Com “Argo”, um exercício desenfreado de
ufanismo americano e imperialismo cultural, Ben Affleck cometeu uma forma
similar de fraude. Essa é a opinião de Ken Taylor, o ex-embaixador canadense no
Irã que realmente arquitetou a fuga dos seis reféns que ele e o
primeiro-secretário da embaixada John Sheardown haviam escondido em suas casas,
em situação de risco pessoal considerável.
“Foram três meses de preparação intensiva
para a fuga”, explica Taylor. “Eu acho que o meu papel foi um pouco mais
importante do que abrir e fechar a porta da frente da embaixada.” (Essas são
essencialmente as imagens que comprovam a existência de Taylor no esquema criacionista
de “Argo”.)
Affleck fez um filme de propaganda, uma
auto-felação que inverte e distorce os fatos em sua tentativa frenética de
apresentar o agente da CIA Tony Mendez (interpretado por ele mesmo) como a
pessoa que trabalhou nos bastidores para realizar a retirada. O roteiro se
baseia em documentos confidenciais da CIA, abertos ao público nos anos 80, que
revelaram como Mendez desenvolveu um disfarce para os seis americanos – o de
uma equipe de cinema que queria fazer um filme de ficção científica no Irã.
Essa é a única parte do filme de Affleck que
possui alguma verdade. Praticamente todo o resto é uma mentira para satisfazer
um público americano faminto de heróis.
Na sexta passada, a frustração de Taylor
atingiu o limite. “Não haveria filme sem os canadenses. Abrigamos os seis sem
que nos fosse solicitado”. “Argo” tem recebido vários prêmios nos últimos
meses. Embora Affleck tenha sido supostamente “esnobado” por Hollywood ao não
ser apontado na lista de melhor diretor no Oscar, seu longa recebeu várias
indicações.
Além de “Argo” ter sido canonizado por
ligas e premiações de diferentes setores nos meses passados, a questão mais
ampla é como Affleck conseguiu enganar tanta gente em seu caminho para a glória
da crítica, apesar das enormes distorções, invenções e fabricações que o filme
comete para defender a CIA como um grupo de espiões inteligentes. Como a Grande
Mentira tomou conta da imaginação limitada de Affleck?
“Argo” se situa no Irã, logo após a queda
do Xá em 1979, quando a Guarda Revolucionária invadiu a embaixada americana.
Seis funcionários conseguiram escapar e se esconderam por vários dias até que
dois deles entraram na residência do casal Pat e Ken Taylor. Outros quatro
foram para a casa de John Sheardown e de sua mulher Zena depois que o
funcionário consular Robert Anders telefonou para o amigo Sheardown pedindo que
ele o recebesse com seus três colegas fugitivos. “Por que você demorou tanto?”,
foi a resposta do Sheardown. (Nada disso aparece na versão de Affleck.
Sheardown sequer é mencionado.)
Os fugitivos passaram três meses no limbo
das duas residências até que Taylor finalmente convenceu um reticente
departamento de estado americano de que as autoridades iranianas estavam
começando a farejar as casas.
Em seu zelo para contar a história do
agente Tony Mendez, Affleck reescreveu boa parte da história e enxugou
radicalmente o papel do embaixador. Não foi só ele que deixou clara sua
discordância. Em uma entrevista para o jornalista Piers Morgan na semana
passada, o ex-presidente americano, Jimmy Carter, afirmou que “90% do plano foi
dos canadenses”, mas o filme “dá crédito quase completo à CIA”.
Affleck defende sua selvageria autoral
dizendo que uma TV canadense já havia feito um filme em 1981. De acordo com
ele, “Argo” foi concebido para revelar o “papel secreto da CIA” – que basicamente
se resume à criação de uma equipe de cinema a fim de enganar os funcionários da
alfândega no aeroporto de Teerã. “Este filme mostra um maravilhoso espírito de
colaboração e cooperação. É um grande cumprimento para o Canadá”, afirmou
Affleck para mim.
Não havia absolutamente nenhuma necessidade de transformar o papel central do embaixador num “concierge” de luxo, que basicamente servia bebidas e canapés e seguia ordens. Taylor, que é interpretado pelo canadense Victor Garber, declarou que “‘Argo’ faz parecer que os canadenses estavam ali apenas a passeio”.
Affleck respondeu um tanto irritado: “Eu
admiro Ken por seu papel no resgate. Estou surpreso que ele continue a ter
problemas com o filme”. Em outubro, quando “Argo” estava sendo lançado na
América do Norte, Affleck soube que Taylor estava começando a falar
publicamente sobre sua decepção com seu trabalho. Ben Affleck organizou às
pressas uma exibição e, depois de ouvir suas objeções, concordou em inserir um
texto no início dos créditos: “O envolvimento da CIA complementou os esforços
da embaixada canadense”.
