Ao registrarem práticas sexuais variadas em suas pinturas rupestres,
nossos ancestrais demonstram que lidavam naturalmente com o corpo e os desejos.
Mais de
1.300 sítios arqueológicos já foram encontrados no Parque Nacional Serra da
Capivara, em São Raimundo Nonato, Piauí. Desses, 900 contêm cenas rupestres,
com representações dos afazeres cotidianos dos grupos que ali viveram no mínimo
há 12 mil anos atrás. Gravadas nas rochas, há cenas de caçadas, lutas sociais,
rituais e relações humanas diversas. Inclusive as sexuais.
Entre as representações rupestres aparecem
figuras humanas exibindo-se individualmente, com destaque para seus falos. Os
caçadores e coletores praticavam suas relações sexuais, parece-nos, de forma um
tanto livre de certos padrões ditos morais, de acordo com as representações
vistas nas cenas rupestres. As cenas mostram diversas posições de sexo,
envolvendo duplas, trios ou grupos maiores numa mesma ação. Há também ocasiões
mais “românticas”, como a representação de um beijo. Tais sentimentos e desejos
não são privilégios exclusivos dos corpos e mentes de hoje. Nossos ancestrais
também os vivenciaram, como sugerem os vestígios que deixaram.
Infelizmente ainda existem manuais
didáticos escolares que consideram a História do Brasil apenas a partir de
1500, com a chegada dos portugueses. Em alguns casos, para se remeter ao
período anterior, fala-se de “pré-história brasileira”, numa abordagem
claramente eurocêntrica, que dá pouco ou nenhum relevo à longa experiência dos
povos presentes no continente. Os homens e as mulheres da suposta
“pré-história” viveriam em cavernas, vestidos com peles de animais, em alguns
casos cobrindo aquelas que consideramos suas “partes íntimas”. É como se
estivessem fora da história, num período que seria o prelúdio do
desenvolvimento humano, no qual não existiria nada a não ser uma luta
instintiva pela sobrevivência.
Estudos desenvolvidos por arqueólogos
brasileiros como Niède Guidon subvertem a concepção de “pré-história”. Ao
focalizar a presença humana no continente e trazer ao debate a produção
material e cultural dos povos ancestrais – com base em análise de suas artes
rupestres, cerâmicas, instrumentos musicais, ossadas e códigos de DNA, entre
outros vestígios – eles apontam para a compreensão de outra História. Quem sabe
a História Antiga do Brasil, ou a História Ancestral do Brasil.
Há 200 mil anos, os nossos ancestrais
tinham as mesmas condições físicas e mentais que compartilhamos hoje, e
empregavam os meios à sua disposição para realizar diferentes ações sociais,
culturais, políticas e interpessoais, assim como fazemos atualmente. Sua vida
social era mais elaborada do que se imaginava. Demonstram grande desenvoltura
para o lazer, o prazer e para práticas hoje consideradas saudáveis, como
caminhar, dançar e brincar.
As muitas cenas com representações do sexo
nas pinturas rupestres do Parque Nacional da Serra da Capivara revelam que a
sexualidade não era algo reprimido ou escondido, pois todos os membros dos
grupos de caçadores e coletores da época tinham acesso àquelas cenas, feitas
por eles mesmos ou por seus ancestrais. É possível identificar representações
dos órgãos genitais femininos (vulva) e masculinos (falos eretos). Quando há
representações de mãos voltadas para trás, são sinalizações de cenas femininas
ou com mulheres.
O
sexo, para aqueles grupos, devia ser considerado uma prática natural e
prazerosa. Dificilmente estava submetido a excessivas restrições ou tabus
religiosos. O mesmo se observa entre outros grupos de caçadores e coletores,
inclusive os atuais. A sexualidade é compreendida de modo diferente por essas
sociedades. Pintores antigos, tanto brasileiros quanto africanos, mostravam as
cópulas humanas em posições variadas e com certo realismo. Nas pinturas
rupestres africanas, especialmente na região abaixo do deserto do Saara, há uma
série de representações de homens mascarados com seus falos eretos prestes a
penetrarem as mulheres já em posição ginecológica.
