Santo Ofício esta­va mesmo empenhado em policiar os costumes da po­pulação colonial. Entre denúncias e confissões, há ca­sos interessantíssimos de mistura entre as coisas da fé e as pulsões do desejo. A começar pela sexualização das figuras divinas, isto é, do próprio Cristo e da Virgem Maria. Tais documentos nos contam estórias como a de certa mulher que, flagelada por um temporal na Bahia, gritou que "Deus mijava sobre ela e que a queria afogar", e outra, de língua espanhola, na mes­ma situação, bradou: "Bendito sea el carajo de mi senor Jesu Christo que agora mija sobre mi".     Acusadas de blasfêmia, ouviram do visitador que "Deus não mi­ja, que é coisa pertencente ao homem e não a Deus". O mais importante disso é menos a evidente blasfêmia, mas a sexualização do Cristo, a figura do Cristo fálico que povoava a imaginação dos homens e mulheres da­quele tempo. O mesmo vale para Maria, Nossa Senho­ra, cuja virgindade perpétua era matéria de discussão cotidiana. Maria fora sempre virgem - Virgo semper - antes, durante e depois do parto? Polemizava-se. Para uns, sempre virgem, para outros nem sempre, para al­guns jamais. Houve muitos que a chamaram diretamente de puta - usando mesmo este palavrão para dizê-lo. E um grande poeta daquele tempo, homem da­do a deboches, não hesitou, certa vez, em jurar "pelo pentelho da Virgem!" Blasfêmias dos colonos? Sem dúvida, mas também prova cabal de que o sagrado podia conviver com desejo e sexo.
     Os moradores do Brasil colonial sexualizavam o di­vino, portanto. Não é de admirar que divinizassem o sexo que faziam na prática. Uns punham o crucifixo de­baixo da cama, outros diziam as palavras da missa em pleno ato sexual. Aliás, era bem difundida a crença de que dizer as palavras da consagração da hóstia na boca de maridos, esposas ou amantes, de preferência duran­te a relação sexual, era coisa que dava excelentes resul­tados. Acreditava-se que tais palavras encantadas pren­diam o ser amado, ou amansavam maridos violentos, e talvez por isso as mulheres usassem muito este artifício nas suas lides conjugais.   Havia, porém, um detalhe pre­cioso: as palavras tinham que ser ditas em latim! Hoc est eram corpus meum, ou seja, Isto é o meu corpo. Era isto, portanto, o que se dizia nas noites e dias das "cidades e povoações do Brasil": nada menos que as palavras sa­gradas da eucaristia, entre sussurros e gemidos.
     A linguagem de sedução seguia, assim, a sina da religião, entre o Cristo fálico e a Virgem fêmea, ou por meio das sacralidades que temperavam os ardo­res sexuais. Embebida de religião, a linguagem do amor e da sedução era povoada por diversos santos, por Deus e, decerto, pelo Diabo, ou por vários deles, todos eventualmente irmanados para levar os enre­dos amorosos a bom termo.
     Um expediente corriqueiro estava no uso de certo amuleto amoroso, as chamadas cartas de tocar, magia ibérica que consistia em encostar na pessoa desejada um objeto gravado com seu nome e outras palavras próprias para seduzir. No Brasil usavam-se papéis, às vezes papeizinhos miúdos contidos em "bolsas de mandinga", para "fechar o corpo". Na visitação do Santo Ofício que mencionamos, várias bruxas, pois assim foram chamadas, viram-se acusadas de vender as tais "cartas" e divulgar outras magias eróticas. Uma dessas bruxas era conhecida pelo sugestivo no­me de "Maria Arde-lhe o Rabo". Outra, de nome Isabel, possuía alcunha menos sensual: a "Boca Torta". No século XVIII mineiro, uma certa Águeda Maria tinha um papel com algumas palavras e cru­zes, "carta" que servia para as mulheres tocarem em homens desejados sexualmente. No Recife, era um certo Antônio Barreto quem levava um papel com signo salmão e credo escrito às avessas, que servia para fechar o corpo e facilitar mulheres: "Qualquer mulher que tocasse a sujeitaria à sua vontade."
     Além das cartas de tocar, recorria-se, com idênticos propósitos, às orações amatórias, práticas muito comuns na colônia e universalmente conhecida. Segun­do a historiadora Laura de Mello e Souza, essas orações eram um ramo da magia ritual em que era irre­sistível o poder de determinadas palavras e, sobretudo, o nome de Deus, mas que não dispensava o conjuro dos demônios. Tudo com o fim, ao mesmo tempo, de conquistar, seduzir e apaixonar. Uma das bruxas baia­nas do século XVI mandava rezar junto ao amado: "João, eu te encanto e rencanto com o lenho da vera cruz, e com os anjos filósofos que são 36, e com o mouro encantador, que tu te não apartes de mim, e me digas quanto souberes e me dês quanto tiveres, e me ames mais que todas as mulheres." Não tão melo­diosa como esta era a oração que, no século XVII no Pará, fazia Maria Joana, cruzando os dedos: "Fulano, com dois te vejo, com cinco te mando, com dez te amarro, o sangue te bebo, o coração te parto. Fulano, juro-te por esta cruz de Deus que tu andarás atrás de mim assim como a alma anda atrás da luz, que tu pa­ra baixo vires, em casa estares, e vires por onde quer que estiveres, não poderás comer, nem beber, nem dormir, nem sossegar sem comigo vires estar e falar."
