A personagem Chica da Silva diz muito sobre a escravidão, o machismo e a desigualdade no Brasil
Fabiana Lima
As linhas poéticas deixam entrever
alguns traços da personagem histórica mitificada: mulher que apostava na
ostentação, tinha todos os desejos realizados por seu contratador e exibia
personalidade autoritária. Uma trajetória marcada pelo signo da exceção.
Francisca da Silva de Oliveira, de origem escrava, rompeu com o que era
designado à sua condição. Desenredar esse mito é um grande desafio para
professores e estudantes, em aulas de história e de literatura.
Discursos historiográficos,
literários, cinematográficos e televisivos têm reforçado a versão de que, no
decorrer do século XVIII, uma mulher negra escravizada ascendeu socialmente por
meio do concubinato com um notável negociante de origem portuguesa. Por um
lado, perde-se de vista quem foi a personagem de fato – a companheira não
oficial de João Fernandes de Oliveira, fidalgo que havia arrematado o direito
de explorar diamantes. Por outro, essas narrativas revelam as contradições, os
interesses e as lacunas de uma história maior que a de Chica: a das relações
raciais e de gênero no Brasil.
Chica da Silva e o contratador dos diamantes: o outro lado do mito,
estudo publicado pela historiadora Júnia Furtado
em 2003, busca liberar a personagem dos estereótipos que lhe foram imputados no
decorrer do tempo. Demonstra que Francisca da Silva aparece pela primeira vez
como personagem histórica no livro Memórias
do Distrito Diamantino (1868), de Joaquim Felício dos Santos, destacando-se
por ser a única personagem feminina dessas memórias e por encarnar os
estereótipos negativos da mulher negra e da escrava perversa e amedrontadora.
Essa imagem se relaciona com o período histórico em que se consolidava, em
Minas Gerais, o modelo de família monogâmica, unida pelo matrimônio, sob
valores católicos. Faz sentido, portanto, o registro demonizado da união da
escrava Francisca com o contratador João Fernandes. Era um discurso normativo,
a favor da organização familiar de base cristã. Mulheres negras, escravizadas
ou libertas, eram vistas como licenciosas e inadequadas para o estabelecimento
de uniões estáveis.
A leitura da obra de Joaquim
Felício dos Santos resultou em várias interpretações equivocadas. Entre elas a
de que Chica mandava no arraial do Tejuco e no próprio João Fernandes. O
contratador, por sua vez, foi concebido como um déspota que subjugava a elite
local e desafiava as autoridades metropolitanas. Por esta versão, o poderoso
Marquês de Pombal, ministro do rei D. José, teria incumbido o conde de
Valadares, governador da capitania (1768-1773), de ordenar o retorno de João
Fernandes ao reino, preso por irregularidades na exploração dos diamantes. Tendo
voltado para Portugal, o ex-contratador morreria só em 1799.
Mas outros documentos jurídicos
comprovam o falecimento de João Fernandes de Oliveira, então desembargador, em
1779. Não só ele teria morrido 20 anos antes da data indicada na obra de
Joaquim Felício dos Santos, como a causa provável do seu retorno teria sido bem
diferente da punição de Pombal: uma disputa com a madrasta pelos bens de seu
pai.
Na década de 1940, a região de
Diamantina passou por um processo de revitalização, por ser o local onde nasceu
o político Juscelino Kubitschek (que entre 1940 e 1945 foi prefeito de Belo
Horizonte). A casa de Chica da Silva foi tombada e alguns estudos sobre a
cidade ressaltaram a imagem da ex-escrava sem muita preocupação documental.
Destacou-se, nesse período, a versão de Soter Couto presente no livro Vultos e fatos de Diamantina (1954), na
qual a ex-escrava é representada como redentora da própria raça, a partir de
atitudes vingativas contra os reinóis portugueses.
A personagem mítica também é
associada a um suposto processo de “branqueamento”, ideia inspirada em teorias
como a do médico e antropólogo Nina Rodrigues (1862-1906). Várias abordagens
imputam aos negros um desejo de se branquear. As versões que carregam a tinta
no traço autoritário de Chica da Silva, por exemplo, supervalorizam um suposto
desejo latente de embranquecer, ao mesmo tempo em que silenciam os conflitos
raciais da trajetória de uma ex-escrava que ascendeu socialmente.
