Nos séculos XVII e XVIII, muitos padres aproveitavam o momento da
confissão para assediar sexualmente as mulheres.
Uma das formas de violência sexual às
quais as mulheres estavam submetidas no Brasil colonial era
a investida de padres, que aproveitavam o momento em que ouviam suas
confissões para assediá-las, especialmente quando as penitentes revelavam os
chamados “pecados da carne”. Como eram delitos cometidos somente por padres,
essas práticas – denominadas solicitatio ad turpia ou,
simplesmente, solicitação – nunca foram julgadas pela Justiça comum, e sim pela
Justiça Eclesiástica, tendo passado, em 1599, ao foro inquisitorial.
Por desqualificar um dos principais
instrumentos da Reforma Católica, a confissão anual obrigatória, esse delito
causava grande preocupação. O fato de os párocos se valerem de seu poder para
saciar seus desejos lascivos comprometia o sucesso do movimento reformador
inspirado pelo Concílio de Trento (1545-1563). Na primeira metade do século
XVIII, os bispos brasileiros se empenharam em implantar a reforma intelectual e
moral do clero, determinada pelo Concílio, que finalmente chegava às terras
coloniais.
Entre as medidas adotadas pelo episcopado
para disciplinar o clero colonial estavam o controle sobre quem deveria ou não
ser ordenado padre; a instituição de preleções para moralizar o clero
(Conferências de Moral); o controle rigoroso sobre quem rezava missas e ouvia
confissões; a criação de seminários; visitas às dioceses para identificar
pecados de padres e de fiéis; e a perseguição aos solicitantes – cujo
julgamento estava a cargo da Inquisição portuguesa, por meio do Tribunal de
Lisboa. De acordo com a documentação inquisitorial guardada no Arquivo Nacional
da Torre do Tombo, em Lisboa, 503 mulheres denunciaram 425 padres por
solicitação no Brasil, entre 1610 e 1810. Das 288 denúncias cujas datas foram
determinadas, 216 (75%) ocorreram entre 1730 e 1760, período em que o
episcopado realizou várias ações reformadoras. Em 228 delas, fica clara a intervenção
de outros confessores, que perguntam às mulheres se houve assédio e as obrigam
a denunciar os padres que cometeram o delito. Mas apenas 14 denúncias foram
redigidas pelas solicitadas, pois, como a maioria das mulheres era analfabeta,
muitos padres escreviam as denúncias para os Comissários do Santo Ofício.
As penas estabelecidas para os padres, de
acordo com o Regimento de 1640, eram a abjuração – o reconhecimento do erro –,
a suspensão da ordenação por cerca de oito anos, o degredo para fora do bispado
onde o delito fora praticado e um ou dois anos de prisão com obrigação de
assistir a preleções e estudar a doutrina católica, além de jejuns e
penitências.
Pela quantidade de padres denunciados –
que provavelmente não chegava nem perto do número dos que efetivamente
cometeram o delito –, nota-se que a ameaça de punição não bastou para coibir a
solicitação. Muitas vezes, as mulheres eram responsabilizadas pelo desvio de
conduta dos párocos, transformados em vítimas da tentação feminina. Os solicitantes,
para se defender, se valiam de representações da mulher derivadas de um modelo
estabelecido pelo cristianismo: elas só podiam ser Marias ou Evas, santas ou
pecadoras. Esse modelo, além de servir para classificar as mulheres,
justificava as agressões àquelas que eram acusadas de falta de pudor, de
virtude ou de modéstia, identificadas com Eva.
No caso do padre José Correia de Queirós,
um ano depois de ter sido acusado, ele escreveu uma carta ao mesmo Comissário
que recebera a denúncia, dando a sua versão dos fatos. Ele contou que fora
desobrigar na casa de Antônio Francisco de Barros – porque ele morava longe –,
e que lá “se achava uma mulher casada a qual vivia com bastante lassidão nos
costumes contra a castidade”. Assim, “pela fragilidade humana, e com alguma
inadvertência”, cometeu a “ação desonesta” de tocar em suas “partes pudendas”.
Ao cair em si, ele admitiu ter sofrido um “sumo pesar”, e só demorou a se
confessar diante do Santo Ofício por viver em um lugar distante e se encontrar
enfermo.
O problema é que o modelo de comportamento
feminino ideal, representado por Maria, era incompatível com a vida cotidiana
daquelas que trabalhavam para sobreviver, sem a tutela masculina. Só poderia
ser aplicado às mulheres abastadas, que viviam reclusas em suas propriedades e
dependiam de seus pais ou maridos. Esse padrão de identidade feminina, vindo da
Europa, tornou-se mais complexo na Colônia, pelo peso que a etnia adquiria numa
sociedade em que havia a escravização de índios e africanos. Índias, negras e
outras mulheres pobres eram alvos fáceis para as investidas dos solicitantes,
embora as de melhor condição social não estivessem totalmente imunes.
Outro exemplo aconteceu com a parda forra
Ana Maria dos Serafins. O confessor não mediu palavras para tentar obter o que
queria, mas ela repeliu as insinuações do padre Bento de Souza Alvares alegando
que viera “lavar-se dos seus pecados dos quais se arrependia”. O vigário
insistiu para que Ana Maria “deixasse o arrependimento para a hora da morte”,
pois “tinha maiores culpas”, e “se animou a querer-lhe levantar a saia”,
aproveitando o fato de a igreja estar vazia. Desvencilhando-se, a mulher fugiu
para a rua. O padre a seguiu, tornou a pegá-la, e tentou levantar sua saia
enquanto ambos desciam a ladeira do Convento de São Francisco do Rio de
Janeiro, no qual ficava a Capela dos terceiros, onde Ana Maria fora se
confessar.