     Eram inúmeras as rezas com fins eróticos que alu­diam às almas, ao leite da Virgem, às estrelas, a Cristo, aos santos, aos anjos e demônios. Mas como as orações nem sempre bastavam, as empreitadas eróticas vinham também acompanhadas do uso de poções, filtros amorosos, como se dizia, que misturavam um cristianismo popular com crenças pagãs, o que aqui se viu adensado pelos ingredientes culturais indígenas e africanos. Poções e filtros para "fazer querer bem", seduzir, reter a pessoa amada. E neles, diferentemente das cartas de tocar ou das orações amatórias, sobressaía o baixo corporal, as partes ge­nitais, o líquido seminal. Ao ensinar a uma de suas clientes um modo de viver bem com seu marido, uma das bruxas do século XVI man­dou que ela furtasse três avelãs, en­chesse os buracos abertos com pêlos de todo o corpo, unhas, raspaduras da sola dos pés, acrescentasse uma unha do dedo mínimo da própria bruxa e, feita a mistura, engolisse tudo. Ao "lançá-los por baixo" - imagine-se de que modo! - pusesse tudo no vinho do marido. No entender da bruxa, pa­ra as coisas correrem bem, bastava fa­zer isto. Outro artifício ensinado pela bruxa envolvia o sémen do homem amado. Ao terminar o ato sexual, a mulher devia retirar de sua própria vagina o sémen do homem e colocá-lo no copo de vinho do parceiro. A bruxa garantia: beber sémen "fazia querer grande bem, sendo do próprio a quem se quer".
     Uma característica importante deste autêntico mercado de linguagens eróticas, onde se trocavam ou vendiam saberes e magias sexuais, era a quase absoluta separação entre o mundo masculino e o femini­no. Nos documentos da Inquisição, em que são des­critas as circunstâncias de cada fato denunciado, vê-se bem que as mulheres protagonizavam o vaivém de poções, cartas de tocar, rezas sedutoras. Já nas con­versas desabridas sobre fornicações, quando surgia a polêmica se fornicar era ou não pecado mortal, só homens estavam presentes, tudo na base do "erotis­mo grosso" que Gilberto Freyre viu nos costumes masculinos portugueses. Não havia também a cum­plicidade ou solidariedade entre os envolvidos, pois as mulheres eram acusadas, por suas próprias clien­tes, de ensinar ou vender poções, enquanto os ho­mens eram acusados de celebrar seus feitos de macho pelos amigos de ontem, que com eles beberam vinho e contaram aventuras sexuais. A Inquisição vivia da desunião entre amigos, parentes, amantes.
     O certo, porém, é que o pecado no Brasil Colônia não corria livre como muitos pensaram. Os jesuítas estavam sempre a reprovar os excessos. Os inquisido­res a perseguir os mais afoitos. E todos, a bem dizer, viviam mais ou menos atormentados, temendo os castigos do céu e da terra. De mais a mais, era tudo muito exposto naquele tempo, pois os espaços das casas não eram claramente definidos e, quando o eram, nas casas-grandes, por exemplo, mal havia portas separando cômodos. De maneira que era frequente, mesmo entre casais unidos pelo matrimônio, que muitos vissem as relações sexuais de vizinhos, parentes ou moradores da casa.
     Um caso exemplar - conforme re­gistrou literalmente o escrivão no ma­nuscrito número 6.366 da Inquisição de Lisboa - foi o de certa moça cha­mada Maria Grega, mameluca casada com um alfaiate, na Bahia quinhentis­ta, que correu para acusar o marido ao inquisidor de que ele só a possuía pe­lo ânus, nunca pelo "vaso natural". Perguntada pelo inquisidor se alguém podia testemunhar sobre o caso, disse sem nenhuma cerimônia que a irmã dela sempre viu tudo, pois dormia numa rede ao la­do. . .Outro caso espantoso diz respeito a um certo Baltazar da Lomba, morador em Per­nambuco, homem já dos seus 60 anos, que gostava de dormir com índios. Numa dessas foi pego em flagrante por um ra­paz curioso que "por uma abertura da porta, pôs a orelha e aplicou o sentido", ouvindo Baltazar da Lomba e um índio ofega­rem na rede, acrescentando que um deles gritava "ui, ui, ui".
     Os lugares para fazer sexo no Brasil Colônia eram mesmo devassados. Não admira que o mato fosse lugar de certa privacidade ou que as pessoas mal ti­rassem as roupas quando mantinham relações sexuais. Os documentos da Inquisição - indiscretíssimos - tam­bém nos contam que o mais comum era os homens arriarem seus "cal­ções", como então se dizia, ou levantarem as "camisolas", as mulheres, suas saias, e pronto: cópula consumada. Nem as igrejas escapavam do sexo, como nos conta a histo­riadora Mary del Priore em delicioso texto intitulado "Deus dá licença ao Diabo". Nelas brotavam romances, em meio às missas, o padre entoando as palavras eucarísticas que muitas mulheres repetiriam depois na boca dos maridos. E nas igrejas, muitas vezes, se abrigavam os amantes. Não por acaso, um manual português de 1681, escri­to por d. Christóvam de Aguirre, continha as perguntas: "A cópula tida entre os casais na igreja tem especial malícia de sacrilégio? Ainda que se faça ocul­tamente?" Por aí se pode ter uma ideia de como a igreja poderia funcionar depois do culto.
