Segundo uma
velha tese, o Brasil foi colonizado por criminosos, uma escória condenada em
Portugal ao degredo nos trópicos. Os documentos revelam, no entanto, que não
foi bem assim.
Geraldo
Pieroni
Teria razão o jesuíta Antonil, ao
reafirmar em 1711 o provérbio de que o Brasil seria “o inferno dos negros, o
purgatório dos brancos e o paraíso dos mulatos e das mulatas”?
O que sabemos é que, muito antes do
ilustre autor de Cultura e opulência do Brasil, a colônia já era malvista
pelo português reinol, como era conhecido aquele que vivia na metrópole. Este
sentimento de rejeição foi expresso por Gil Vicente nos seus autos. Em 1510,
ele cantou no Auto da fama: "Com ilhas mil, deixai a terra do
Brasil." No seu célebre Auto da barca do purgatório, de 1518, Gil
Vicente deixou claro que ser transferido da metrópole para a colônia significava
um destino infeliz. Nessa peça, uma vendedora de peixe responde ao Diabo:
"E marinheiro sodes vós? Ora asi me salve Deus e me livre do
Brazil..."
Em 1581 - primeiro ano da união das duas
coroas da península ibérica, quando Lisboa acolheu seu novo soberano, Filipe
II, com uma grande festa -, a colônia brasileira foi simbolicamente
representada por uma jovem mulher tendo nas mãos uma cana-de-açúcar e uma
inscrição onde se lê: “Fui desterro para os culpados”. Teriam tais visões
remotas influenciado historiadores brasileiros no século XX?
O Brasil como terra para os banidos
portugueses -"criminosos e malfeitores" - é, sem dúvida, uma imagem
construída por historiadores que difundiram certas conclusões exageradas,
fundadas muito mais nas próprias suposições do que sobre uma pesquisa
sistemática. Frequentemente os degredados são apontados por eles como a
"escória" vinda de Portugal.
Afonso Ruy disse que "não bastavam as
faltas dos degredados que, em assustador crescendo, eram enviados para o
Brasil, esvaziando as prisões e limpando as ruas do Reino". Ruy Nash não
foi menos nefasto ao afirmar que "... quase tudo quanto Portugal fez pelo
Brasil foi enviar duas caravelas por ano a vomitar em seu litoral esses
resíduos da sociedade..." Alberto Silva, por sua vez, referiu-se aos degredados
como "o povilhéu rafado [faminto] dos enxurdeiros [lamaçais] lisboetas, a
arraia-miúda anônima e miserável de todos os tempos..."
Todas essas descrições, mais imaginárias
que históricas, conduziram Pedro Calmon a dizer que a "história do Brasil
teria o que refletir sobre este desequilíbrio de origem". Teria mais
razão Hélio Viana, quando, adotando uma posição mais crítica com relação às
interpretações rápidas sobre os degredados, comentou: "Desses primeiros
povoadores merecem especial atenção os degredados e os criminosos homiziados,
quer pelo número, relativamente elevado, dos que aportaram à nova terra, nos
dois primeiros séculos, quer pelas exageradas conclusões a que têm chegado,
a seu respeito, alguns dos comentadores desse aspecto do sistema colonial
português."
De fato, os processos do Santo Ofício,
onde se decidia a pena de degredo, não retratam ilícitos terríveis,
monstruosos, semelhantes aos que podemos encontrar na imprensa de hoje. É que
os inquisidores tinham outras preocupações além das terrenas - principalmente
aquelas relacionadas à defesa da fé e à manutenção da ortodoxia religiosa. O
primeiro crime previsto no Livro 5 das Ordenações Filipinas trata,
justamente, Dos Hereges e Apóstatas: "O conhecimento do crime da heresia
pertence principalmente aos juízes eclesiásticos (...) se algum cristão leigo,
quer antes fosse judeu ou mouro, quer nascesse cristão, se tornar judeu ou
mouro, ou a outra seita e assim lhe for provado, nós tomaremos conhecimento
dele e lhe daremos a pena segundo direito."
