Culto à
escrava negra de olhos azuis, transformada em santa pelo povo, nasceu na década
de 1970, no Rio de Janeiro.
Mônica Dias
de Souza
Não há quem
não tenha ouvido falar na escrava Anastácia. Sua imagem, estampada em pequenos
santinhos com orações no verso, pode ser encontrada nos lugares mais inusitados
- até em balcão de lanchonete. A despeito da popularidade, sua origem se
envolve em mistério. Quem seria afinal aquela escrava, que aparece na
iconografia com parte do rosto velada por um instrumento de tortura? Se negra,
por que é representada com os olhos azuis? Que poderes atribuem a ela? O culto
a Anastácia envolve muitas perguntas e poucas respostas. Sua imagem mais conhecida
é até de fácil identificação. Ela reproduz, na verdade, uma gravura retirada do
livro Voyage autour du monde, de
Etienne Arago, viajante francês que esteve no Brasil em 1808, integrando uma
expedição científica, e registrou suas impressões em textos e desenhos. De um
destes, saiu a escrava cultuada como santa em várias regiões do Brasil. Mas,
fora essa constatação, nem o faro mais apurado pode conduzir a algum registro
histórico sobre a vida de Anastácia. Dados de sua biografia não constam em
registros oficiais, documentações paroquiais, autos punitivos, fichas de casa
de detenção etc. Sua "certidão de nascimento" foi conferida pelo
povo, como disseram o ministro da Cultura, Gilberto Gil, e o escritor Antônio
Risério à revista Manchete, de 21 de maio de 1988.
E, se foi o povo que a transformou numa
entidade arquetípica, ao mesmo tempo divina e guerreira, temos obrigatoriamente
de tentar ouvir aqueles que trouxeram Anastácia à luz. De prosa em prosa,
chegamos à Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos
e ao Museu do Negro, ambos localizados na Rua do Rosário, no centro do Rio de
Janeiro. A igreja abriga uma instituição secular, a Irmandade do Rosário e São
Benedito dos Homens Pretos - congregação de leigos com um histórico que remonta
ao século XVIII. Até hoje a instituição busca, com reuniões dominicais
realizadas todo mês, manter seus compromissos originais, cultivando ideais
étnicos e estimulando o sentimento de coletividade entre os negros. Para
preservar sua memória, construíram um museu, na década de 1970, e foi neste
ambiente, repleto de grossas correntes de ferro, fitinhas, santos, imagens de
pretos velhos e até uma réplica da cripta da princesa Isabel e do conde d'Eu,
que nasceu a escrava Anastácia.
Numa exposição sobre os martírios
infligidos aos escravos no Brasil antigo, realizada em 1971, o museu recebeu
como doação, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN),
uma imagem em forma de pôster. Era a já citada reprodução de Etienne Arago. A
imagem, que em si não revela sequer traços femininos, acabou virando a de uma
mulher, que em pouco tempo recebeu nome e biografia. Dentro da irmandade, o
responsável pelas primeiras versões sobre a vida de Anastácia foi Yolando
Guerra. Através das instruções desta liderança, articulou-se uma identidade
para a imagem de Arago. A crença tomou vulto e, no início dos anos 80, os
frequentadores do museu já tinham de enfrentar longas filas para chegar até a
gravura da santa. Fora dali, podiam encontrar a escrava nas tendas espíritas,
convertida na Vovó Anastácia, que gosta de fumo de rolo e de rosas brancas.
Como bom preceptor, Yolando Guerra
atribuiu a Anastácia qualidades que certamente considerava necessárias a um
grande vulto popular. Criou para ela uma genealogia africana: "princesa de
um povo" (no caso o povo bantu) e filha de Oxum. Mas a devoção a Anastácia
não se restringe aos bantu-descendentes, mas a brasileiros e brasileiras de
outras etnias e religiões. No Rio de Janeiro, seu culto parece mais
sistematizado, o que não impede a existência de devotos em Belém, São Paulo,
Minas Gerais e na Bahia, local que abriga um grupo afro exclusivamente
feminino, chamado Didá, que tem estampada em seu estandarte a imagem de
Anastácia com os dizeres: "Lyá Anastácia. Didá, o poder da criação".
Se ela não é reconhecida como santa pela Igreja Católica, o povo lhe delegou
poderes de cura e lhe presta homenagens, especialmente no seu dia, 12 de maio.
Nessas ocasiões, os devotos revelam no seu ar contrito a riqueza espiritual de
uma sociedade como a nossa, capaz de fabricar a possibilidade de olharmos para
nós mesmos e de pensarmos, através de Anastácia, no passado escravista e no
presente preconceituoso simultaneamente.
Mônica Dias
de Souza é mestre em História pela
Universidade Federal Fluminense (UFF) e autora de Santo de casa também faz
milagres: a construção simbólica da escrava Anastácia. Rio de Janeiro: Pallas,
2005 (no prelo).
Fonte: Revista Nossa História -
Ano II nº 19 - Maio de 2005
Como todo mito, Anástácia tem sua realidade histórica estabelecida pelo imaginário popular.
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