     Sexo na igreja é algo que nos leva de volta aos pa­dres e de como religião e desejo se mesclavam no cotidiano do Brasil antigo. Muitos padres, por sinal, eram useiros em flertar com mulheres casadas ou solteiras, fazendo-o, inclusive, no próprio ato da confissão. Aproveitavam o fato de a confissão ser se­creta e, portanto, um dos raros espaços de privacida­de naquele tempo, e seduziam as moças. A Inquisi­ção, sempre ela, não dormiu no ponto, especialmen­te porque, neste caso, não se tratava apenas de incon­tinência clerical, mas do uso libidinoso de um sacramento. Por isto eram os tais padres chamados de so­licitantes ad turpia, isto é, solicitavam penitentes com propósitos torpes. O Santo Ofício prendeu e proces­sou vários deles, produzindo com isso documentos formidáveis sobre como os homens seduziam as mu­lheres em tempos idos. Era comum esses padres falarem mal dos maridos, prometendo às mulheres vida melhor, ofertando presentes, ou recitando poeminhas. Um deles mandou à penitente, doublé de mu­lher desejada, uma florzinha entredentes, fazendo-a passar pelas grades do confessionário. Mas esses pa­dres solicitantes pareciam usar de códigos diferentes, conforme a posição social das mulheres que deseja­vam seduzir. Se fossem brancas, cortejavam, diziam versos, ofereciam mimos. Se negras, iam logo pondo as mãos nos peitos, ou por baixo das saias, usando de linguagem chulíssima. Pelo visto, não só de religião o sexo estava embebido naquele tempo, mas também da lógica da escravidão. Seduzir brancas era coisa que merecia poemas e flores. Seduzir negras, cativas ou forras, dispensava tais delicadezas: os padres iam logo apalpando seios, apertando coxas ou mesmo to­cando nas ditas "partes vergonhosas" por meio de palavreado lascivo.
     De um modo ou de outro, é claro que os padres usavam do poder que o cargo lhes conferia para assediar moças incautas. Era o caso, por exemplo, de um certo frei Luís de Nazaré, carmelita da Bahia que viveu no século XVIII. Dizia ter poderes de exorcista, no que muitos acreditavam, e "curava" mulheres doentes através de cópulas, ou por vezes espalhando sémen no corpo das moças, dizendo, com a Bíblia na mão, que aquilo era remédio bom e vinha de Deus. Ao se defender do processo que depois lhe moveu a Inquisição, frei Luís não hesitou em dizer que fazia aquilo não por ser herege, mas porque tinha desejos irrefreáveis e as mulheres do Brasil "eram rudes e simples". "Facilmente se enganavam", disse o frei, "com qualquer cousa que lhes dizem...."
     As sexualidades brasílicas de outrora nem eram tão livres, nem estavam isentas de preconceitos, constrangimentos de todo tipo e, sobretudo, de reli­gião, que irrigava a sociedade inteira. Muita coisa nos soaria estranha, nos dias de hoje, como casais se amando vestidos ou dizendo as palavras sagradas em pleno gozo. Alguns costumes de outrora parecem até bizarros, como um tal "namoro do bufarinheiro", descrito por Júlio Dantas, muito comum em Portu­gal na primeira metade do século XVIII: homens a distribuir piscadelas d'olhos e a fazer gestos sutis com as mãos ou boca para as mulheres que se posta­vam à janela, suspirantes, em dias de procissão reli­giosa, como se fossem eles bufarinheiros a vender suas bugigangas. Ou um tal "namoro do escarrinho", costume luso-brasileiro dos séculos XVII e XVIII, em que o "enamorado" punha-se embaixo da janela da pretendida sem dizer nada, limitando-se a fungar, como se estivesse resfriado, ou mesmo tossir, assoar o nariz e escarrar no chão, à vista da moça.
     Costumes estranhos, alguns. Outros nem tanto, em especial os que envolviam constrangimento, preconceito, assédio. Os documentos da Inquisição es­tão cheios deles. O Brasil era mesmo terra de pecados, mas nem de longe de liberdade sexual. Liberda­de nunca houve por ali - ou por aqui - e entre os ca­sais unidos pelo santo matrimônio poucas vezes se encontra o amor que o século XIX celebraria na literatura romântica. Amor e sexo juntos era coisa rara na Colônia, ao menos nos documentos daquele tem­po, mais empenhados em flagrar delitos do que sen­timentos amorosos. Salvam-se alguns poemas líricos, aqui e ali, como os dos árcades mineiros, no século XVIII, por vezes muito amorosos, mas pouco eróti­cos. Eróticos e amorosos ao mesmo tempo só os poe­mas satíricos - pouquíssimos - como os do célebre Gregório de Matos Guerra, que viveu na Bahia, sécu­lo XVII, de que vale citar uns versos:

