Com suas
glórias e torpezas, a Revolução Farroupilha, que combateu o Império e proclamou
uma república nos pampas, foi fundamental para a construção histórica de uma
identidade rio-grandense. Mas isso existe mesmo?
Sandra Jatahy
Pesavento
Bem antes
do sucesso de A casa das sete mulheres,
a colorida e bem cuidada série da Rede Globo, a Revolução Farroupilha já gozava
de certa fama, associada a uma longa guerra contra o Império brasileiro, entre
1835 e 1845. Mais do que isso: a Revolução Farroupilha sempre foi o
acontecimento pelo qual o Rio Grande do Sul deu entrada e se fazia presente nos
manuais de nossos currículos escolares de História do Brasil, na literatura
gauchesca, nos discursos políticos, nos tão difundidos Centros de Tradições
Gaúchas.
Fronteira viva com os domínios
castelhanos, a então chamada província de São Pedro era uma região essencial
para o acesso ao Prata, onde os portugueses tinham interesses e de onde
operavam através do contrabando, a partir da Colônia do Sacramento, fundada em
frente a Buenos Aires, em 1680. Nessa virada de século, portugueses e
castelhanos disputavam ainda o gado abandonado pelos padres das missões
jesuíticas, depois de expulsos pelos bandeirantes paulistas - o gado xucro ou chimarrão, rebanho selvagem caçado no pampa.
É a origem dos rebanhos bovinos e das
tropas de muares levadas pelos tropeiros para o abastecimento e o serviço da
zona das Minas Gerais. Para assegurar sua estratégia, a Coroa passou a conceder
poderes amplos aos senhores de terra e gado, estimulando o assentamento de
grandes fazendas de criação, as estâncias, no decorrer do século XVIII. Chefes
de bandos armados, tais estancieiros, com os seus homens, defendiam as terras
no extremo sul, demarcando a fronteira.
Com a Independência, ocorreu uma reversão
da antiga autonomia. "O centro explorava o sul", denunciavam os
rio-grandenses. O Rio Grande virara "colônia" da Corte, bradavam com
indignação os senhores locais, apontando as inovações da política imperial que
alteravam a situação do Rio Grande do Sul: a centralização
político-administrativa; a discriminação das rendas provinciais remetidas à
Corte; a taxação do charque gaúcho. Mas além do desprestígio político e econômico,
que também recaía sobre outras províncias do Império, inseridas à mesma época
no que se convencionou chamar de "rebeliões regenciais", havia a
desvalorização militar da província.
Os chefes locais, tantas vezes vitoriosos
nas lutas contra os castelhanos, eram responsabilizados pela perda da Província
Cisplatina, em 1828, anexada oito anos antes por d. João VI, e desde então o
comando de tropas não lhes era mais confiado. A trama se arma, os senhores se
rebelam e lutam lado a lado com seus homens, dando o tom de companheirismo e
aspirações comuns, erguidas em plano mais alto, simbolicamente, do que as
distinções da posse da terra e da hierarquia social.
A deflagração de uma revolta armada contra
o Império durante um decênio, a proclamação da República Rio-Grandense, a
elaboração de uma constituição específica e a criação de símbolos
característicos, como bandeira e hino, cuja letra aludia a uma "ímpia e
injusta guerra", são ações - mais do que históricas - atemporais, eternas,
imutáveis, porque integrantes de uma identidade regional altamente agregadora.
Tais questões, entendidas na época pelos
sulinos como de "descaso", "opressão" ou de
"exploração" do "centro" sobre o Rio Grande, serão vistas
mais tarde em seu aspecto afirmativo: a província, "ameaçada", se
levantara por uma "causa justa" em face das "liberdades
ameaçadas", e mostrara aos do "centro" a sua força. A realidade,
transposta para a narrativa por força desse novo objeto de culto e de estudo,
apresenta os ingredientes fundamentais para a construção de um mito das
origens. Há um espaço definido: o pampa, a fronteira, os deslocamentos
inerentes à guerra e à criação de gado; há um tempo idílico: a idade de ouro em
que o voluntarismo não encontrava freios no poder central; e há também um
sujeito, forjado por uma alta concepção de si próprio, segundo tais princípios
de mobilidade e autonomia.
