Teorias de Lutero romperam com a autoridade católica pregando o contato
direto entre o homem e Deus pelo poder da fé.
Entender o protestantismo significa
compreender o que era a fórmula da “salvação pela fé”, tal como foi elaborada
pelo frade agostiniano Martinho Lutero, na primeira metade do século XVI, e
retomada sucessivamente pelos demais movimentos reformados.
Martinho Lutero (1483-1546) cresceu e se
formou na fronteira eslava da cristandade, na Saxônia, Alemanha, ingressando
aos 22 anos no Convento de Erfurt. Sete anos depois, tornou-se doutor em
Teologia em Wittenberg, onde passou a lecionar Teologia e Exegese Bíblica. Este
mergulho direto nas Sagradas Escrituras, entre 1513 e 1517, permitiu que ele
formulasse uma nova interpretação do conceito de Deus e do Homem, condensada na
sua doutrina da Teologia da Cruz.
O impulso definitivo rumo a esta nova
doutrina foi a chamada “experiência da torre”, na qual Lutero elaborou o seu
conceito de justiça passiva, refletindo sobre um trecho da Epístola aos
Romanos, de Paulo: “o justo viverá pela fé”. Muitos haviam meditado sobre o
sentido daquelas palavras, mas em Lutero elas dispararam uma reviravolta
teológica: o homem era justificado apenas pela fé e de nada valiam as ações
individuais, já que não poderíamos modificar a natureza pecaminosa. Lutero,
portanto, desenvolveu uma visão muito pessimista da natureza humana, que, em
seu entender, permanecia corrompida mesmo após a redenção, a remissão dos
pecados que se realiza, para a humanidade, após o sacrifício de Cristo na Cruz.
Neste caso, a justificação do homem só
poderia ocorrer por iniciativa divina: Cristo toma para si o fardo dos pecados
dos homens, concentrando os rigores da justa e terrível cólera do Pai. Por mais
que o homem fosse pecador, se tivesse uma fé maior que o pecado, Cristo o
justificaria.
Ter fé, no sentido luterano do termo,
significava compreender o valor do sacrifício de Cristo e crer em sua graça
redentora para abrir o horizonte da salvação. Como era um dom totalmente
gratuito, sem nenhum correspondente nas ações humanas, implicava a recusa da
noção de “obras meritórias” – sobre as quais o papado havia construído sua
própria autoridade, inclusive pela teoria das indulgências (remissão das penas
cabíveis para os pecados cometidos).
Em suas 95 Teses (1517),
Lutero condenava as indulgências, pois elas forneciam aos pecadores uma falsa
segurança. Se o homem pecador não pode realizar obras boas, as indulgências são
inúteis. O que salva o homem é somente a fé.
Sua luta contra os “abusos” da Igreja
Católica não nascera com o objetivo de provocar um rompimento. Tornar laica a
vivência religiosa – independente de instituições, de rituais e da presença em
locais de culto – e abolir a separação entre o clero e os fiéis eram vistos
como um retorno à forma primitiva e apostólica da Igreja, baseada na pregação e
na relação direta do crente com Deus, pelas Escrituras.
No sentido católico do termo, ter fé era
outra coisa: aderir à mensagem divina da Revelação do modo como os bispos e os
párocos a ensinavam aos fiéis. A fé que salva era um sentimento subjetivo de
misericórdia divina, a resposta para o problema angustiante da salvação, que
seria alcançada, segundo a Igreja, quando se seguiam os seus ditames:
confessar-se, arrepender-se e obter a absolvição libertadora, para realizar
boas obras. A confissão, para ter valor, deveria ser completa, e os erros
discriminados por quantidade, qualidade e circunstância. Era como contar as
gotas de água em um oceano!
Nos séculos XVI e XVII, aos olhos de
mercadores, artesãos, soldados e camponeses, a Bíblia traduzida para uma
linguagem familiar e acessível ao fiel, sem cortes e sem precisar da mediação
de intérpretes, significava poder encontrar o que buscavam avidamente: por um
lado, um Deus vivo, fraterno e humano para com suas fraquezas, e, por outro,
uma nova concepção do sacerdócio.
A definição reformada do sacerdócio
universal, expressa pelo lema “Cada homem é pastor de si mesmo”, respondia a
este desejo de contato direto com a Palavra de Deus e a uma recusa de todo tipo
de intermediação. Para o mercador itinerante, por exemplo, o papel da Igreja
como intermediária apagava seu mérito de ter obtido êxito em seu ofício graças
ao empenho e a uma educação cultivada privadamente. O gosto pela autonomia e
pelo governo de si mesmo não se manifesta apenas nas coisas políticas,
refletindo-se também em uma religiosidade mais ativa. Fossem livres, rendeiros,
assalariados ou servos, eles traduziam a atuação eclesiástica como mais uma
forma de exploração senhorial ou como sua legitimação.
