Para mexer nesse
ninho de cobras, terá de remover presidentes de congregações (que, no Vaticano,
equivalem a ministérios) e nomear para dirigi-las prelados que, hoje, vivem
fora de Roma e são, portanto, virtualmente imunes à influência da “famiglia
curiale”, a que, de fato, exerce o poder na Igreja.
Para modificar a estrutura monárquica da
Igreja, Francisco terá de repensar o estatuto das nunciaturas, valorizar as
conferências episcopais e o sínodo dos bispos e, quem sabe, criar novas
instituições, como um colégio de leigos capaz de representar a Igreja como Povo
de Deus, e não como sociedade clericalizada pretensamente perfeita.
Não será surpresa se, em breve, o novo
papa promover o seu primeiro consistório, elevando ao cardinalato bispos e
arcebispos dos cinco continentes (e talvez até padres e leigos, os chamados “cardeais
in pectore”, que não são de conhecimento público).
Imagem
Manchada
Tal iniciativa deverá incluir o atual
arcebispo do Rio de Janeiro, dom Orani Tempesta. Paira certa incongruência no
fato de a arquidiocese carioca não ter, há anos, cardeal titular, como há em
São Paulo. Sobretudo considerando que o Rio acolherá, em julho próximo, a
Jornada Mundial da Juventude, à qual o novo pontífice estará presente.
A imagem da Igreja Católica está manchada,
hoje, por escândalos sexuais e falcatruas financeiras. Não se espere do novo
papa atitudes ousadas enquanto Bento XVI lhe fizer sombra na área do Vaticano.
Mas seria uma irresponsabilidade o papa Francisco não abrir, no interior da
Igreja, o debate sobre a moral sexual.
Sacerdócio
Nesse tema, são muitas as questões a serem
aprofundadas, a começar pela seleção dos candidatos ao sacerdócio. Já há uma
instrução de Roma aos bispos para que não sejam aceitos jovens notoriamente
afeminados – o que me parece uma discriminação incompatível com os valores
evangélicos. Equivale a impedir o ingresso na carreira sacerdotal de candidatos
heterossexuais dotados de uma masculinidade digna de Don Juan.
O problema não é questão de aparência, e
sim de vocação. Se a Igreja pretende ampliar o número de padres terá que,
necessariamente, retomar o padrão dos seus primeiros séculos e distinguir
vocação ao sacerdócio de vocação ao celibato.
Vida Sexual
Aqueles que se sentem em condições de se
abster de vida sexual (já que apenas aos anjos é dado prescindir da
sexualidade) devem abraçar a via monástica, religiosa, ainda que alguns se
tornem sacerdotes para o serviço comunitário. Já ao clero diocesano seria
facultado escolher a vida matrimonial, como ocorre hoje nas Igrejas ortodoxa e
anglicana, e com os pastores de Igrejas protestantes.
O caminho mais curto e mais sábio seria o
papa admitir a reinserção de padres casados no ministério sacerdotal. Eles são
milhares. No mundo, calcula-se cerca de 100 mil; no Brasil, 5 mil. Muitos
gostariam de voltar ao serviço pastoral com direito a administrar sacramentos e
celebrar missa.
Mulheres no
Sacerdócio
A medida mais inovadora seria permitir o
acesso de mulheres ao sacerdócio. Não há precedente na história da Igreja,
exceto em países socialistas onde, clandestinos, bispos despreparados ordenaram
mulheres cujo sacerdócio, ao vir à lume, não foi reconhecido por Roma.
Nos evangelhos há mulheres notoriamente
apóstolas, embora não figurem na lista canônica dos doze apóstolos. Em Lucas 8,
1, constam os nomes de mulheres pertencentes à comunidade apostólica de Jesus:
Maria Madalena, Joana, Susana “e várias outras”.
A samaritana (João 4) foi apóstola, no
sentido rigoroso do termo – a primeira pessoa a anunciar Jesus como o Messias.
