Ao abordar a moral cristã de forma humanista, Erasmo de Roterdã atacou a
rigidez da Igreja e a violência entre os homens.
Em uma
Europa assolada pelas guerras e dividida por conflitos religiosos, Erasmo de
Roterdã (1466-1536) defendeu a paz e a tolerância entre os povos, usando como
princípio a moral cristã livre dos dogmas da Igreja.
Suas armas foram as palavras impressas.
Erasmo frequentava tipografias e se correspondia com editores, ilustradores e
livreiros. Estava acostumado a pensar em público, na sala de aula ou no debate
com interlocutores de toda Europa, com os quais mantinha um diálogo contínuo
por meio de cartas, curtas e precisas, que fazia imprimir e circular
rapidamente.
A variedade e o volume de seus escritos
contribuíram para perpetuar múltiplas imagens de Erasmo. Para muitos, ele é o
autor do Elogio da loucura (1511), o crítico arguto da
sociedade de seu tempo. Para outros, é o grande filólogo que por três décadas
publicou e comentou mais de 4 mil provérbios greco-latinos, reunidos em Adagia (1500-1536).
Alguns o lembrarão como o polemista que duelou com o reformador Martinho Lutero
acerca da liberdade da vontade humana, a partir do seu Sobre o livre
arbítrio (1524). E ainda há os que o destacam como o teólogo que
renovou os estudos sobre o Antigo e o Novo Testamentos, com base nas fontes
antigas que então chegavam da Grécia, após a dissolução do Império Bizantino.
Mas é possível enxergar um fio condutor
presente na maioria das obras desse humanista flamengo. Erasmo indagava-se
constantemente a respeito da instauração da paz. Para isso, seria preciso
eliminar os conflitos militares e intelectuais, inclusive em suas formas mais
corrosivas: os embates religiosos. Esta temática central em seu pensamento – a
renovação moral dos homens rumo à paz e à concórdia – está condensada em um
pequeno manual, redigido em forma de carta aberta a um amigo leigo. Trata-se
do Manual do Soldado Cristão, escrito em 1504.
No Manual, Erasmo propõe uma
série de preceitos para se viver no mundo como cristão, reconhecendo os perigos
da alma e afastando-os pela renovação da vivência religiosa, pela imitação das
virtudes de Cristo. Ele argumenta que a essência da experiência religiosa não
está no pertencimento a uma igreja, mas sim no “encontro com Cristo”, como
explica neste trecho inicial: “O Cristo não é uma palavra no ar pois significa
a caridade, a paciência, a pureza, quer dizer, todo o seu Evangelho. (...)
Deposite em Cristo como o único e supremo bem e não ame nada, não deseje nada a
não ser em Cristo e por Cristo. (...) É sempre em função deste fim soberano que
será necessário julgar a utilidade de todos os bens secundários”.
A doutrina
moral de Cristo deve ser seguida tanto pelo leigo engajado quanto pelo mais
alto eclesiástico. E ser cristão é sinônimo de caridade, simplicidade e
paciência – ou seja, uma vivência da religiosidade que transcende os dogmas e a
hierarquia da Igreja. Para Erasmo, eram dispensáveis muitos dos ritos apresentados
como necessários no caminho para a salvação e a proclamação da verdadeira fé.
Criticava a devoção às imagens da crucificação e do corpo de Jesus coberto de
chagas, o culto às relíquias e as abstinências. Argumentava que a morte e a
paixão de Cristo eram alegorias a serem interpretadas para conduzir
corretamente a vida moral, e não objeto de devoção popular – mesmo que
respeitável, incapaz de renovar o homem interiormente.
“Por ter sido batizado, não se creia
cristão”, advertia Erasmo ao “Soldado Cristão”. A obediência a fórmulas rituais
não era condição suficiente para uma autêntica religiosidade, nutrida muito
mais por uma espiritualidade interior. “Não me diga que a caridade consiste em
frequentar as igrejas, em se prostrar diante das estátuas dos santos, em deixar
queimar círios e em contar rezas que você repete. Deus não precisa de tudo
isso”. Do que precisaria Deus, então? Ou melhor, do que precisariam os homens
para merecer a sua misericórdia? Provavelmente Erasmo responderia a estas
indagações lembrando aos fiéis que o cristianismo não era apenas uma fé, mas um
modo de vida, uma filosofia moral. Que ser cristão não consistia só em crer
bem, mas em viver bem, exercendo a caridade para a regeneração interior e a
manutenção da paz e da concórdia entre os homens.
Os anos que antecederam a ruptura entre
Lutero e a Igreja Romana, na reunião da Dieta de Worms, em 1521, foram marcados
por grandes expectativas de reformas alheias à violência das guerras e à
ferocidade da repressão das instituições eclesiásticas e seculares. Um
intelectual como Erasmo ainda mantinha certa autonomia para escrever e agir. E
o que propunha era um retorno ao núcleo originário do cristianismo, a uma
espiritualidade desembaraçada dos longos debates teológicos. O que importava se
o Espírito provinha do Pai, ou do Filho, ou de ambos? O importante era que
frutificasse no coração humano, infundindo tolerância e paz.