Para a maioria dos fiéis, a Reforma não
era um protesto contra os “abusos” das autoridades eclesiásticas, mas uma
revolução de sentimentos. A vida deixava de buscar na morte o seu ponto de
referência, e os vivos se empenhavam em usar seus méritos aqui na Terra mesmo.
Silvia Patuzzié professora
da PUC-Rio e da Fundação Getulio Vargas e autora de “Humanistas, príncipes e
reformadores no Renascimento”, no livro Modernas Tradições. Percursos
da Cultura Ocidental, séculos XV-XVII (Editora Access/Faperj, 2002).
Saiba Mais - Bibliografia
BAINTON, RolandH. Erasmo
da Cristandade. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1988.
FEBVRE, Lucien. Martinho
Lutero, um destino. São Paulo: Três Estrelas, 2012.
MAFRA, Clara. Os
Evangélicos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
Saiba Mais - Filmes
Lutero (Luther)
Ano: 2003
Áudio: Português
Duração: 121 minutos
A
rainha Margot
Filme inspirado na obra de Alexandre Dumas apresenta as intrigas por trás
da noite de São Bartolomeu, um dos principais massacres da França, acontecido
há 440 anos.
Margot, interpretada pela encantadora
atriz Isabelle Adjani, é o apelido de Margarida de Valois (1553-1615), irmã de
Carlos IX e filha do rei Henrique II com Catarina de Médecis. A posição nobre
fez com que ela testemunhasse e fizesse parte – ainda que forçosamente – das
disputas por poder alimentadas pelos conflitos religiosos. Menos de uma semana
antes da noite de São Bartolomeu, Margot havia sido obrigada a se casar com o
líder protestante Henrique de Navarra (Daniel Auteil), numa tentativa de manter
a paz no reino. Logo no início do filme, Margot avisa ao marido: “É um
casamento pela paz. Ninguém me obriga a dormir com você”.
A união, idealizada por Catarina de Médecis,
de nada adiantou para diminuir a tensão no reino. O filme não mostra, mas a
rainha-mãe já havia feito Carlos IX assinar, dois anos antes, o tratado de Paz
de Saint-Germain, concedendo liberdade de culto aos protestantes em regiões
específicas e permitindo que eles fossem admitidos em empregos da administração
pública. No entanto, os católicos não gostaram das concessões e os protestantes
não as acharam suficientes. E o conflito continuou.
A origem das disputas, que aconteciam
também em outros países da Europa, está no ano de 1517, quando Martinho Lutero
proclamou seu rompimento com a Igreja Católica. João Calvino, em Genebra, logo
o seguiu, inspirando e coordenando os protestantes franceses. Os massacres pelo
reino foram generalizados.
Catarina de Médecis foi uma figura
importante na busca pela paz. No filme, no entanto, o destaque é dado a seu
lado manipulador, brilhantemente encarnado pela atriz italiana Virna Lisi. Ela
aparece como culpada pela morte de pelo menos três importantes personagens
históricos, incluindo o próprio filho, Carlos IX.
No longa-metragem, na obra de Dumas e,
possivelmente, também na vida real – como ilustram livros como Histoire
de France, de Pierre Miquel -, a rainha-mãe teria encomendado o assassinato
do almirante Coligny, importante chefe protestante. Dumas relata a grande
admiração que Carlos IX tinha pelo almirante, chamando-o inclusive de “meu
segundo pai”. Na adaptação para o cinema, fica claro que Catarina não teria
gostado da aproximação, que permitia a Coligny ter forte influência sobre o
rei. No dia 22 de agosto, a tentativa de assassinato acabou falhando e, ao ser
descoberta pelos protestantes, gerou grande revolta.
A partir deste ponto, outro personagem que
ganha espaço no filme é o estranho rei Carlos IX (Jean-Hugues Anglade).
Instável, infantil e certamente despreparado para o posto, ele vive cansado da
influência da rainha-mãe e dos interesseiros à sua volta. Sem saber como reagir
à provável revolta protestante depois do atentado a Coligny, é influenciado por
Catarina e ordena que todos os chefes da religião sejam assassinados. Henrique
de Navarra é um dos únicos a escapar da morte ao abandonar o protestantismo e
se tornar católico. Ele repetiria o gesto alguns anos depois, já como Henrique
IV da França, e diria a famosa frase: “Paris bem vale uma missa”.