A verdade é outra: Taylor planejou a fuga,
enquanto a CIA e seus homens, Mendez à frente, simplesmente ajudaram a preparar
o estratagema esquisito que serve como um contraponto cômico para o drama
subjacente no Irã. Tony Mendez era uma espécie de assessor técnico. Mas, na
narrativa falsificada de Affleck, todo o heroísmo é reservado para seu alter
ego.
A história real por trás da fuga evoluiu
de outra forma. Durante os quase três meses em que os seis fugitivos estiveram
escondidos, o governo canadense em Ottawa preparou documentos oficiais –
passaportes, carteiras de motorista, até mesmo alfinetes com a bandeira –,
enviados a Teerã via mala diplomática.
O
papel da CIA foi forjar os vistos de entrada – mas até isso eles conseguiram
ferrar. Os selos falsos continham um erro catastrófico feito por um agente, que
se equivocou na data de entrada. Um membro da embaixada canadense, Roger Lucey,
apontou a burrada (ele podia ler farsi, em oposição ao apparatchik da CIA).
Lucey passou várias horas debruçado sobre uma lupa, forjando os passaportes e
torcendo para que seu trabalho penoso passasse despercebido pelas autoridades.
Outro ato flagrante de omissão de “Argo” é
que a CIA contou com Taylor para fornecer informações sobre o caos da tomada de
reféns em curso na embaixada dos EUA, onde 52 americanos ainda estavam sendo
mantidos em cativeiro pela Guarda Revolucionária. Taylor pediu a um sargento
canadense, Jim Edwards, que saísse e monitorasse, com seu time, a área ao redor
da embaixada dos EUA durante várias semanas, para uma possível missão dos
Estados Unidos.
Edwards foi detido e interrogado por cinco
horas, até ser liberado por volta da uma da manhã. “Nós bebemos um monte de
uísque juntos”, Taylor recordou. “Ele poderia facilmente ter sido preso como um
espião.”
Mark Lijek, um dos dois americanos que
passaram 79 dias na casa de Sheardown, confirma o relato. “Toda a embaixada
canadense passou a se concentrar em nossa sobrevivência e eventual saída, o que
é praticamente sem precedentes na história diplomática”, Lijek explicou. “É
triste que ‘Argo’ ignore tudo isso.”
Finalmente, “Argo” inventa o clímax em que
um jipe militar cheio de soldados armados persegue o avião na pista. “É tudo
ficção”, conta Taylor. “Foi bom ir ao aeroporto – exceto por nossos nervos”.
Affleck é um homem cujo coração está
normalmente no lugar certo. Ele apoia causas liberais, defende a liberdade de
expressão, é delicado nas entrevistas e frequentemente crítico da direita
republicana. Mas ele ou é terrivelmente ingênuo ou estúpido quando se trata de
sua leitura do registro histórico. Ele achou que seu bolo fofo de
entretenimento lhe dava a “licença artística” para cortar, ajustar e mentir. Em
uma entrevista ao Hollywood Reporter, afirmou que era um ex-estudante de
assuntos do Oriente Médio da Universidade de Vermont e que escreveu um artigo
sobre a revolução iraniana.
Mas, como um crítico frequente da política
externa americana e da administração Bush, por que Affleck decidiu cantar os
louvores da CIA, que projetou a queda de Mossadegh e a subsequente substituição
pelo Xá?
Ele deveria checar os fatos. Podemos
perdoar a adição de um jipe carregado de metralhadoras perseguindo um jato
comercial. Podemos perdoar a adição de um tour suicida em um bazar lotado.
Podemos até perdoar “Argo” por fazer John Sheardown desaparecer. Mas não há
como desculpar uma visão manipuladora e irremediavelmente distorcida da
realidade para maquiar uma peça de propaganda.
Harold Von
Kursk: Alemão,
naturalizado canadense, Harold tem 52 anos e é, além de jornalista, diretor de
cinema. Em mais de 20 anos, entrevistou atores e cineastas para a mídia
americana e europeia. Com todas teve grandes conversas. Exceto por Scarlett
Johansson. “Ela é uma linda diva mimada”, diz.
Saiba
mais – Filme
Argo
Direção: Ben Affleck
Ano: 2012
Áudio: Português
Tamanho: 556 MB
Saiba mais – Link
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