“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

segunda-feira, 11 de julho de 2016

Rochas de livres prazeres

Ao registrarem práticas sexuais variadas em suas pinturas rupestres, nossos ancestrais demonstram que lidavam naturalmente com o corpo e os desejos.
     Mais de 1.300 sítios arqueológicos já foram encontrados no Parque Nacional Serra da Capivara, em São Raimundo Nonato, Piauí. Desses, 900 contêm cenas rupestres, com representações dos afazeres cotidianos dos grupos que ali viveram no mínimo há 12 mil anos atrás. Gravadas nas rochas, há cenas de caçadas, lutas sociais, rituais e relações humanas diversas. Inclusive as sexuais.
     Entre as representações rupestres aparecem figuras humanas exibindo-se individualmente, com destaque para seus falos. Os caçadores e coletores praticavam suas relações sexuais, parece-nos, de forma um tanto livre de certos padrões ditos morais, de acordo com as representações vistas nas cenas rupestres. As cenas mostram diversas posições de sexo, envolvendo duplas, trios ou grupos maiores numa mesma ação. Há também ocasiões mais “românticas”, como a representação de um beijo. Tais sentimentos e desejos não são privilégios exclusivos dos corpos e mentes de hoje. Nossos ancestrais também os vivenciaram, como sugerem os vestígios que deixaram.
     Infelizmente ainda existem manuais didáticos escolares que consideram a História do Brasil apenas a partir de 1500, com a chegada dos portugueses. Em alguns casos, para se remeter ao período anterior, fala-se de “pré-história brasileira”, numa abordagem claramente eurocêntrica, que dá pouco ou nenhum relevo à longa experiência dos povos presentes no continente. Os homens e as mulheres da suposta “pré-história” viveriam em cavernas, vestidos com peles de animais, em alguns casos cobrindo aquelas que consideramos suas “partes íntimas”. É como se estivessem fora da história, num período que seria o prelúdio do desenvolvimento humano, no qual não existiria nada a não ser uma luta instintiva pela sobrevivência.
     Estudos desenvolvidos por arqueólogos brasileiros como Niède Guidon subvertem a concepção de “pré-história”. Ao focalizar a presença humana no continente e trazer ao debate a produção material e cultural dos povos ancestrais – com base em análise de suas artes rupestres, cerâmicas, instrumentos musicais, ossadas e códigos de DNA, entre outros vestígios – eles apontam para a compreensão de outra História. Quem sabe a História Antiga do Brasil, ou a História Ancestral do Brasil.
     Há 200 mil anos, os nossos ancestrais tinham as mesmas condições físicas e mentais que compartilhamos hoje, e empregavam os meios à sua disposição para realizar diferentes ações sociais, culturais, políticas e interpessoais, assim como fazemos atualmente. Sua vida social era mais elaborada do que se imaginava. Demonstram grande desenvoltura para o lazer, o prazer e para práticas hoje consideradas saudáveis, como caminhar, dançar e brincar. 
     As muitas cenas com representações do sexo nas pinturas rupestres do Parque Nacional da Serra da Capivara revelam que a sexualidade não era algo reprimido ou escondido, pois todos os membros dos grupos de caçadores e coletores da época tinham acesso àquelas cenas, feitas por eles mesmos ou por seus ancestrais. É possível identificar representações dos órgãos genitais femininos (vulva) e masculinos (falos eretos). Quando há representações de mãos voltadas para trás, são sinalizações de cenas femininas ou com mulheres. 
     O sexo, para aqueles grupos, devia ser considerado uma prática natural e prazerosa. Dificilmente estava submetido a excessivas restrições ou tabus religiosos. O mesmo se observa entre outros grupos de caçadores e coletores, inclusive os atuais. A sexualidade é compreendida de modo diferente por essas sociedades. Pintores antigos, tanto brasileiros quanto africanos, mostravam as cópulas humanas em posições variadas e com certo realismo. Nas pinturas rupestres africanas, especialmente na região abaixo do deserto do Saara, há uma série de representações de homens mascarados com seus falos eretos prestes a penetrarem as mulheres já em posição ginecológica. 
     A sexualidade é uma temática bastante recorrente nas cenas de pinturas rupestres da Tradição Nordeste, uma das tradições estilísticas de pinturas da região piauiense não somente na Serra da Capivara, mas também em outros locais do país, como no interior da Bahia e no Rio Grande do Norte. Na região de sua abrangência, inclusive em São Raimundo Nonato, além das representações do sexo entre humanos, há cenas de sexo com animais, o que chamamos atualmente de “zoofilia”. Cenas que aparecem também nos vestígios de outros povos do mundo.
     É válido considerar que nas cenas de “excitação” coletiva os falos representavam “espadas”, ou seja, simbolizavam poderio e força. Já a cena do beijo sugere que a boca se desenvolveu como importante zona erótica ao longo de toda a vida humana. 
     Filósofos como Thomas Hobbes e Jean-Jacques Rousseau consideravam “selvagens” os homens das terras distantes da África, América e Ásia. Assim, segundo Hobbes, eles seriam incapazes de construir laços de amor, além de levarem uma vida sem ofício ou arte. Essa ideia se perpetuou através dos escritos de muitos ocidentais, mas já se comprovou que havia sim trabalho, amor e vida social entre esses grupos ancestrais, como evidenciam as pinturas e outros vestígios deixados pelos primeiros ocupantes das terras brasilis.
     Nas pinturas rupestres da Serra da Capivara há cenas de danças feitas com tamanha desenvoltura plástica que demonstram certa sensualidade. Algumas cenas de sexo grupal, com animais ou ainda, supostamente, com humanos “menores”, nos remetem a um período sem as restrições morais e éticas da tradição religiosa judaico-cristã. Um período em que os ritmos e as energias da vida humana se harmonizavam com os da natureza.