Dumas e a pesquisa histórica
A cena (tanto no livro de Dumas, quanto no
filme) em que o quarto de Margot é invadido por um protestante ferido durante a
noite de São Bartolomeu, por exemplo, pode ser mais do que uma invenção do
escritor francês. O fato foi inspirado nas memórias da própria Margot. Dumas,
no entanto, substituiu o nome citado por ela – Monsieur de Teian – pelo de
Joseph La Môle, conhecido como um de seus amantes.
O problema ao se tentar entender a
história oficial é que há dúvida, entre alguns historiadores, se essas memórias
de Margarida de Valois foram realmente escritas por ela. A francesa Éliane
Viennot, professora de literatura da Universidade de Saint-Étienne, por
exemplo, publicou em 1996 um artigo defendendo a veracidade das memórias. Seja
como for, o documento utilizado por Dumas tem posicionamentos importantes:
Margot tira boa parte da culpa de sua mãe Catarina em relação ao massacre, e
afirma que os idealizadores teriam sido seu irmão duque de Anjou (futuro
Henrique III) e o duque de Guise. Este último também estaria na origem do
atentado contra Coligny.
Sangue e luxúria
Dumas
se apropria das informações fornecidas por Margot e por outros memorialistas,
acrescentando detalhes sórdidos, enfatizados na película de Patrice Chéreau. O
longa-metragem pode surpreender os fãs mais tradicionais do escritor, não
acostumados a tantas cenas de violência e nudez - acentuadas por fortes
insinuações de incesto e banhos de sangue sobre roupas mais brancas do que em
comercial de sabão em pó (como no cartaz francês, acima). Margot seria uma
libertina: dormiu com seus três irmãos, além do marido Henrique de Navarra, o
duque de Guise e o conde de La Môle. Em uma das cenas mais marcantes do filme,
ela é assediada pelos irmãos, que a deixam praticamente nua enquanto mostram
marcas deixadas por La Môle em seu pescoço e coxas. O duque de Alençon, mais
novo dos irmãos, escancara: “Se não fosse estéril, teríamos um bastardo”.
Teria Margot relações sexuais com seus
próprios irmãos? Catarina de Médicis seria a responsável por uma série de
envenenamentos? Para Dumas, isso pouco importava. Ele já havia sido acusado por
seus adversários de violar a história de forma insolente em outros de seus
romances. Sua resposta era simples e irônica: “Reconheço que a violento, mas
faço lindos filhos com ela”.
Assim sendo, Patrice Chéreau apropriou-se
de uma das maiores obras de Dumas, e fez um filme que pode ser considerado,
facilmente, um lindo bastardo do escritor francês.
Direção: Patrice Chéreau
Áudio: Francês/Legendado
Duração: 137 minutos
Henrique IV:
O Grande Rei da França
No
comando dos protestantes está Henrique de Navarra, que conduz seus homens
contra a poderosa rival de sua mãe, Catarina de Médici, rainha da França. Catarina
oferece a Henrique a mão de sua filha, Margot, em sinal de reconciliação, mas o
casamento termina num banho de sangue. Ele sobrevive ao Massacre do dia de São
Bartolomeu, mas é feito prisioneiro durante quatro anos.
Embora
recorrendo a qualquer tática para obter o trono, Henrique se torna um rei que,
pela sua liberdade de religião e de opinião, pode genuinamente dizer que é um
dos verdadeiros humanistas.
Direção: Jo Baier
Ano: 2010
Duração: 148 minutos
O
fim de um monopólio
Só com a vinda da família real os protestantes conseguiram instalar-se e
disseminar sua diversidade religiosa no Brasil.
Mas os dois casos foram exceções. Depois
de expulsos os franceses e os holandeses, a estrutura religiosa da Igreja
Reformada foi desfeita, e o Brasil voltou ao monopólio da catequização
católica. Assim permaneceria até o século XIX.
A transferência da família real
portuguesa, em 1808, foi um marco para a entrada de estrangeiros, e suas
crenças, na nova sede do governo português. O Tratado de Comércio e Navegação
assinado em 1810, que garantiu a abertura dos portos brasileiros para produtos
ingleses, assegurava também, em um de seus artigos, a liberdade de consciência
e culto, permitindo igrejas protestantes com aparência discreta e sem buscar a
conversão dos católicos. No ano seguinte, já se instalava, no Rio de Janeiro, a
primeira igreja protestante, de denominação anglicana. Atendia os súditos
ingleses, que antes tinham que se reunir para os cultos em residências ou
navios britânicos ancorados. Em 1824, a nova Constituição reafirmou o
catolicismo como religião do Império, mas reconhecia outras crenças cristãs,
desde que não houvesse catequese nem ataques à religião oficial.
A imigração alemã trouxe as primeiras
comunidades luteranas, instaladas em 1824 em Nova Friburgo (RJ)
e em São Leopoldo (RS). A forte imigração no Sul contribuiu para o aparecimento
de diversas outras colônias. As igrejas luteranas eram simples, sem sinos,
torres ou qualquer identificação, construídas e organizadas pelo esforço dos
colonos.