As proezas dos rio-grandenses na Revolução
Farroupilha percorreram o caminho da oralidade à escrita para delimitar, ao
longo dos anos, um passado, uma memória, uma história. Com as transposições de
uma "maneira de ser" - do acontecimento para a região, da região para
os seus habitantes, ou do Rio Grande para os rio-grandenses, homogeneizando
grupos sociais, raças e etnias -, todos passam a ser herdeiros das
"gloriosas tradições de 35", integrados em uma representação do
passado que se converte em patrimônio comum, dotado de forte coesão social e
veiculado já na segunda metade do século XIX.
Vários incidentes contribuíram para dar
caráter de epopeia à Guerra dos Farrapos, cuja longa duração confirma por si só
o valor militar dos revoltosos. Da conquista espetacular de Porto Alegre,
capital da província, na arrancada farroupilha de 20 de setembro de 1835, até o
estabelecimento de uma paz honrosa - a Paz de Ponche Verde, em 28 de fevereiro
de 1845, entre o representante do Império, Caxias, e os chefes locais,
atendidos em suas reivindicações -, houve uma sucessão de episódios romanescos
e rocambolescos que fazem do acontecimento uma verdadeira saga, como a aventura
militar e amorosa vivida por Giuseppe Garibaldi e a bela Anita.
A fuga espetacular do líder farrapo Bento
Gonçalves, a nado, da prisão do Forte do Mar, na Bahia, auxiliado pela
maçonaria; a construção e o transporte por terra de navios, puxados por juntas
de bois, campo afora, desde a foz do rio Capivari, na Lagoa dos Patos, até a
costa da praia, em Tramandaí, para possibilitar aos farrapos a conquista de
Laguna, em Santa Catarina; duelos de morte entre aliados farroupilhas, como o
de Bento Gonçalves com Onofre Pires, são episódios contados e recontados de
pais para filhos desde o final do conflito.
Já nos primeiros anos de sua fundação, em
1868, a Sociedade Partenon Literário, de Porto Alegre, celebra a revolta
farroupilha em prosa e verso, estetizando um passado ainda recente, de modo a
torná-lo vivo na memória social. Nasciam as imagens do "monarca das
coxilhas", do "centauro dos pampas", dos "indômitos
guerreiros", da "vocação libertária", essenciais para que o Rio
Grande recuperasse seu poder de barganha com o poder central. Diante de uma
realidade nacional esvaziada de lutas, com o fim da Guerra do Paraguai, em
1870, recuperava-se pela memória a vocação, a identidade e a missão do Rio
Grande do Sul, que sempre teve como moeda de troca, nos tradicionais ajustes
com a Corte, o seu valor militar.
Na
década de transição para a República, a Revolução Farroupilha estava
consolidada pela narrativa histórica como acontecimento-chave para a explicação
da província. Liberais e conservadores, rivais na política do Império, já se
proclamavam herdeiros da mesma identidade rio-grandense, quando uma nova
geração, ardorosamente republicana, afronta as instituições monárquicas e
arrebata o passado das mãos dos liberais, denominando-se os reais herdeiros do
"decênio heroico", capazes de dar nexo entre duas repúblicas: a
remota, de setembro de 1836, e a iminente, de novembro de 1889.
Quando da eclosão da Revolução de 1930
contra o poder central da República Velha, o grito dos gaúchos - "Rio
Grande! De pé, pelo Brasil! Não poderás falhar ao teu destino heroico!" -
portava em si, de forma orgânica, ancestral e telúrica, um destino manifesto: o
de lutar pelas boas causas, sempre alerta, tal como já fora o bravo
"sentinela da fronteira". Nesse grito se insere a delicada questão de
um equilíbrio instável, sempre presente no confronto do Rio Grande com o dito
poder central: qual a relação que se estabelecera desde a Revolução Farroupilha
entre o todo e a parte, a nação e a região?
