Um aventureiro ajudou a transformar a economia global, passando o
monopólio mundial da borracha para as mãos da Inglaterra.
Na história
da geopolítica internacional, costumam figurar apenas os nomes dos grandes
governantes e diplomatas. Henry Wickham não foi um deles. Ainda assim, esse
personagem ajudou a transformar a produção mundial da borracha, influenciando as
relações internacionais e a hegemonia econômica do século XX.
Ao trocar um pneu de carro ou vestir uma
capa de chuva, estamos lidando com alguns dos mais de 50 mil derivados da
borracha, matéria-prima absolutamente indispensável na cadeia produtiva de
quase todos os setores econômicos. Para atingir esse sucesso, iniciado na
esteira da revolução industrial, a borracha trilhou percursos tortuosos. Há
pouco mais de cem anos, o monopólio da produção concentrava-se na Amazônia,
região responsável por fornecer quase 100% da demanda global na época –
principalmente para os países industrializados que, por sua vez, buscavam uma
maneira de neutralizar esse domínio.
Foram cinco décadas de hegemonia amazônica
antes daquele empreendimento borracheiro desmoronar, superado pela crescente
produção no Sudeste asiático. Na ordem do dia, então, passaram a ser debatidas
questões sobre a soberania nacional, em particular a proteção do patrimônio
biológico, e uma reavaliação do modelo de desenvolvimento praticado pelo
Brasil, que ao longo da história sempre se valera do extrativismo e da
exportação de produtos naturais – café, minérios, açúcar, borracha.
Wickham teve papel ativo nessa história.
Ele foi responsável pelo contrabando de 70 mil sementes de seringueiras, parte
das quais seriam plantadas com êxito no Jardim Botânico Real de Londres (Kew
Gardens) e depois transferidas, em mudas, para as colônias britânicas no
Sudeste asiático.
Henry Alexander Wickham nasceu em 1846, ao
norte de Londres. Aos 20 anos, viajou para a Nicarágua à procura de plumas para
fornecer à chapelaria de sua mãe. Foi a primeira viagem de muitas que faria à
América Latina, anotando em um diário suas impressões sobre a região. Nesse
diário, ele já levantava a possibilidade de um empreendimento borracheiro. O
império britânico estava em expansão: o reinado da rainha Vitória (1837-1901)
estabeleceu uma política de crescimento econômico, colonização e aumento da
presença militar em seus domínios além-mar. Esse cenário representava, para Wickham
e outros cidadãos ingleses, uma crescente chance de almejar fama e fortuna em
empreendimentos e descobertas, com ou sem o aval do governo britânico.
A borracha era necessária à revolução
industrial, que estava a todo vapor na Inglaterra. O então diretor de Kew
Gardens, Joseph Hooker, tomou conhecimento do diário do jovem Henry. Em Rough
Notes, Wickham já discursava sobre os limites e as possibilidades de
produzir borracha em massa. Hooker ofereceu a ele 10 libras para cada mil
sementes de seringueira coletadas. Mesmo sem garantia ou remuneração adiantada,
Wickham se animou com a proposta e convocou esposa, mãe, irmã e irmão para se
engajarem em um empreendimento nas cercanias de Santarém, Pará, onde
estabelecera um sítio. Para alguns de sua família o destino não foi feliz: sua
mãe, sua irmã e a sogra do irmão faleceram, provavelmente por doenças
tropicais, sucumbindo ao clima amazônico.
As perdas familiares não afastaram Wickham
de seu projeto. Em troca de migalhas, indígenas e caboclos o ajudaram a
coletar, próximo ao rio Tapajós, as almejadas sementes. Elas eram
acondicionadas em uma embalagem especial e sigilosa – para não estragarem
durante a longa viagem marítima e para não serem detectadas pelas autoridades
brasileiras. O governo havia estabelecido fiscalizações alfandegárias
salpicadas pela Amazônia. Wickham escapou de uma inspeção mais rigorosa graças
ao então cônsul inglês na região, que conseguiu liberar o barco Amazonas, da
linha Liverpool-Manaus. Para a sorte de Wickham, a embarcação sofrera uma
desventura ao ter sua carga original roubada, dando assim espaço para o envio
das sementes à Inglaterra.
No final do século XIX, a Amazônia mal
sabia que a festa da borracha estava chegando ao fim. Manaus usufruía de uma
vida de dar inveja até aos europeus que gozavam seu período Belle
Époque. A opulência de Manaus ostentava o Teatro Amazonas, calçadas
alinhadas, parques chiques, bonde elétrico e outros apetrechos semelhantes aos
das cidades europeias. Os barões da borracha tinham vida tão luxuosa que
mandavam suas roupas para a Europa a fim de serem lavadas.