Os países católicos estabeleceram seus tribunais
inquisitoriais para combater a propagação, por menor que fosse, dos ideais e
práticas religiosas dissidentes ou originárias fora da Mater Ecclesia.
A manutenção da ordem religiosa através
da correção dos delinquentes pecadores foi uma das grandes preocupações dos
juízes do tribunal da fé. No dia 23 de maio de 1536, a Inquisição recebeu
autorização para funcionar em Portugal. Em 1540, realizou-se a primeira cerimônia
pública de auto-de-fé em Lisboa. No entanto, por motivos de divergências
diplomáticas entre a Monarquia portuguesa e a Cúria romana, foi somente no
dia 16 de junho de 1547, através da bula do papa Paulo III - Meditatio
Cordis -, que o tribunal foi definitivamente estabelecido.
É quase inútil buscar uma lógica nas penas
que a Inquisição aplicava. A arbitrariedade dos juízes se conjugava com a
disparidade dos direitos, dos costumes e das normas: por um mesmo tipo de crime
o réu poderá sofrer penas tão diferentes dependendo das decisões e arbítrio dos
eclesiásticos magistrados dos tribunais inquisitoriais. Independentemente da
gravidade de seu crime, a reparação tinha de ser feita. Era desejada pelos
cristãos velhos e cobiçada pelos juízes que almejavam restabelecer a paz
social que a heresia dos indesejados abalou.
Por tudo o que se lê nos processos do
Santo Ofício, a afirmação de uso corrente de que o Brasil foi povoado por
criminosos, malfeitores e desclassificados, passa a ser vista, no mínimo, com
desconfiança.
Ser degredado não significava
necessariamente que o condenado era um criminoso no sentido das ideias
modernas. Punia-se com a deportação delitos não infamantes e mesmo as simples
ofensas cometidas por pessoas consideradas de boa reputação. Não existe nenhum
fundamento nem motivos para duvidar do fato de que muitos banidos eram pessoas
moralmente sãs, punidas, como evidencia Gilberto Freyre, "pelas
ridicularias por que então se exilavam súditos, dos melhores, do Reino para os
ermos".
Muitos deles, sobretudo os provenientes
dos tribunais inquisitoriais, foram culpados por crimes de peso secundário. Os
delitos dessa natureza abundam nos muitos títulos e parágrafos das Ordenações
do Reino e dos Regimentos do Santo Oficio. Constata-se, de maneira evidente,
que todos foram banidos, basicamente, por causa do rigor religioso que imperava
na época. Enfim, leis, normas e regulamentos, assim como punições, castigos e
penitências, são procedentes de seu tempo e como tal devem ser entendidos.
Os degredados provinham das três ordens da
sociedade, mas a partir do momento em que eram acusados, não importando a
origem, todos viravam heterodoxos, cujos desvios em relação à fé
esperada de um cristão a máquina inquisitorial devia corrigir. Os nobres tinham
certos privilégios, eram dispensados dos açoites, mas raramente podiam
livrar-se das condenações.
O degredo representava para os condenados
portugueses uma dupla provação: além de perderem todo o seu patrimônio, que
era confiscado pelo Santo Ofício, ainda tinham de aprender às pressas novos
hábitos e formas de se inserir no mundo produtivo para poder sobreviver nas terras
d'além-mar que os acolheriam.
É verdade que a maioria dos degredados era
constituída de homens e mulheres modestos, como revelam seus apelidos
pitorescos e pouco delicados: "o Cobra", "a Cavala",
"a Má carne" - alcunhas que evocavam sua rude condição de artesãos,
camponeses ou de domésticas. Certos acusados traziam, no entanto, nomes e
títulos de famílias nobres, como Cristóvão Rodrigues, cavaleiro professo e
comendador da Ordem de Cristo. Outros eram tratados como dom ou dona,
o que atestava condição de nobreza.
Do ponto de vista administrativo, é certo
que estes degredados, quem quer que fossem, eram na colônia trabalhadores
temporários, de certa maneira vigiados e controlados, mas tudo indica que eles
também se dissimularam na massa, fazendo-se passar por simples colonos.