A passagem do discurso historiográfico para o discurso ficcional foi importante para o desenvolvimento e a difusão do mito. Desde a menção nos cantos XIII (a) XIX do Romanceiro da Inconfidência (1953), de Cecília Meireles, até a telenovela Xica da Silva, produzida pela TV Manchete em 1996 e 1997, passando pelo balanço da Xica da Silva de Jorge Ben (1976), o mito se massificou. Alternam-se narrativas ora positivas, ora negativas sobre a personagem, mas a maioria das versões remonta – com algumas correções ou pequenas modificações – ao estudo de Joaquim Felício dos Santos. Seu sobrinho-neto, João Felício dos Santos, publicou em 1976 o romance Xica da Silva, que serviu de base tanto para o roteiro do filme de Cacá Diegues (do mesmo ano) quanto para o texto da telenovela, escrita por Walcyr Carrasco. O livro constrói a imagem de uma Chica sensualizada, ou seja, mulher negra cujos atributos sexuais conseguiram atrair o mais poderoso homem daquela região. O filme massificou a imagem de uma ex-escrava autoritária e gratuitamente perversa. A telenovela levou ao extremo a erotização e o descompromisso com a realidade histórica do século XVIII.
Júnia Furtado constatou que a
trajetória de ascensão social de Chica da Silva, baseada no relacionamento não
oficial com um homem branco da elite e no branqueamento cultural, não foi
exceção entre as mulheres forras da região mineradora. De forma geral, as
principais estratégias de ascensão social daquelas mulheres eram o concubinato,
a prostituição, o apadrinhamento ou a ocultação (quando possível) do passado
escravo. É importante refletir sobre como o tipo de sistema colonial português,
baseado na mistura entre colonizador e colonizado, produziu a subjugação da
mulher negra – escravizada ou liberta – ao homem branco.
Enquanto é descrita como lasciva
e dominadora, opressora ou redentora dos negros escravizados, esvai-se,
nas brumas da imaginação, a Francisca que viveu no século XVIII. Esta ficou
grávida pelo menos 13 vezes em 17 anos daquele relacionamento. Além disso,
documentos de instituições de ensino atestam o cuidado de Francisca e João
Fernandes com a educação formal dos filhos. Por outro lado, percebe-se a
desigualdade daquele relacionamento, por exemplo, nas certidões de batismo dos
filhos de Francisca, em que constam nomes de padrinhos pouco notáveis
socialmente para a elite da época, ou em documentos importantes para dar
destino à herança do ex-contratador, que omitem o nome de Francisca no intuito
de apagar a ascendência africana dos filhos do casal.
Ao minimizar ou desconsiderar
completamente a desigualdade hierárquica no relacionamento entre uma
ex-escravizada e um negociante português, as narrativas ficcionais sobre Chica
da Silva silenciam tensões raciais – que envolviam tanto a inserção da própria
Francisca na elite mineira, quanto os prejuízos sociais vividos pelos filhos do
casal.
É nessas brechas, inerentes às
relações de poder coloniais e pós-coloniais no Brasil, que surgem as
reconstruções míticas da personagem histórica Francisca da Silva de Oliveira. O
trabalho pedagógico com as diferentes versões do mito, mais do que discriminar
o real do fictício, precisa lidar com os silêncios e as sombras criados pelo
poder da imaginação. Lidar com esses silêncios possibilita entender um pouco
mais o longo processo de submissão do corpo da mulher negra aos desejos e
preconceitos de uma elite masculina branca, reprodutora de relações
hierárquicas de poder. Algumas persistentes ainda hoje.
Fabiana Lima é professora do Colégio Pedro II e autora de Literatura afro-brasileira (FFCH/UFBA, 2013).
Fonte: Revista de História da Biblioteca Nacional
Saiba mais - Bibliografia
BENTO,
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(orgs.). Psicologia social do racismo:
estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Petrópolis: Vozes,
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CHAUÍ,
Marilena. Brasil: mito fundador e
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2000.
FURTADO,
Júnia Ferreira. Chica da Silva e o
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SANTOS,
Boaventura de Sousa. “Entre Próspero e
Caliban: colonialismo, pós-colonialismo e interidentidade”. In: ___. A
gramática do tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2008.
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