Cinquenta
anos depois de Getúlio “sair da vida para entrar na história", o legado do
nacional-estatismo ainda está no centro do debate político e, por ironia, vê-se
ameaçado por um governo oriundo do sindicalismo que ele próprio criou.
Daniel Aarão
Reis Filho
Quando
Getúlio Vargas se suicidou, em agosto de 1954, o país parecia à beira do caos.
Acuado por uma grave crise política, o velho líder preferiu uma bala no peito à
humilhação de aceitar uma nova deposição, como a que sofrera em outubro de
1945. Entretanto, ao contrário do que imaginavam os inimigos, ao ruído do
estampido não se seguiu o silêncio que cerca as derrotas. Uma imensa vaga de
protesto popular varreu o país. Multidões queriam reverenciar pela vez derradeira
um líder político que já se tornara uma lenda. O suicídio fora um último golpe
político. A morte de Vargas salvara o varguismo.
Já em outras oportunidades, acontecimentos
também decisivos para a história da República brasileira se associaram à
personalidade de Vargas: a Revolução de 30; o golpe de 1937 e a instauração do
Estado Novo; a decretação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), em 1943;
os movimentos queremistas ("queremos Getúlio") que, em 1945, clamaram
pela permanência de Vargas no poder; a volta à Presidência "nos braços do
povo", em 1950; as lutas nacionalistas, com ampla participação popular,
nos anos 40 e 50, exigindo um Estado nacional forte, com presença marcante na
economia, através das empresas estatais: Companhia Siderúrgica Nacional e
Petrobras.
O suicídio conseguira mobilizar todas
estas referências, galvanizando o povo, sobretudo as camadas mais humildes, na
defesa de um programa, uma tradição nacional-estatista.
Mas o que era essa tradição? Um Estado
forte, centralizado, com poder de intervenção em todas as esferas da sociedade,
da economia à cultura, da produção do aço ao consumo de símbolos. A intromissão
estatal bem-vinda: do alto para baixo, do centro para a periferia. Em
contrapartida, o enfraquecimento dos poderes regionais e locais, então
dominados por elites oligárquicas.
Na cúpula do sistema, líderes
carismáticos, dizendo aquilo que toca o coração dos que estão por baixo. Defendendo e fazendo adotar e cumprir medidas
e leis trabalhistas em defesa dos humildes.
O compromisso com o crescimento econômico.
Havendo desenvolvimento, com promessas de justiça, a ordem ganhava
legitimidade, mesmo a autoritária, perseguindo e encarcerando as oposições, e
adotando a tortura como política de Estado. O mais importante é que o Estado
definisse um "projeto nacional". Política para indústria, agricultura,
comércio, finanças, juros, lucros e salários, educação, cultura, artes. Um
projeto que mobilizasse o povo, intelectuais, empresários, civis e militares, religiosos,
todos juntos, harmonizando-se na luta pelo bem comum, social e nacional.
No quadro do Estado Novo (1937 a 1945),
forjou-se este projeto e uma ideologia nacionalista. Os interesses particulares
não poderiam impedir a convergência em torno dos valores da nação e do Estado.
Só assim seria possível ao Brasil assumir o lugar merecido no mundo, fazendo
valer os interesses próprios no jogo bruto das relações internacionais.
Contra estas referências positivas, se
oporiam apenas os inimigos do povo, os comunistas "vende pátria",
acusados de "agentes" de Moscou, e, principalmente, os liberais. O
liberalismo era acusado de emancipar os fortes do controle social, tornando-os
mais poderosos e os fracos, mais débeis, fragmentando a sociedade e atomizando
os indivíduos numa insana luta de todos contra todos. O liberalismo seria a
doutrina do egoísmo sem peias, e, por se associar à democracia representativa,
a contaminaria.
Com efeito,
as circunstâncias acabariam construindo uma rede de contradições entre os
trabalhadores e os valores democráticos. Embora em todo o mundo, desde o século
XIX, as lutas democráticas tenham sido travadas pelos trabalhadores, o
liberalismo delas se apropriou, cunhando uma expressão, quase um slogan:
"democracia liberal". No Brasil, sobretudo depois de 1945, as elites
acompanhariam o giro, agrupando-se em partidos "democráticos". A
União Democrática Nacional (UDN) e o Partido Social-Democrático (PSD) marcariam
com o selo conservador a palavra. Do ponto de vista dos trabalhadores, seria
necessário aproveitar os espaços e as margens democráticas, desde que servissem
para fazer avançar o "progresso social" e a "independência
nacional". Estas, sim, tornar-se-iam as referências fundamentais para
avaliar uma "verdadeira" democracia. "Voto não enche
barriga", sintetizou Getúlio, exprimindo ceticismo e desconfiança em
relação à democracia representativa.