"O Amor é finalmente
um embaraço de pernas,
união de barrigas,
um breve tremor de artérias.

Uma confusão de bocas,
uma batalha de veias,
um rebuliço de ancas,
quem diz outra coisa é besta"

     Não por acaso, celebrando o amor deste modo, entre pernas, veias e ancas, Gregório de Matos seria afamado ou infamado na Bahia como o "Boca do Inferno". Mas o poema tem lá seu valor. Informa, no mínimo, que alguns podiam ficar totalmente nus no encontro dos corpos, entre gemidos e palavras encantadas, o que não era pouca coisa naquele tempo. A bem da verdade, de "boca do inferno", ao menos neste poema, nosso Gregório não tinha nada. Estava mesmo é com o coração na boca.

Ronaldo Vainfas é professor titular de História Moderna da Universidade Federal Fluminense e autor de Trópico dos pecados: moral, sexualidade e Inquisição no Brasil Colonial, 2a ed. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 1997.

Fonte: Revista Nossa História - Ano I nº 01 – Novembro 2003

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Saiba Mais – Filmes
Desmundo
Filme de época (por volta de 1570) e falado em português arcaico do século 16, é todo legendado no idioma moderno.
Baseado no livro da romancista Ana Miranda e dirigido pelo paulista Alain Fresnot, a narrativa traça um retrato do Brasil colonial visto sob o ponto de vista feminino: no caso, o de Oribela (Simone Spoladore).
Jovem portuguesa, Oribela veio para o Brasil junto com um grupo de órfãs trazidas para cá pelo projeto da monarquia lusitana de oferecer esposas brancas aos colonos, que há tempos se miscigenavam com as índias.
Na época, essa era uma situação completamente desfavorável às mulheres, mesmo às europeias. Afinal, naqueles dias elas valiam menos do que as mulas e tinham menos direito a exercer a própria vontade. Como gado, seus dentes e dotes físicos eram examinados e elas eram arrematadas como num leilão.
Muito devota, mas disposta a tentar algum tipo de escolha, Oribela rejeita com uma cusparada o primeiro e bruto pretendente (Cacá Rosset). Com Francisco (Osmar Prado), ela já é mais conivente, ainda mais que ele se comporta, em princípio, com mais civilidade.
Instalada na remota propriedade do marido com uma sogra estranha (Berta Zemel), uma cunhada deficiente e uma clara insinuação de incesto, Oribela tenta a fuga com a ajuda de um comerciante judeu, Ximeno (Caco Ciocler).
Direção: Alain Fresnot
Duração: 99 min
Ano: 2003
Áudio: Português + Legenda

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