Vinte anos depois, toca o telefone, ele
atende e é um amigo de infância, cujos pais eram amigos dos seus: “Antônio,
estou aqui no hospital com meu pai, que está muito doente e está para morrer e
acaba de confessar que nos compraram em Saragoça, de um padre e uma freira”.
Antônio Barroso é espanhol, sequestrado ao
nascer e vendido para um casal no ano de 1969. Seu depoimento ilustra o drama
de centenas de crianças que, logo após nascerem, foram tomadas de seus pais
biológicos para serem vendidas ou doadas a outras famílias. Esta prática
criminosa de roubo de bebês foi muito utilizada pelas ditaduras de dois países,
ainda que em momentos distintos: na Espanha de Francisco Franco (1939-1975) e
na Argentina durante a última ditadura civil-militar (1976-1983). Ambos os
governos foram marcados por profundo sentimento anticomunista, reforçado por
estreitas ligações com a Igreja Católica e civis alinhados aos ideais
militares.
Os pais que tiveram seus filhos tomados
eram considerados subversivos por seus governos. A declaração do antigo chefe
de Polícia da Província de Buenos Aires, Ramón Camps dada a um jornal espanhol
em 1984, expressa o argumento utilizado pelos sequestradores, que consideravam
estas crianças "sementes do mal", futuros opositores à ordem imposta:
“Pessoalmente, eu não eliminei nenhuma criança. O que eu fiz foi dar algumas a
organizações benéficas para que encontrassem novos pais. Os subversivos educam
seus filhos na subversão. Por isso, deveriam ser impedidos”.
Muito
recentemente foi descoberto que durante o governo de Francisco Franco na
Espanha se praticava o roubo de bebês de mães rojas, denominação
dada às militantes comunistas. Suas crianças eram vendidas a outras famílias
sem filhos. Atualmente estima-se que cerca de 200.000 crianças passaram pelo
processo de adoção ilegal na Espanha, numa trama que envolveu enfermeiras,
médicos e, sobretudo, membros da Igreja Católica, como freiras e padres. Estes
últimos eram responsáveis por comunicar aos pais que seus filhos recém-nascidos
haviam falecido e tiveram que ser enterrados às pressas. Para dar mais
veracidade à narrativa, em certos casos, uma mesma fotografia de um bebê morto
era mostrada a várias famílias, em um mesmo hospital.
Caso exemplar é o de María Gómez Valbuena,
hoje com 87 anos. De acordo com relatos, ela era conhecida como “a freira que
dava crianças”. Não raras vezes, Valbuena, mesmo após a adoção, ainda mantinha
contato com a criança, fazendo, inclusive, acompanhamento do rendimento escolar.
Por anos, ela trabalhou como assistente social em uma clínica, Santa Cristina,
em Madri, de onde, não por coincidência, saíram outras inúmeras denúncias de
roubo de bebês.
O drama dos bebês sequestrados veio à tona
com mais força a partir da iniciativa de Antônio Barroso que, em 2010, criou a
Associação Nacional de Afetados por Adoções Irregulares (Anadir), entidade
registrada no Ministério do Interior do governo espanhol. Barroso ainda não
encontrou sua verdadeira mãe. Ele continua sua busca, com a ciência da mãe
adotiva. Crê que seus pais adotivos foram enganados pelo médico, pois compraram
uma criança que não sabiam que havia sido roubada: “O médico disse que eu era
filho de um analfabeto com uma prostituta ou que os meus pais haviam morrido”.
Até o momento, há 450 casos documentados por esta Associação, que busca a
reparação da verdade, da dignidade e da Justiça para as pessoas que foram
ilegalmente adotadas e também para seus familiares. São feitas as devidas
investigações para a identificação e localização destas pessoas. A Anadir busca
divulgar seus trabalhos para sensibilizar a sociedade civil e, assim, obter
mais apoio. A entidade também presta auxílio jurídico e psicológico às vítimas
e conta com doações para subsidiar custos dos processos dos afetados.
A expectativa é de que em 2013, o governo
crie um censo para traçar o perfil dos atingidos por esta prática. Um
cruzamento de dados de pais, filhos e irmãos será necessário para promover os
encontros.
No caso da Argentina, de acordo com os
organismos de direitos humanos daquele país, as Forças Armadas sumiram com
30.000 pessoas durante a mais recente ditadura civil-militar no país
(1976-1983). A estratégia repressiva dos militares girava em torno do sequestro
seguido de desaparecimento. Para tanto, planejaram um circuito repressivo
clandestino, cujo núcleo central se apoiava principalmente nos centros de
detenção, no interior de dependências militares ou policiais, onde os
sequestrados eram torturados, assassinados ou desaparecidos. O desaparecimento
permitia a negação do crime cometido, pois eliminava a sua principal prova
material: o corpo da vítima.