Graças as 70 mil sementes traficadas por
Wickham, as colônias britânicas da Ásia em pouco tempo teriam suas plantações.
E em 1919 seriam responsáveis por 95% da demanda global de borracha. A Amazônia
não teve fôlego para enfrentar a competição. Seu esquema de extração e
comercialização da borracha – à base de patrões, regatões, isto é, comerciantes
da Amazônia que praticavam preços abusivos, e trabalho semiescravo – explorava
e endividava os seringueiros, responsáveis pela extração desse recurso natural.
Os preços inflacionados inviabilizavam o modelo extrativista diante do
capitalismo mais eficiente do império britânico.
Embora também se valessem da exploração de
mão de obra barata imposta aos súditos colonizados, os ingleses se
diferenciavam dos brasileiros pela rapidez e expansão do processo produtivo.
Afinal, eram os líderes da revolução industrial. Seus métodos alcançavam grande
produtividade e, por consequência, preços baixos. Em seu habitat natural, a
seringueira tem uma ocorrência de aproximadamente um espécime por hectare (o
tamanho de um campo de futebol). Na Ásia, foi cultivada em fileiras,
concentrada em plantações. Os seringais britânicos vingaram, produzindo látex
em abundância.
Embora não fosse bem sucedido na maioria
de seus negócios, Wickham não desanimou e viu na borracha uma oportunidade rara
de enriquecer. Diante do sucesso da empreitada britânica na Ásia, reivindicou
seus merecidos louros. Não teve a pompa que esperava. O reconhecimento tardou
quase quatro décadas, mas veio em vida: em 1920, foi condecorado “Sir” pelo Rei
George V. Nada muito além disso. Segundo algumas fontes, ele recebeu uma mísera
pensão e alguns brindes. Sua esposa, Violet, que ficara ao seu lado por muito
tempo, abandonou-o. Os botânicos profissionais de Kew Gardens o consideravam um
amador aventureiro e desprezaram seus esforços.
Após a Amazônia, seu espírito desnorteado
e aventureiro levou-o para a Nova Guiné e a Austrália, onde sofreu outro
fracasso. Nunca chegou a se estabelecer economicamente em definitivo. Morreu em
1928, talvez sem se dar conta de que integrara, de fato, uma enorme lista de
“peões” sem muita expressão nos investimentos britânicos além-mar. Foi mais um personagem
secundário de um longo processo de troca e roubo de espécies biológicas para
fins lucrativos, que remonta à era colonial e existe ainda hoje. Para o
historiador norte-americano Alfred Cosby, trata-se de imperialismo ecológico,
que atualmente assume a forma de produtos farmacêuticos, grande parte deles
derivados de plantas. A mesma Amazônia que revelou ao mundo os potenciais da
borracha abriga em sua rica biodiversidade outras incontáveis (e desconhecidas)
matérias-primas, que podem interessar a diversas indústrias. Continuam em voga
questões de soberania nacional e, mais recentemente, alguns grupos indígenas
vêm alcançando o reconhecimento de seu direito ao uso do patrimônio natural que
manejam há milênios. O império da vez são as megacorporações internacionais.
Vilão, cavaleiro em missão nobre a serviço
da coroa britânica, oportunista? Seja como for, Wickham foi peça-chave de um
processo histórico que se enquadra na espoliação colonial e na globalização.
Suas ações, ainda hoje, renderiam grande polêmica.
Louis Carlos Forline é professor de antropologia da Universidade de Nevada e
pesquisador visitante no Museu Paraense Emílio Goeldi.
Saiba Mais - Bibliografia
SANTOS, Roberto. História
econômica da Amazônia (1800-1920). São Paulo: T. A. Queiroz, 1980.
WEINSTEIN, Bárbara. A
Borracha na Amazônia: Expansão e Decadência. São Paulo: Edusp, 1993.
BENTES, Rosineide. A
apropriação ecológica de seringais na Amazônia e a advocacia das Rubber
Plantations. Revista de História, 151 (2), p. 115-150, 2004.
LEONARDI, Victor. Os
historiadores e os rios: natureza e ruína na Amazônia brasileira. Brasília:
Paralelo 15, Editora Universidade de Brasília, 1999.
Saiba Mais – Link
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