Os casos de abusos são incontáveis. Frei
Euzébio Xavier de Gouveia chegou a dizer à escrava negra Joana que tanto fazia “casar
donzela quanto já corrupta”, enquanto agarrava seus seios. Na Bahia, o padre
Pedro da Silva costumava perguntar às penitentes se elas tinham “vaso grande ou
pequeno”. Já idoso, ele foi descrito por uma das solicitadas como sendo cego e
desdentado. Por não ter acesso fácil às mulheres, ele se saciava,
perversamente, fazendo-lhes perguntas constrangedoras.
Quando se apresentou ao comissário do
Santo Ofício de Pernambuco, em 1760, para confessar o abuso de seis mulheres, o
padre José Pereira Afonso se explicou dizendo que os confessores não
solicitavam mulheres na confissão e só deviam “cuidar e fugir para elas os não
perseguir e solicitar a eles”. O religioso ainda afirmou que as coisas não eram
assim na Europa, “por viverem as mulheres com mais recato e não haver tanta
solidão, nem escravos que no Brasil são a perdição das casas”.
O capelão padre Bento Ferreira foi outro
religioso que passou das medidas. Assim que ouviu a confissão de Thereza
Antônia, preta forra, em 1740, na vila de São João Del Rey, em Minas Gerais,
ele lhe disse, antes de absolvê-la, que “lhe queria dar um bocado”, ou seja,
ter com ela atos desonestos, na linguagem das negras da Colônia, como explica o
próprio documento. Thereza assentiu, e o padre lhe pediu que passasse a noite
com ele. A escrava disse que não podia, “mas que tornaria em outra ocasião”.
Padre Bento então se levantou, sem lhe dar a absolvição, e foi rezar a missa.
Depois da cerimônia, deu o certificado de desobriga a todos os presentes, menos
a Thereza, que chamou à sacristia, levando consigo o tinteiro. A mulher pensou
que iria receber a certidão, da qual necessitava para provar que estava
desobrigada, mas, em vez disso, o confessor a incitou à cópula carnal,
praticada ali mesmo.
A obrigatoriedade anual da confissão
durante a Quaresma – determinada pelo IV Concílio de Latrão (1215) – permitia
que o clero tivesse um controle constante sobre o comportamento de seu rebanho.
Os fiéis também eram estimulados a se confessar pela necessidade de absolvição
dos pecados para a salvação da alma. Ao profanar esse importante sacramento, a
solicitação comprometia o sucesso do movimento reformador inspirado pelo
Concílio de Trento. Era preciso, antes de tudo, fazer com que os padres do
século XVIII abandonassem valores, hábitos e comportamentos que iam contra a
moralização de costumes pregada até hoje pela Igreja, mas nem sempre praticada.
Lana Lage da Gama Lima é professora
da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro e autora da tese “A
confissão pelo avesso: o crime de solicitação no Brasil Colonial” (USP, 1990).
Saiba Mais - Bibliografia
GORENSTEIN, LINA e
CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Ensaios sobre a Intolerância – Inquisição,
marranismo e anti-semitismo. São Paulo: Editora Humanitas-FFLCH/USP, 2002.
VAINFAS, Ronaldo. Trópico
dos Pecados – Moral, Sexualidade e Inquisição no Brasil. Rio de Janeiro:
Editora Campus, 1989.
SOUZA, Laura de Mello
e. O Diabo e a Terra de Santa Cruz – Feitiçaria e religiosidade popular
no Brasil Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
Saiba Mais - Link
Saiba Mais - Filme
Desmundo
Baseado no livro da
romancista Ana Miranda e dirigido pelo paulista Alain Fresnot, a narrativa
traça um retrato do Brasil colonial visto sob o ponto de vista feminino: no
caso, o de Oribela (Simone Spoladore).
Jovem portuguesa, Oribela
veio para o Brasil junto com um grupo de órfãs trazidas para cá pelo projeto da
monarquia lusitana de oferecer esposas brancas aos colonos, que há tempos se
miscigenavam com as índias.
Na época, essa era uma
situação completamente desfavorável às mulheres, mesmo às europeias. Afinal,
naqueles dias elas valiam menos do que as mulas e tinham menos direito a
exercer a própria vontade. Como gado, seus dentes e dotes físicos eram
examinados e elas eram arrematadas como num leilão.
Muito devota, mas disposta
a tentar algum tipo de escolha, Oribela rejeita com uma cusparada o primeiro e
bruto pretendente (Cacá Rosset). Com Francisco (Osmar Prado), ela já é mais
conivente, ainda mais que ele se comporta, em princípio, com mais civilidade.
Instalada na remota
propriedade do marido com uma sogra estranha (Berta Zemel), uma cunhada
deficiente e uma clara insinuação de incesto, Oribela tenta a fuga com a ajuda
de um comerciante judeu, Ximeno (Caco Ciocler).
Direção: Alain Fresnot
Duração: 99 min
Áudio: Português + Legenda
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