Dentre as vítimas dos sequestros, estavam
as crianças. Algumas delas foram sequestradas em procedimentos realizados
contra seus pais e, posteriormente, podiam ou não ser devolvidas aos seus
familiares. Outras nasceram em cativeiro, pois suas mães foram sequestradas
grávidas. Em alguns centros de detenção, como a Escuela de Mecánica de
la Armada (Esma) e o Campo de Maio, funcionaram maternidades
clandestinas para essas mulheres, nas quais os nascimentos ocorriam sob fortes
maus tratos. No circuito de adoção ilegal e clandestino, participaram
funcionários de cartórios e hospitais, como médicos obstetras, que facilitaram
a falsificação de documentos para registro e os dados que dificultassem a
identificar os bebês.
Após o sequestro e desaparecimento de seus
filhos, algumas mulheres passaram a circular por delegacias, tribunais e
igrejas, em busca de informações sobre os paradeiros deles, e descobrindo assim
que seus dramas familiares não eram casos isolados. Paralelamente, circulavam
testemunhos de sobreviventes dos centros clandestinos de detenção da ditadura
de que as mulheres grávidas eram mantidas vivas até darem a luz, quando eram
então separadas dos seus bebês. Posteriormente, descobriu-se que esses bebês
tinham suas identidades trocadas e eram apropriados por militares ou por
pessoas ligadas à repressão e ao regime. As mães de desaparecidos confirmaram
assim que eram avós e que deveriam lutar pela aparição com vida de seus filhos
e pela recuperação de seus netos. Nasceu então, em 1977, a Associação Civil
Avós da Praça de Maio (Asociación Civil Abuelas de Plaza de Mayo).
As avós criaram estratégias que lhes permitiam
averiguar o paradeiro dos bebês apropriados e a posterior recuperação de suas
identidades. Os avanços da ciência e da técnica possibilitaram a produção de
provas genéticas a partir do sangue de parentes de segundo e terceiro grau, já
que os pais biológicos em sua maioria encontravam-se desaparecidos. Com a
redemocratização, em 1983, as iniciativas dirigiram-se para a formação de um
Banco Nacional de Dados Genéticos, no qual familiares de bebês sequestrados ou
nascidos em cativeiro pudessem depositar material genético para futuras
averiguações. Até outubro de 2012, foram encontrados 107 netos, que tiveram sua
identidade legal recuperada. No entanto, este é um número baixo, levando em
consideração que foram cerca de 500 sequestrados.
Quando em 1997 completaram-se 20 anos do
surgimento da Associação, as avós mudaram seus métodos de busca ao constatar
que seus netos já haviam crescido, abrindo-se a possibilidade de contar com a
ajuda deles para recuperarem suas identidades. Produziram então campanhas de
difusão dirigidas a esses jovens: “Se você nasceu entre 1975 e 1980 e tem
dúvidas sobre a sua identidade, contate as Avós”. Há na Argentina um claro
apoio e admiração social que se torna mais visível quando elas vêm a público
anunciar a restituição da identidade de um menor sequestrado ou nascido em
cativeiro.
Em 30 de dezembro de 1996, as Avós da
Praça de Maio realizaram uma denúncia à justiça argentina iniciando a causa
judicial pelo plano sistemático do roubo de bebês que, em 5 de julho de 2012, resultou
na condenação de um grupo envolvido no desaparecimento e nas adoções ilegais
dos recém-nascidos, incluindo militares e médicos.
A recuperação ou restituição da identidade
dos bebês apropriados é uma intervenção legal, carregada de tensões e dilemas
éticos e morais. A partir dela, três temas entram em debate: a justiça, por se
tratarem de crimes de sequestro e de ocultamento de identidade cometidos por
civis e militares; a verdade, reivindicada pelos familiares de desaparecidos; e
a memória de jovens adultos, que, a partir de então, precisam conciliar-se com
dois passados: uma história familiar inventada e uma história familiar que lhe
foi negada. Justiça, verdade e memória afirmam-se, assim, como imperativos para
sociedades reelaborarem seus passados ditatoriais, e para que os indivíduos
reparem os efeitos destes sobre suas biografias.
Isabel
Cristina Leite é tutora da
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e autora da dissertação Comandos
de Libertação Nacional: Oposição armada à ditadura em Minas Gerais (1967-1969)(UFMG,
2009).
Marcos
Oliveira Amorim Tolentino é
autor da dissertação O 16 de setembro sob a ótica da DIPBA- Dirección
de Inteligencia de la Policía de la Provincia de Buenos Aires (1990-1996) (Unicamp,
2012).
Saiba mais - Bibliografia
BAUER, Caroline
Silveira. Brasil e Argentina: ditaduras, desaparecimentos e políticas
de memória. Porto Alegre: Medianiz, 2012.
TORRES, Enrique
Vila. Mientras duró su ausencia. Madrid: Temas de Hoy, 2012.