E Maria Madalena, a primeira testemunha da ressurreição de Jesus.
Anacronismo
Facultar às mulheres o acesso ao sacerdócio
implica modificar um dos pontos mais anacrônicos da ortodoxia católica, que
ainda hoje considera a mulher ontologicamente inferior ao homem. É a famosa
pergunta em aula de teologia: pode o escravo se tornar padre? Sim, desde que
liberto, pois como homem goza da plenitude humana. Já a mulher, ser inferior ao
homem, está excluída desse direito, pois não goza da plenitude humana.
Outros desafios se apresentam ao novo
papa, como o diálogo inter-religioso. Nos últimos pontificados Roma deu passos
significativos para melhorar as relações do catolicismo com o judaísmo, levando
o papa a visitar o Muro das Lamentações, em Jerusalém, e isentando os judeus da
pecha de assassinos de Jesus.
Retrocesso
No entanto, retrocedeu quanto à relação
com os muçulmanos. Em sua visita à Universidade de Regensburg, na Alemanha, em
2006, Bento XVI cometeu a infelicidade de citar uma história do século XIV em
que o imperador bizantino pede a um persa que lhe mostre "o que Maomé
trouxe de novo, e você só encontrará coisas más e desumanas, como sua ordem de
espalhar pela espada a fé que pregava". Embora a intenção do papa fosse
condenar o uso da violência pela religião – no qual a Igreja da Inquisição foi
mestra – a comunidade islâmica, com razão, se sentiu ofendida.
Ao visitar os EUA, em 2008, Bento XVI
esteve numa sinagoga de Nova York, sem no entanto dirigir-se a uma mesquita, o
que teria demonstrado sua imparcialidade e abertura à diversidade religiosa,
além de combater o preconceito estadunidense de que muçulmano rima com
terrorista.
Há que aprofundar o diálogo com as
religiões do Oriente, como o budismo e as tradições espirituais da Índia. E
buscar melhor aproximação com os cultos animistas da África e os ritos
indígenas da América Latina.
Ecumenismo
É chegada a hora de a Igreja Católica
admitir a pertinência das razões que provocaram sua ruptura com as Igrejas
Ortodoxas e a de Lutero com Roma. E, num gesto ecumênico, buscar a unidade na
diversidade, de modo a testemunharem uma única Igreja de Cristo.
Convém reconhecer, como propõe o Concilio
Vaticano II, que as sementes do Evangelho vigoram também em denominações
religiosas não cristãs, ou seja, fora da Igreja Católica há sim salvação.
O papa Francisco terá que optar entre os
três dons do Espírito Santo oferecidos aos discípulos de Jesus: sacerdote, doutor
ou profeta. A ser um sacerdote como João Paulo II, teremos uma Igreja voltada a
seus próprios interesses como instituição clerical, com leigos tratados como
ovelhas subservientes e desconfiança frente aos desafios da pós-modernidade.
Igreja
Mestra x Igreja Mãe
A ser um doutor como Bento XVI, o novo
pontífice reforçará uma Igreja mais mestra do que mãe, na qual a preservação da
doutrina tradicional importará mais do que encarnar a Igreja nos novos tempos
em que vivemos, incapaz de ser, como São Paulo, “grego com os gregos e judeu
com os judeus”.
Assumindo seu múnus profético, como João
XXIII, o papa Francisco se empenhará numa profunda reforma da Igreja, para que
nela transpareça a palavra e o testemunho de Jesus, no qual Deus se fez um de
nós.
“Habemus papam!” Já sabemos quem:
Francisco. É a primeira vez na história que um papa adota o nome daquele que
sonhou que a Igreja desabava e cabia a ele reconstruí-la. O tempo dirá a que
veio.
♦ Frei Betto é escritor, autor de
“A obra do Artista – uma visão holística do Universo” (José Olympio), entre
outros livros.
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