Na mesma época, formaram-se também
colônias suecas, suíças, holandesas, escocesas, inglesas e norte-americanas,
espalhando diversas vertentes dos cultos reformados Brasil afora. A influência
dos protestantes norte-americanos foi importantíssima. Com a Guerra Civil nos
Estados Unidos (1861-1865), muitos vieram em busca de refúgio e de terras.
Incentivavam e financiavam a expansão de missões, enxergando no Brasil uma
seara fértil para a conversão. Fundaram templos presbiterianos (o termo deriva
da organização governada por uma assembleia de presbíteros ou anciãos),
batistas (que enfatizam o batismo de adultos como exposição bíblica e pública
da fé) e metodistas (que pregam o estudo metódico da Bíblia e a relação pessoal
entre o indivíduo e Deus). Essas igrejas contaram com a simpatia dos que viam
no protestantismo sinais do progresso norte-americano e dos preceitos
republicanos, ao mesmo tempo que viam o atraso do Brasil e da monarquia como
influência do catolicismo.
Os protestantes divulgaram sua mensagem
nas cidades e nos campos, atendendo os mais diversos grupos sociais e
distribuindo Bíblias de Norte a Sul. Aos poucos, eles se estruturaram e
aumentaram o raio de ação, difundindo ideias e criando missões, centros de
auxílio, hospitais, obras assistenciais e escolas. A educação sofreu
transformações fundamentais ao incorporar experiências de outros países, como
jardins de infância, classes mistas de meninos e meninas, prédios projetados
especificamente para o ensino, salas próprias para aulas práticas, novos
conteúdos e disciplinas.
A evangelização protestante teve,
portanto, diferentes etapas no Brasil: os franceses visavam os índios; no
período holandês, alcançou índios, negros e brancos; com as migrações do século
XIX, os brancos e negros. O século XX, por fim, veria o avanço pentecostal,
logo após seu surgimento nos Estados Unidos.
Embora “evangélico” e “protestante” sejam
vistos como sinônimos, os termos têm significados distintos. Em sua origem,
“evangélico” diz respeito àquele que se submete ao ensinamento do Evangelho,
sendo apenas a Bíblia sua fonte de revelação. O termo “protestante”, por sua
vez, advém de um documento de protesto apresentado pelos luteranos na segunda
Dieta de Spira (1529), que declarava a fé católica como a única legal. No
Brasil, em geral, “protestante” se refere aos fiéis das igrejas oriundas da
Reforma, como os presbiterianos, luteranos e anglicanos, enquanto “evangélicos”
abrange os seguidores das igrejas pentecostais e neopentecostais.
O Pentecostes é uma data importante do
calendário cristão: comemora a descida do Espírito Santo sobre os apóstolos de
Jesus Cristo e é celebrada 50 dias depois do domingo de Páscoa. A doutrina
pentecostal se caracteriza pela crença no Espírito Santo e na plenitude da vida
moral. Sua primeira igreja no país foi instaurada em 1910, em Belém do Pará,
pelos suecos Daniel Berg e Gunnar Vingren. Chamada de Missão da Fé Apostólica,
mais tarde ganharia o nome com que alcançou todo o Brasil: Assembleia de Deus.
Também em 1910, o italiano Luigi Francescon deu início à Congregação Cristã,
que teve forte presença ao Sul do país, a partir de São Paulo.
Novas denominações pentecostais ganharam
espaço a partir dos anos 1970, como as igrejas Deus é Amor, O Brasil para Cristo,
Internacional da Graça e a Universal do Reino de Deus. Todas enfatizam o
batismo com o Espírito Santo, recorrem a cânticos de louvor, sessões de cura e
de libertação, incentivam a prosperidade, dão testemunhos de graças e milagres
alcançados e promovem o assistencialismo. Assim multiplicaram seus fiéis e
aumentam cada vez mais sua influência.
Angelo Adriano Faria de Assis é professor da Universidade Federal de Viçosa e autor de Macabeias
da colônia – criptojudaísmo feminino na Bahia (Alameda, 2012).
Saiba Mais - Bibliografia
CÉSAR, Elben M. Lenz. História
da Evangelização do Brasil. Viçosa: Ultimato, 2000.
MENDONÇA, Antônio Gouvêa,
VELASQUES FILHO, Prócoro. Introdução ao protestantismo no Brasil.
São Paulo: Loyola, 2002.
VAINFAS, Ronaldo. Traição:
um jesuíta a serviço do Brasil holandês processado pela Inquisição. São
Paulo: Companhia das Letras, 2008.
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