Saiba mais - Internet
Associação Civil Avós da
Praça de Maio
Associação Nacional de
Afetados por Adoções Irregulares
Saiba mais – Filmes/Guerra Civil Espanhola
A Mulher do
Anarquista (La Mujer del Anarquista)
Áudio: Espanhol/Legendado
Duração: 118 minutos
Libertárias (Libertarias)
Libertárias (Libertarias)
Direção: Vicente Aranda
Ano: 1996
Duração: 121 minutos
Terra e Liberdade (Land and Freedom)
Ano: 1995
Áudio: Inglês/Legendado
Duração: 109 minutos
Saiba mais – Filmes/Ditadura Argentina
Saiba mais – Filmes/Ditadura Argentina
A
História Oficial (La Historia Oficial) 1985
Na Buenos Aires dos anos 80, Alicia e seu marido Roberto vivem
tranquilamente com Gaby, sua filha adotiva. Porém, após o reencontro com uma
velha amiga recém-chegada do exílio, Alicia começa a tomar conhecimento da
cruel realidade do regime militar argentino, passando a questionar todas as
suas certezas e o que considerava como verdade. Uma realidade para a qual
Alicia não estava preparada, mas que agora terá de enfrentar com todas as suas
consequências.
Este filme marca a tomada coletiva de consciência
dos horrores praticados na "guerra suja" pelo regime militar
argentino. Alicia (Norma Aleandro) sempre teve curiosidade sobre a identidade
dos pais verdadeiros de sua filha adotiva - até que se dá conta de que os pais
da menina poderiam ser alguns dos "desaparecidos" da ditadura. Foi um
dos mais premiados filmes argentinos.
Em
1986, recebeu o Globo de Ouro e o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e também
foi indicado para o Oscar de Melhor Roteiro Original. No
ano anterior, Norma Aleandro foi premiada como Melhor Atriz no Festival de
Cannes.
Direção: Luis Puenzo
Áudio: Espanhol/Legendado
Duração: 110 minutos
Visões (Imagining Argentina)
Em plena ditadura militar na Argentina na
década de 70, Carlos Rueda (Antonio Banderas) é um diretor de teatro infantil
que tenta levar uma vida tranquila com sua família. Porém sua vida muda
radicalmente quando sua esposa, Cecilia (Emma Thompson), que é jornalista,
escreve uma matéria sobre o desaparecimento de crianças. Após a publicação da
matéria, a própria Cecilia some. É quando Carlos, que parte em seu encalço,
descobre que possui um dom para encontrar pessoas desaparecidas, decidindo
usá-lo para encontrar sua esposa e também para ajudar outras pessoas que estão
em situação semelhante a dele.
Direção: Christopher HamptonAno: 2003
Áudio: Inglês/Espanhol/Legendado
Duração: 107 minutos
O Dia Em Que Eu Não Nasci (2010) (The Day I Was Not Born)
Vencedor do Prêmio da
Crítica e do Público no Festival de Montreal e considerado o melhor filme no
Festival de Zurich, O Dia em que Eu Não Nasci traz
a história de uma mulher em busca de seu verdadeiro passado.
Ano: 2010
Áudio: Alemão/Espanhol/Legendado
Duração: 95 minutos
Infância clandestina
Áudio: Espanhol/Legendado
Duração: 112 minutos
Saiba mais – Documentários
Do Horror à
Memória (2006)
Por tudo isso, em 2004, o
então presidente Nestor Kirchner, tomou uma das decisões mais simbólicas em
relação a este assunto: transformar a ESMA em um museu para a memória. Pode
parecer pequeno, mas a decisão trouxe, ainda mais forte, a lembrança na
sociedade argentina de que aqueles prédios – em uma movimentada avenida de
Buenos Aires - não são simples construções de jardim bem cuidado.
O ato respondeu a uma
reivindicação de associações de direitos humanos, movimento com invejável
influência na opinião pública hermana. Mesmo ainda não tendo saído do papel de
fato, a instalação de um museu por lá agora é um caminho sem volta – é mesmo
uma questão de tempo. E tão simbólica é a ESMA que, mesmo sem museu, serviu de
palco para Cristina Kirchner reclamar, no último dia 25 de março, por
velocidade da justiça no julgamento dos opressores da época – ato que se por um
lado é espetáculo, por outro se faz também necessário.
Melhor Vídeo-Documentário
acadêmico do Brasil pela 12ª Expocom (2005); Melhor documentário acadêmico da
América do Sul pela Expocom – SUR (2006); Melhor Documentário pelo XIV Festival
Cine Vídeo de Gramado (2006); Melhor Vídeo Eleito pelo Júri - XIV Festival Cine
Vídeo de Gramado (2006); Selecionado para a Mostra Paulista do Audiovisual
(2006).
Direção: Alexandre Xavier,
Diogo Ruic, Laio Manzano e Marilia Chaves
Duração: 23 minutos
Condor
Duração: 110 minutos
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