A sexualidade é uma temática bastante
recorrente nas cenas de pinturas rupestres da Tradição Nordeste, uma das
tradições estilísticas de pinturas da região piauiense não somente na Serra da
Capivara, mas também em outros locais do país, como no interior da Bahia e no
Rio Grande do Norte. Na região de sua abrangência, inclusive em São Raimundo
Nonato, além das representações do sexo entre humanos, há cenas de sexo com
animais, o que chamamos atualmente de “zoofilia”. Cenas que aparecem também nos
vestígios de outros povos do mundo.
É válido considerar que nas cenas de
“excitação” coletiva os falos representavam “espadas”, ou seja, simbolizavam
poderio e força. Já a cena do beijo sugere que a boca se desenvolveu como
importante zona erótica ao longo de toda a vida humana.
Filósofos como Thomas Hobbes e Jean-Jacques
Rousseau consideravam “selvagens” os homens das terras distantes da África,
América e Ásia. Assim, segundo Hobbes, eles seriam incapazes de construir laços
de amor, além de levarem uma vida sem ofício ou arte. Essa ideia se perpetuou
através dos escritos de muitos ocidentais, mas já se comprovou que havia sim
trabalho, amor e vida social entre esses grupos ancestrais, como evidenciam as
pinturas e outros vestígios deixados pelos primeiros ocupantes das terras
brasilis.
Nas pinturas rupestres da Serra da Capivara
há cenas de danças feitas com tamanha desenvoltura plástica que demonstram
certa sensualidade. Algumas cenas de sexo grupal, com animais ou ainda,
supostamente, com humanos “menores”, nos remetem a um período sem as restrições
morais e éticas da tradição religiosa judaico-cristã. Um período em que os
ritmos e as energias da vida humana se harmonizavam com os da natureza.
Michel Justamand é
professor da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) de Benjamin Constant e
autor de A mulher rupestre. Representações do feminino nas cenas rupestres de
São Raimundo Nonato – PI (Alexa Cultural, 2014).
Saiba mais – Bibliografia
GUIDON, Niède. “As
ocupações pré-históricas do Brasil”. In: CUNHA, Manuela Carneiro da. História
dos índios no Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1998.
MARTIN, Gabriela. “A
tradição nordeste na arte rupestre do Brasil”. Revista Clio, nº 14. Série
Arqueológica. Anais da X Reunião Científica da Sociedade de Arqueologia
Brasileira. Recife: EDUFPE, 2000.
PESSIS, Anne-Marie.
Imagens da Pré-História. Parque Nacional Serra da Capivara. São Raimundo
Nonato: FUMDHAM, 2003.
PINKER, Steven. Tábula
rasa: a negação contemporânea da natureza humana. Trad. Laura Teixeira Motta.
São Paulo: Cia. das Letras, 2004
Saiba mais – link
Saiba mais – Filmes
A Guerra do
Fogo
O filme
retrata um período na pré-história e dois grupos de hominídeos. O primeiro, que
quase não se diferencia dos macacos por não ter fala e se comunicar através de
gestos e grunhidos, é pouco evoluído e acha que o fogo é algo sobrenatural por
não dominarem ainda a técnica de produzi-lo; o outro grupo é mais evoluído e
tem uma comunicação e hábitos mais complexos, como a habilidade de fazer o fogo.
Esses dois grupos entram em contato quando o fogo da primeira tribo é apagado
em uma guerra com uma tribo de hominídeos mais primitivos, que disputam a posse
do fogo e do território. Noah, Gaw e Amoukar (membros do
primeiro grupo) são destacados então para uma jornada para trazer uma nova
chama acesa para a tribo. Nesse caminho deparam-se com um grupo de canibais, e
resgatam de lá Ika, uma mulher pertencente ao grupo mais evoluído.
Do contato com essa mulher, os três caçadores do fogo aprendem muitas coisas
novas, já que ela domina um idioma muito mais elaborado que o deles, assim como
domina também a técnica de produção do fogo. Levados por diversas
circunstâncias a um encontro com a tribo de Ika, percebem que há
uma maneira diferente de viver; observam as diferentes formas de linguagem, o
sorriso, a construções de cabanas, pintura corporais, o uso de novas
ferramentas, e, um modo diferente de reprodução.
Direção: Jean Jacques
Annaud
Duração: 100 minutos
Áudio: Legendado
Alimento um Obí.
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