A morte física do líder não conseguira
matar o projeto político que ele encarnara. Nos anos seguintes, para alarma dos
inimigos, reviveu a tradição nacional-estatista, consolidada pela aliança entre
os dois maiores partidos das esquerdas brasileiras: o Partido Trabalhista
Brasileiro (PTB), fundado em 1945, e o velho Partido Comunista do Brasil (PCB),
de 1922 rebatizado Partido Comunista Brasileiro em 1960.
Na segunda metade dos anos 50, essa
aliança questionou as carências do crescimento econômico então verificado, os
"cinquenta anos em cinco" do governo Juscelino Kubitschek (1955 a
1960). A economia crescera, mas estava demasiadamente atrelada aos capitais
internacionais. Tratava-se agora, argumentavam as esquerdas, de promover uma
justa distribuição do bolo - da renda e do poder.
Entretanto, o candidato
nacional-estatista, o marechal Teixeira Lott, não convenceu, derrotado por
Jânio Quadros, nas eleições de 1960. A renúncia deste, em agosto de 1961, jogou
o país numa crise de graves proporções. Os ministros militares tentaram vetar a
posse do vice-presidente João Goulart. Uma mobilização civil e militar abortou
o golpe e garantiu a posse de Goulart, embora com poderes diminuídos, no quadro
de um regime parlamentarista aprovado a toque de caixa.
João Goulart, o Jango, era afilhado
político e herdeiro reconhecido de Vargas. As forças conservadoras viviam um pesadelo:
em apenas sete anos, o velho líder ressuscitava.
Os movimentos populares passaram à
ofensiva: camponeses, trabalhadores urbanos, sobretudo os do setor público e
das estatais, estudantes, graduados das Forças Armadas. Foi tomando corpo uma
proposta de reformar o Brasil: reforma agrária, urbana, universitária,
bancária, do estatuto do capital internacional. Um novo projeto nacional, a ser
alavancado por um Estado forte e intervencionista, apoiado pelo povo
organizado.
Para as forças conservadoras, uma
revolução social. A Igreja temia o comunismo, os oficiais das Forças Armadas, a
indisciplina, as classes empresariais, o sindicalismo agressivo. Deram-se as
mãos e formaram uma poderosa aliança autoritária e conservadora.
Viviam-se, então, tempos quentes da guerra
fria. Em todo o mundo, dava-se o embate entre o capitalismo e o comunismo. A
Revolução Cubana triunfara em 1959 e, sob pressão do governo norte-americano,
transmutara-se em revolução socialista em 1961. Na África e na Ásia,
multiplicavam-se as guerras de libertação nacional.
O Brasil
estava integrado neste mundo de conflitos e polarizações. Uma crescente
radicalização parecia impor escolhas à sociedade. Reforma ou contrarreforma.
Revolução ou contrarrevolução. Aprofundar as heranças do varguismo ou negá-las.
As esquerdas contra as direitas.
No embate, decidido em março de 1964,
triunfaram as forças autoritárias e conservadoras. As direitas. A ditadura
militar.
Desabaram as referências
nacional-estatistas, derrotadas e desmoralizadas, quase sem luta. A segunda
morte de Getúlio Vargas. Seria ele agora definitivamente enterrado?
A ditadura fora produto da ação de uma
frente heterogênea, social e política. Reuniram-se a Cruz (a Igreja), a Espada
(as Forças Armadas) e o Dinheiro (os empresários), e mais o cimento do Medo das
mudanças. Elites, classes médias e até mesmo setores populares queriam o
restabelecimento da Ordem e da Segurança.
Entretanto, um grupo organizado no
Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (IPES), reunindo políticos, oficiais
das Forças Armadas e empresários, cedo passou a desempenhar um papel-chave,
conseguindo fazer eleger o primeiro ditador-presidente: o general Castelo
Branco. Haviam formulado para o Brasil um projeto de desenvolvimento
modernizante, autoritário e conservador. Previam o atrelamento do Brasil aos
Estados Unidos no contexto da guerra fria, o saneamento das finanças, uma
economia competitiva, aberta aos capitais internacionais, um Estado liberal,
antidemocrático e repressivo, até que os objetivos de "pôr ordem na
casa" fossem alcançados.
