Ao mobilizar as massas em torno do processo eleitoral, o voto obrigatório
contribui para que os políticos levem em conta todos os segmentos sociais.
Nessa babel da reforma política, o fim da
obrigatoriedade do voto, que segundo pesquisa de opinião recente conta com o
apoio de 61% dos cidadãos, é um dos pontos sempre lembrados e debatidos. A
proposta é apresentada, geralmente, como necessária para aumentar a qualidade
de nossos políticos, embora não haja qualquer estudo que sustente este
raciocínio. A argumentação é simplista: o eleitor que é obrigado a votar faz
sua escolha sem real motivação, assim abre brecha para o aparecimento de
supostas aberrações. Ou seja, se votassem somente os interessados na política,
os bem informados, os mais estudados ou, talvez, os mais ricos, teríamos uma
classe política de melhor nível.
O voto compulsório, contudo, não é novidade
e nem uma exclusividade brasileira. Há registros de que a Grécia antiga já
determinava que o cidadão deveria necessariamente se manifestar “com o fito de
prevenir os perigos da inação e indiferença”. Austrália, Bélgica, Argentina e
Uruguai são exemplos de democracias contemporâneas que adotam o voto
compulsório. No Brasil, desde 1932 há obrigatoriedade de inscrição dos
eleitores e do voto.
A exigência não é do voto em si, mas da
mobilização em torno do processo eleitoral a cada dois anos. O eleitor não é
obrigado a escolher um candidato: ele tem a opção de anular ou votar em branco.
O cidadão que está fora de seu domicílio eleitoral, por sua vez, pode
justificar sua ausência por meio de um simples formulário. Não podendo
justificar, resta ainda a alternativa de pagar uma multa irrisória de R$ 3,50,
sem contar as frequentes anistias dadas aos faltosos. Com esta série de
alternativas pouco custosas do ponto de vista financeiro ou prático para não
votar, a obrigação acaba sendo mais simbólica do que real.
O argumento de que votar é um direito, e
não um dever, é simplificador. Por conta das leis do Estado, nossa vida
coletiva nos força a várias coisas: registro civil, vacinação, educação
fundamental, alistamento militar. Por serem fundamentais à vida em sociedade,
são deveres aos quais não podemos fugir. Por que então o voto não pode ser mais
um deles?
Há outras razões fortes para promover a
participação da população em eleições. Grande parte dela, particularmente os
mais pobres, esteve sempre alijada do processo eleitoral no Brasil, não somente
nos períodos ditatoriais, mas também nos democráticos. Na eleição de 1933, por
exemplo, apenas 3,3% da população do país votaram. Em 1945, com a volta da
democracia, foram parcos 13,4%. Em 1962, na última eleição anterior ao golpe
militar, só 20% dos brasileiros foram às urnas. Somente com o fim da proibição
do voto do analfabeto as massas foram definitivamente incorporadas ao processo
eleitoral. E isso só aconteceu na Nova República, em 1985.
Em países onde o voto é facultativo, mesmo
em democracias maduras como a norte-americana e a francesa, as taxas de
abstenção preocupam especialistas, políticos e democratas em geral. Na França,
o não voto chega a quase 50% durante as eleições europeias, regionais,
“cantonais”, legislativas e municipais. E essa ausência nas urnas não se
distribui de maneira igual entre as gerações e as classes sociais francesas. Os
mais velhos votam quase duas vezes mais que os jovens. Profissionais que ocupam
melhores posições no mercado de trabalho têm maior presença. Isto sugere que
algumas camadas da sociedade acabam não participando do processo eleitoral.
A sub-representação de determinados
segmentos da população em um sistema com altas taxas de abstenção pode ser
explicada a partir de um axioma: todo político busca permanecer no poder, seja
pessoalmente, ou por meio de seu partido. Na democracia, esse esforço passa
pelo voto, e para manter-se no cargo, o político deve continuar a ser escolhido
pelas urnas. Se os eleitores de um candidato desejam X e ele, ao longo de seu
mandato, faz Y, os eleitores tenderão a escolher outra opção que prometa ou que
já esteja fazendo X. O efeito colateral positivo desse axioma é uma defesa dos
cidadãos em face dos escassos instrumentos de controle sobre os políticos: o
político profissional, que vive para a política, como diria o sociólogo alemão
Max Weber (1864-1920), não pode perder de vista seus eleitores.
Para que um político possa continuar
exercendo seus mandatos, ele precisa observar os desejos de quem vota. Esta
argumentação, bastante óbvia, também vale para cargos no Poder Executivo. Um
candidato à Presidência, de direita ou de esquerda, faz promessas e exerce seu
mandato com vistas a atender um amplo leque de eleitores. Como todos votam –
ricos, pobres, negros, brancos, jovens e idosos – um presidente pode até dar
ênfase a alguns segmentos, mas não pode ignorar os outros.
Mesmo candidatos mais conservadores fazem
promessas voltadas para os mais pobres, já que estes são a maioria dos
eleitores. Se um segmento da população deixasse de votar, perdendo sua
expressividade numérica no processo eleitoral, não seria racional para o
político levar em consideração as questões relativas a este grupo. E em países
onde o voto não é obrigatório, são os mais pobres que deixam de votar – com
exceção da Índia.
Há evidências empíricas fortes de que o
voto obrigatório está correlacionado com uma melhor distribuição de renda, como
mostra trabalho feito por Alberto Chong e Maurício Oliveira para o Banco
Interamericano. Mantendo esta tendência no Brasil, em caso do fim do voto
compulsório, o provável seria que os mais pobres, justamente aqueles que mais
precisam ser alcançados pelas políticas públicas, fossem menos considerados em
futuros governos.
Em tempos de “negação da política”, com
crescente criminalização dos políticos e de algumas instituições típicas da
democracia, a reforma política, vendida como um remédio capaz de curar todos os
males, pode soar como música para ouvidos desavisados. Mas nem toda reforma é
necessariamente boa ou sem interesses. Diante disto, resta a pergunta óbvia: a
quem interessaria o fim do voto obrigatório?
Fábio Kerche é
pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa.
João Feres Júnior é
professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos e do Instituto
Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro.
Saiba mais – Bibliografia
NICOLAU, Jairo. História
do voto no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
PORTO, Walter Costa. Dicionário
do Voto. Brasi?lia: Editora UnB, 2000.
ROSE, Richard. International
Encyclopedia of Elections. Washington, D.C.: CQ Press, 2000.
CHONG, Alberto &
OLIVEIRA, Maurício. "On Compulsory Voting and Income Inequality in a
Cross-Section of Countries".Research Department working paper series,
nº 533, p. 26, 2005.
Saiba mais – Documentário
A História
do Voto no Brasil
No ritmo da história,
a eleição brasileira conheceu
as regras de imperadores, republicanos, ditadores civis e militares.
O Caminhos da reportagem mostra
a evolução do voto desde as primeiras eleições populares em 1932, na cidade
de São Vicente (SP), onde foi
instalada a primeira câmara de vereadores. O programa remonta aos tempos
da colônia, dos conchaves, das fraudes, do coronelismo e do voto de cabresto.
E nos dias atuais, como o
eleitor escolhe o candidato? Da cédula manual às urnas eletrônicas, uma pergunta divide opiniões de muitos
especialistas: a urna eletrônica é confiável?
Direção: Bianca Vasconcellos
Reportagem: Aline Moraes
Ano: 2014
Áudio: Português
Duração: 50 minutos
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