Até a ruptura luterana, Erasmo acreditou
ser possível o advento de uma reforma da Igreja que reunificasse todos os
cristãos, sem antagonismos nem anátemas, evitando as sutilezas escolásticas e o
debate teológico. A união dos cristãos pacificados internamente e das retas
consciências seria possível desde que se condensassem os ensinamentos de Cristo
em um pequeno número de preceitos, por ele denominados de “fundamento da fé”.
Por ocasião da reedição de 1518 do Manual
do Soldado Cristão, Erasmo reafirmava esse projeto e o expunha em um novo
prefácio: “Será muito prático, no meu entender, escolher e agrupar alguns
homens pios e instruídos para o seguinte trabalho: extrair das fontes
puríssimas dos Evangelhos e dos escritos apostólicos e de seus melhores
intérpretes uma espécie de resumo de toda a 'filosofia de Cristo'. (...) Tudo o
que pertence à fé será condensado em poucos artigos, o mesmo acontecendo para o
que diz respeito à vida cristã”. O humanista apresentara a mesma
proposta em uma carta de 14 de agosto daquele ano, endereçada ao amigo Paul
Volz. Nela sugeria a redução da fé a um pequeno número de artigos, de
preferência os dez mandamentos apenas, deixando todo o resto para a livre
discussão.
Quando
escreveu a carta, ainda faltava mais de uma década para a primeira formalização
oficial dos princípios do luteranismo na Confissão de Augsburgo (1530), e 27
anos para a abertura do Concílio de Trento (1545), com seus decretos dogmáticos
e disciplinares que definiriam vários pontos da doutrina católica em face das
múltiplas interpretações então correntes. Nesse intervalo, a religiosidade
humanista de Erasmo manteve-se como uma proposta alternativa de renovação
espiritual, de paz e de concórdia religiosa.
O Manual do Soldado Cristão foi
lido pelos contemporâneos como um conjunto de sugestões concretas para viver a
mensagem evangélica de forma tolerante e ecumênica em tempos atribulados.
Quando os conflitos religiosos transformaram-se em guerras civis e
intraestatais, a piedade erasmiana tornou-se um modelo de tolerância contra
qualquer dogmatismo. Com Erasmo, gerações repetiam que a piedade é “a palavra justa”.
Esta pequena e preciosa obra é um
testemunho de como a filologia e a crítica erudita eram instrumentos para
pensar e propor novas formas de agir. O convite que Erasmo faz de restaurar a
leitura do Novo Testamento põe em questão a autoridade das instituições
eclesiásticas e o controle exclusivo da interpretação das Sagradas Escrituras.
O estudo crítico dos textos antigos era a arma que o humanista empunhava em um
contexto de guerras civis religiosas.
Silvia
Patuzzi é professora
da Universidade Federal Fluminense e autora de “Humanistas, príncipes e
reformadores no Renascimento”. In: Modernas Tradições (Editora
Access-Faperj, 2002).
Doce Guerra
Os Adagia são uma coleção
de provérbios que Erasmo de Roterdã selecionou a partir da leitura de um grande
número de autores gregos, latinos e cristãos. Cada sentença é acompanhada de um
comentário filológico, além de uma interpretação que atualiza aquele
ensinamento. Esta forma de redigir a obra lhe permite reunir provérbios de
autores diferentes sobre temas que ele considera importantes. Disso resulta
tanto uma divulgação da Antiguidade pagã e cristã quanto uma abertura para
pensar os problemas do seu tempo. O adágio 3001, A guerra é doce para
quem não a experimenta, mostra como Erasmo fazia dialogar antigos e
modernos para refletir sobre o impacto da banalização da violência na vida dos
homens.
O adágio começa indagando sobre a
proliferação da guerra, em todas as suas formas. Em seguida, enumera suas
consequências: a fome, a destruição de famílias e negócios, o empobrecimento
dos nobres e a degeneração dos costumes – mas, sobretudo, o fato de que “o
inimigo leva consigo, junto com a vida, a percepção do mal”:
“O que leva, não digo Cristãos, mas todos
os homens, a tal ponto de loucura de empenhar-se, com tanto zelo, com tantos
gastos, com tantos esforços, à ruína recíproca e geral da guerra. Nem todos os
animais combatem tanto e entre si, mas apenas entre espécies diversas. Combatem
com os meios naturais. Não como nós, com máquinas elaboradas para uma arte diabólica.”
Para Erasmo, o mal não é uma potência
sobrenatural. É a guerra que destrói as disposições morais do homem.
Saiba mais – Bibliografia
BAINTON, Roland H. Erasmo
da Cristandade. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1969.
HUIZINGA, Johan. Erasmo. Barcelona:
Ediciones Del Zodíaco, 1946.
ROTERDÃ, Erasmo de. O
Elogio da loucura. Coleção L&PM Pocket.
ROTERDÃ, Erasmo de. A
Guerra e a queixa da Paz. Lisboa: Edições 70, 1999.
Saiba mais – Link
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