Numa terra imensa como o Brasil, até onde
chegava o controle das autoridades locais sobre os degredados? Foram numerosos
aqueles cujas pistas se perderam? Foram muitos aqueles que fugiram, penetrando
no interior das terras, constituindo famílias, tornando-se bons brasileiros e,
posteriormente, qualificados como descendentes de gloriosos ancestrais
portugueses, bravos marinheiros ou comerciantes ambiciosos?
Conhecer a vida quotidiana dos degredados
no Brasil é uma tarefa difícil. No período do cumprimento da pena, os processos
dos réus pouco ou quase nada revelam acerca de suas vidas no degredo, mas tais
documentos continuam sempre a registrar suas súplicas comoventes, feitas ainda
antes do embarque ou já no território de destino. Desembarcados no Brasil,
muitos deles não pensavam senão em retornar à pátria. Arquitetavam os seus
planos para conseguir a clemência dos juízes da fé. Lamentavam sofrimentos,
doenças e misérias encontrados no Brasil. Pagavam os seus crimes na colônia e
ansiavam retornar à metrópole. Estavam com o corpo no Purgatório mas o olhar no
Paraíso. Banir deriva de ban, antigo vocábulo germânico que significava
proclamação pública. Acompanhava o condenado um toque da corneta, para que a
pena de expulsão se tornasse notória. O banimento é uma das mais antigas
penalidades e foi frequentemente aplicado entre muitos povos antigos. Em
Atenas, chamou-se ostracismo; em Roma, deportação ou degredo. A antiga
legislação francesa prescrevia o exílio. Em Portugal, além de degredo, usava-se
também o termo expulsão do reino. Diversos povos utilizaram o banimento com o
objetivo de fazer sair do país aquele que violasse as suas leis.
Da mesma forma que na Antiguidade e na
Idade Média, a expulsão do indesejado era acompanhada pelo toque das cornetas,
o banimento proveniente dos tribunais inquisitoriais era também acompanhado
por um cenário magistral. Esta teatralidade contribuía para a sacralização do
ato da partida, do rompimento definitivo ou temporário com a comunidade de
origem.
O banimento degradava o condenado à
infâmia. Frequentemente era açoitado, punham-lhe a mitra da difamação na cabeça
e vestiam seu corpo com uma túnica condenatória. Algumas vezes o sentenciado,
"com baraço e pregão", era exposto pelas ruas onde a ritualização do
cortejo, através do auto-de-fé, acontecia. O público participava do suplício
lançando injúrias, pedras e lixo. O povo estava ali não pelo mórbido e
perverso gosto pela violência, mas para autorizar a exclusão.
Nessa época, o motivo essencial que
justificava a punição daqueles que infringiam a lei divina era a salvação de
suas almas, mesmo que para isso fosse necessário excluí-los do corpo social,
da mesma maneira que se separa a erva daninha do bom grão de trigo. Para
reintegrar uma minoria dissidente na sociedade católica, a Inquisição do Santo
Ofício, com extrema vigilância, recorreu ao castigo e à catequização: meios
pedagógicos da reintegração social e religiosa.
Entre todas as normas ditadas pelas
legislações portuguesas, seja as ordenações do reino ou os regimentos
inquisitoriais, a exclusão do culpado era, pelo menos teoricamente, o meio
mais utilizado como instrumento punitivo. O banimento implicava o afastamento
físico e excluía o culpado da convivência dos seus compatriotas, privando-o de
seus direitos, sobretudo a prerrogativa da sua participação na vida corporativa
e familiar.
Uma vez residentes no Brasil, é evidente
que nem todos os banidos agiram da mesma maneira. Os arquivos da Inquisição
conservaram suas lamentações e pedidos de perdões ou de comutações das penas originais.
São súplicas de degredados mal adaptados, sem trabalho, sem esperanças,
deprimidos pela distância de seus entes queridos, obcecados pelo desejo de
voltar para Portugal.
Madalena da Cruz, casada com o alcaide de
uma prisão, foi sentenciada a cinco anos de degredo no Brasil, em 1682, por
fazer, usando seus privilégios, chegar mensagens a condenados em troca de
recompensas. Não conseguiu adaptar-se aos rigores da colônia. Tanto implorou
que os juízes lhe reduziram a pena, em 1685, e ela voltou, gravemente doente,
para Portugal.