A resposta se dá na relação da história
com o imaginário: mesmo se tendo rebelado contra o centro, mesmo tendo
proclamado a república em um contexto monárquico, o Rio Grande optara por ficar
do lado do Brasil. "Poderia" se aliar com as repúblicas do Prata,
vizinhas, mas permanecera ao lado do Império. Logo, "ninguém tão
brasileiro quanto o gaúcho", pois sua brasilidade foi escolha e não
imposição.
Paira, porém, uma advertência: uma guerra
de dez anos se inscrevera na história da região e do país, a lembrar que,
humilhado ou contrariado, o Rio Grande era capaz de ir às armas em defesa da
liberdade. Equilíbrio instável, portanto: continuar a "ser gaúcho e
brasileiro" dependia do respeito e reconhecimento, pelo "todo",
dos valores e direitos da "parte", num ajuste de identidades
permanente entre a região e a nação. Resta uma pergunta: se processos de formação
de identidade se constroem por oposição a uma alteridade, os gaúchos são
diferentes e específicos com relação a quê?
Falamos dos castelhanos, no?
Ora, os "outros", frente aos rio-grandenses, seriam talvez os
"do outro lado da fronteira", tornados "gaúchos malos" pelos azares da guerra, mas parceiros nas
lides da paz e no cotidiano de um modo de ser. De alguma forma, estes
"outros" acabam sendo os "mesmos", a partilharem uma
cultura fronteiriça, comungando valores e práticas de um passado mítico: bravura,
honra, justiça. Ou em bom castelhano: sobranceria.
São duas as tendências de interpretação
que se discutem no âmbito do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do
Sul, ao longo da primeira metade do século XX: a do historiador gaúcho Alfredo
Varela (Revoluções cisplatinas, 1915
e Histórias da grande revolução,
1933), que integra a Revolução Farroupilha ao ciclo platino, acentuando o
caráter separatista do movimento, e a do historiador gaúcho J. R Coelho de
Souza (O sentido e o espírito da Revolução
Farroupilha, 1944) que dá ênfase ao caráter federalista da revolta e,
consequentemente, ao seu projeto de integração com o Brasil. Acabou vitoriosa a
versão da "vocação brasileira" da Revolução Farroupilha, no momento
em que, não por acaso, governava o Brasil o gaúcho Getúlio Vargas, no início
dos anos 40...
Os recentes estudos da história cultural
apresentaram um novo enfoque de análise, retomando questões que estranhamente
resistiam às violentas críticas do marxismo: as representações sociais, com a
força simbólica das palavras e imagens, reinventam o mundo, dando a suas
construções o efeito de real, o que explicaria o fato de, no Rio Grande, as
pessoas teimarem em "querer acreditar" no mito do gaúcho e na
lendária epopeia farroupilha. Ela retornou com força, como carro-chefe de uma
identidade vitoriosa e largamente difundida pela mídia e pelos partidos
políticos. Caberia até perguntar se algum dia esteve ausente da vida e das
preocupações dos intelectuais, seja para criticá-la ou promovê-la.
Sandra Jatahy
Pesavento é professora titular de história do Brasil da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul.
Fonte: Revista Nossa História - Ano I nº 2 - Dez.
2003
Saiba
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Olá, você tem esse artigo disponível em PDF? Pode me mandar?
ResponderExcluirTenho em word. Link para download
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Olá, amigo! Tem o artigo completo, com resumo e as referências? estou precisando para um trabalho na faculdade.
ResponderExcluirAté onde sei o artigo está completo. Por favor, verificar fonte: Fonte: Revista Nossa História - Ano I nº 2 - Dez. 2003
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