Na prática, contudo, o governo ditatorial
compreendeu que forças e instituições vinculadas à tradição nacional-estatista
- Estado centralizado, sindicalismo corporativo, lideranças herdeiras do
getulismo, mas também conservadoras - poderiam ser aproveitadas na nova ordem.
Como quase sempre acontece na História, as
utopias bem concatenadas no papel esbarraram em realidades complexas.
Eliminaram-se os principais herdeiros da tradição nacional-estatista, mas foi
necessário assumir a herança, pelo menos em parte, negociar com ela, em certa
medida, incorporá-la.
E, assim, depois de um primeiro momento de
fúria reformadora, retomaram-se aspectos antes condenados. Um Estado forte,
centralizado, desenvolvimentista, apoiado nas velhas estruturas corporativas
criadas e construídas no "velho" Estado Novo. Uma traição? Assim
pensaram alguns velhos liberais elitistas que ainda gesticularam em vão contra
aquela reviravolta. À esquerda, também seriam derrotadas organizações
revolucionárias, que se levantaram de armas nas mãos. Sem encontrar respaldo na
sociedade, seriam eliminadas pela violência e pela tortura entre 1969-1971
(guerrilhas urbanas) e 1972-1974 (guerrilha do Araguaia).
A ditadura consolidou-se como regime
militar, embora fortemente apoiada na sociedade e nas classes empresariais. Ao
contrário das expectativas catastrofistas, que apostavam no impasse do
capitalismo, houve, entre 1967 e 1973, um novo salto para a frente, o
"milagre brasileiro", fazendo com que os anos de chumbo fossem também
de ouro, para milhões que viram a vida mudar para melhor.
A recuperação do nacional-estatismo
ganharia alento no penúltimo governo militar, encabeçado por Ernesto Geisel.
Plano desenvolvimentista, empresas estatais, incentivos à ciência, à tecnologia,
aos cursos de pós-graduação, à cultura e às artes. A política externa
"pragmática e responsável" tentando afirmar um perfil próprio, incluindo-se
aí a ambição da bomba atômica. O nacional-estatismo redivivo, pelo alto e sem o
povo, sob direção dos militares, e adotando, a exemplo do Estado Novo, a
tortura como política de Estado.
Getúlio já morrera duas vezes, em 1954 e
1964, mas a herança, teimosa, sobrevivia.
Numa "distensão lenta, segura e
gradual", a ditadura esvaneceu-se. Pressionada por múltiplas crises,
perdida a legitimidade dos êxitos econômicos, os chefes militares mais lúcidos
preferiram a retirada em boa ordem.
Na democracia reconstruída, as forças de
esquerda voltaram a se organizar em liberdade: o Partido do Movimento
Democrático Brasileiro (PMDB), o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), o
Partido Socialista Brasileiro (PSB), os partidos comunistas, o brasileiro (PCB)
e o do Brasil (PC do B). Também apareceram novas siglas: o Partido Democrático
Trabalhista (PDT) e o Partido dos Trabalhadores (PT).
Na análise dos programas, uma certeza: o
nacional-estatismo não morrera como ideário das esquerdas. Em alguns, os traços eram mais fortes, como no
PDT e no PC do B. Em outros, mais fluidos, como no PMDB, mais preocupado com
cargos administrativos do que com encargos ideológicos. Numa situação
intermediária, o PT, mas também o PSB, onde apareciam propostas democráticas, e
as noções de uma cidadania ampliada, não mais concebidas de uma forma
instrumental, mas como princípios. Ao mesmo tempo, surgiam declarações, como a
do presidente e líder do PT, Luiz Inácio da Silva, o Lula, de que a CLT estava
para os trabalhadores como o AI-5 estivera para a sociedade brasileira. Sendo
criatura da estrutura corporativa celetista, aquilo pareceu a muitos uma
ingratidão. A maioria, entretanto, pensou que se tratava apenas de uma
bizarria. O fato é que a frase foi esquecida.
As esquerdas estavam mudando, mas o mundo
também, numa vertiginosa velocidade. E em sentido contrário às utopias
nacional-estatistas.
Uma nova revolução,
científico-tecnológica, desde os anos 70, em âmbito mundial, passou a subverter
situações estabelecidas, modelos de comportamento, crenças e valores. O
processo da globalização, a relativização das fronteiras e dos estados
nacionais, a revolução nas comunicações, além de outros fatores, condicionaram
o declínio do chamado estado do bem-estar social, cujas referências eram
importantes para as propostas nacional-estatistas. O liberalismo, bastante
enfraquecido no pós-Segunda Guerra Mundial, reapareceu com força insuspeitada,
numa grande ofensiva, capitaneada pelos governos da Inglaterra e dos Estados
Unidos.