André Vicente, que se preparava para ser
padre, foi condenado em 1632 a uma permanência forçada de três anos no Brasil.
Entre outros delitos, foi acusado de utilizar os panos do altar "como
lenços de assoar e noutras imundícies". Acabou retornando à metrópole, por
conta própria, dez anos depois, "com dinheiro e escravos", e até
obteve do Santo Ofício permissão para ordenar-se sacerdote.
Fora o caso do venturoso André Vicente,
temos poucos exemplos de degredados bem-sucedidos. Todavia, a assimilação do
degredado à vida de colono era possível: o Brasil tinha sede de braços e de
homens corajosos. O esforço colonizador exigia trabalhadores intrépidos e
rudes.
A ortodoxia da religião católica à época
só podia ser preservada pela rejeição dos membros considerados indesejáveis,
minoria social e religiosa que representava os pecados da comunidade e por
isso deveria ser enviada para o deserto: terra maldita onde Deus não exercia a
sua ação fecundante, terra de relegação para os inimigos de Yahvé. Como o bode
expiatório da antiga tradição hebraica, os degredados simbolizavam a rejeição e
a condenação do pecado: o mal era banido junto com eles.
Os cristãos-novos acusados de criptojudaísmo
(práticas religiosas judaicas clandestinas) são os que figuram com mais
frequência nas listas dos autos-de-fé. Em número bem inferior são aqueles que
delinquiram contra a moral católica, também eles punidos com o degredo:
bígamos, sodomitas, padres sedutores. Causa de desordem são também os
feiticeiros, os visionários, os blasfemadores. Todos eles representam uma
preocupação para o fortalecimento da unidade social, política e religiosa do
reino, defensor do seu catolicismo romano. Na colônia, embora distante, os
rumores sobre sua condição de degredados circulavam de boca em boca. A
ladainha de seus hereges delitos acompanhava sua passagem. Eram confundidos com
os criminosos. As autoridades utilizavam a popularidade deste pejorativo
discurso para reforçar, ainda mais, o seu poder de coerção.
A imagem do degredado no contexto deste
imaginário tornou-se a sua verdadeira identidade. Consequentemente, sua
estigmatização era radical. Tratar alguém de "banido" era uma injúria
desonrante que continha em si a exclusão, a excomunhão, o ser indesejado. Esta
imagem estereotipada se cristaliza no eixo do corpo social. Imagem que se confunde
com a dor, pois o degredo em si mesmo é fonte de padecimento: a evocação do
país longínquo, a separação dos lugares da infância, a insegurança do
desconhecido. O tempo do degredo constitui o tempo da purificação.
Geraldo
Pieroni é professor da Faculdade de
Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade
Tuiuti, do Paraná. É autor de Os
excluídos do Reino (UnB, 2000) e Banidos:
A Inquisição e a lista dos cristãos-novos condenados a viver no Brasil (Bertrand Brasil, 2003).
Fonte: Revista
Nossa História - Ano I nº 04 – Fevereiro/2004
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Saiba Mais – Documentário
A Estrela
Oculta do Sertão
Durante a invasão
holandesa ao Brasil, no século XVII, a Coroa holandesa que atuava na vanguarda
do movimento de reforma do catolicismo, adota a política de acolher perseguidos
religiosos de várias partes da Europa. A maioria dos judeus emigrantes que se
estabelece no país vive na penúria. Com a tomada do Recife pela Holanda, esses
grupos são atraídos pela oportunidade de progredir na mais rica capitania
portuguesa da época, e navios fretados por judeus passam a chegar quase todo
mês no Recife, evadindo-se posteriormente para o interior, após a retomada dos
portugueses.
O documentário conta com
consultoria e depoimentos da historiadora da USP Anita Novinsky, uma das
maiores autoridades em inquisição no Brasil, o genealogista Paulo Valadares, e
o antropólogo do Collège de France, Nathan Wachtel.
Direção: Elaine Eiger e
Luize Valente
Ano: 2005
Duração: 84minutos
Muito BOm
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