Michel Justamand é professor da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) de Benjamin Constant e autor de A mulher rupestre. Representações do feminino nas cenas rupestres de São Raimundo Nonato – PI (Alexa Cultural, 2014).

Saiba mais – Bibliografia
 GUIDON, Niède. “As ocupações pré-históricas do Brasil”. In: CUNHA, Manuela Carneiro da. História dos índios no Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1998.
MARTIN, Gabriela. “A tradição nordeste na arte rupestre do Brasil”. Revista Clio, nº 14. Série Arqueológica. Anais da X Reunião Científica da Sociedade de Arqueologia Brasileira. Recife: EDUFPE, 2000.
PESSIS, Anne-Marie. Imagens da Pré-História. Parque Nacional Serra da Capivara. São Raimundo Nonato: FUMDHAM, 2003.
PINKER, Steven. Tábula rasa: a negação contemporânea da natureza humana. Trad. Laura Teixeira Motta. São Paulo: Cia. das Letras, 2004

Saiba mais – link

Saiba mais – Filmes
A Guerra do Fogo
O filme retrata um período na pré-história e dois grupos de hominídeos. O primeiro, que quase não se diferencia dos macacos por não ter fala e se comunicar através de gestos e grunhidos, é pouco evoluído e acha que o fogo é algo sobrenatural por não dominarem ainda a técnica de produzi-lo; o outro grupo é mais evoluído e tem uma comunicação e hábitos mais complexos, como a habilidade de fazer o fogo. Esses dois grupos entram em contato quando o fogo da primeira tribo é apagado em uma guerra com uma tribo de hominídeos mais primitivos, que disputam a posse do fogo e do território. Noah, Gaw e Amoukar (membros do primeiro grupo) são destacados então para uma jornada para trazer uma nova chama acesa para a tribo. Nesse caminho deparam-se com um grupo de canibais, e resgatam de lá Ika, uma mulher pertencente ao grupo mais evoluído. Do contato com essa mulher, os três caçadores do fogo aprendem muitas coisas novas, já que ela domina um idioma muito mais elaborado que o deles, assim como domina também a técnica de produção do fogo. Levados por diversas circunstâncias a um encontro com a tribo de Ika, percebem que há uma maneira diferente de viver; observam as diferentes formas de linguagem, o sorriso, a construções de cabanas, pintura corporais, o uso de novas ferramentas, e, um modo diferente de reprodução.
Direção: Jean Jacques Annaud
Duração: 100 minutos
Ano: 1981
Áudio: Legendado

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