Por outro lado, o grande adversário
histórico do liberalismo, o socialismo soviético, caía em pedaços e se
desagregava. Era uma árvore gigantesca. Na queda, tendeu a arrastar para a vala
do desprestígio todas as propostas socialistas ou socializantes, mesmo as que
não se identificavam com a sua história e o seu modelo.
No Brasil, as chamadas tendências liberais
também ganharam alento. Mas ainda teriam que lidar com a força das propostas
nacional-estatistas, presentes tanto no governo Sarney como na Constituição de
1988.
Entretanto, nos anos 90, o
nacional-estatismo passou claramente à defensiva. A sociedade conhecia avanços
democráticos substantivos, e progrediam igualmente os valores liberais, ambos
colocando em dúvida os superpoderes do Estado. Depois de Fernando Collor,
afastado menos pelas inclinações políticas do que em virtude de escândalos de
corrupção, Itamar Franco representou um interregno, mas por pouco tempo.
Seguiram-se os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso, que, embora mantendo
certas preocupações sociais, realizou, em larga escala, o programa de Collor no
que diz respeito à profunda redefinição da ação do Estado em suas relações com
a sociedade, a economia, a cultura e a política.
Apesar de lutas sociais importantes, as
privatizações se realizaram, abrindo-se o país aos capitais internacionais. A
herança getulista, agora, fora ferida de morte. Mas ainda sobrevivia em setores
da economia e em muitas instituições.
A vitória eleitoral de Lula, em 2002,
gerou expectativas distintas, correspondentes à ambiguidade de seus discursos.
O que significaria? Uma retomada das aspirações e valores do
nacional-estatismo? Ou um caminho inovador, capaz de aprofundar conquistas
democráticas sem hipertrofiar o Estado? O PT identificava-se com ambas as
possibilidades, defendendo simultaneamente os valores democráticos e um projeto
nacional, apoiado em um Estado forte e intervencionista e com uma crítica
radical às profundas desigualdades sociais que continuavam marcando a sociedade
brasileira.
Entretanto, ao longo dos primeiros 16
meses, o governo Lula não tem feito senão continuar e aprofundar as reformas
liberal-sociais já empreendidas por Fernando Henrique Cardoso.
As esquerdas nacional-estatistas, um tanto
aturdidas, voltam agora a se mobilizar. Acusam Lula de tibieza e traição. O
governo responde que atende apenas a imposições de circunstâncias e que
permanece vinculado a seus compromissos com os trabalhadores do país. Quanto às
propostas de radicalizar a democracia, ainda permanecem vagas, não alcançando a
consistência de um programa político, embora se registrem conquistas e avanços
inéditos na história republicana do país.
Nestas circunstâncias, o
nacional-estatismo parece cambalear. Se couber a Lula o golpe mortal na herança
nacional-estatista, será uma cruel ironia da História. Uma das mais autênticas
criaturas do sindicalismo corporativista varguista matando as derradeiras
heranças da era de Vargas.
Será a terceira morte, talvez definitiva,
do velho líder. Mas o futuro próximo ainda está em aberto. Em disputa com os
valores liberais e as propostas democráticas, as tradições nacional-estatistas,
enraizadas no passado, e apesar de todas as vicissitudes, definitivamente ainda
não são um passado que passou.
Daniel Aarão
Reis Filho é professor titular de
História Contemporânea na Universidade Federal
Fluminense.
Fonte: Revista Nossa História - Ano I
nº 7 - Maio de 2004
Saiba
Mais – Bibliografia
AARÃO REIS FILHO, Daniel. Ditadura militar, esquerdas e sociedade.
2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
FERREIRA, Jorge (org.). O populismo e sua história. Debate e
crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
-------- Trabalhadores do Brasil. O imaginário
popular. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1997.
GOMES, Ângela Maria
Castro. A invenção do trabalhismo.
Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.
RODRIGUES, Leôncio
Martins. Partidos e sindicatos. São
Paulo: Ática, 1990.
Saiba
Mais – Link:
Saiba
Mais – Documentário
Líder civil
da Revolução de 1930, comandou a modernização do Estado brasileiro com
políticas nacional-desenvolvimentistas. No seu legado sobressaem as bases da
industrialização, a legislação trabalhista e a participação do Brasil na II
Guerra.
Nasceu em
São Borja (RS), em 19 de abril de 1882, e morreu em 24 de agosto de 1954, no
Rio de Janeiro (RJ).
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