Desde Aristóteles se sugere que o Estado existe para o bem da população,
mas raras são as vezes que os anseios do povo foram atendidos, além dos
momentos de confronto, manifestações e protestos.
R.A.T.M.
A ideia de que o Estado existe para o bem
da sociedade é tão antiga quanto infantil.
Aristóteles, talvez o mais importante
filósofo político da Antiguidade (seguramente o mais famoso), expôs ainda no
século IV a.C. o princípio segundo o qual o que conhecemos como “Estado” (ele
chamava de πολις, “cidade”) existe para garantir a felicidade de um grupo – a
coisa mudava de figura quando o governo se corrompia. É bom lembrar,
entretanto, que Aristóteles se empenhou em construir sistemas explicativos
muito gerais, “filosóficos” no melhor sentido do termo. Ele estava muito mais
preocupado em entender como as coisas funcionavam do que em dar conta da real
constituição, por exemplo, dos regimes políticos - não custa lembrar que
cultivava um certo desprezo pela História.
Muito diferente, por exemplo, do seu
contemporâneo Platão. Este outro grego, pelo menos no que vemos em seu relato
em "A república" sobre os fatos que levaram à condenação de Sócrates,
seu mestre, sabia muito bem que o Estado não era necessariamente guardião de
virtudes. Podia ser, aliás, o exato oposto.
O fato é que a ideia exposta por
Aristóteles acabou caindo nas graças dos líderes políticos e religiosos
ocidentais ao longo de toda a Idade Média. Era muito comum, quando se tentava
explicar a origem do poder político dos governantes (por si só eticamente
inexplicável), dizer que este, além de dado por Deus, existia para o bem dos
súditos. Toda teoria política ao longo de mil anos foi uma variação deste tema.
Ora pendendo mais para o lado de Deus, que só poderia querer o bem da sua criação,
ora para um suposto acordo feito entre homens em um passado remoto no qual
decidiam pela fundação de um Estado para a garantia da felicidade e da
segurança de todos. Registre-se que nunca houve prova de que este suposto
acordo ancestral tenha acontecido, mesmo que uma única vez. Trata-se
evidentemente da mais eficaz mitologia política da qual se tem notícia e que
não está totalmente fora de uso.
Boa parte das teses mais radicais ao
longo do período posterior, sobretudo entre os séculos XVII e XIX, recorrem a
esta ênfase humana do mito do Estado – e podemos colocar neste mesmo saco todos
os livres-pensadores franceses, os constitucionalistas ingleses, os “pais
fundadores” norte-americanos, os filósofos iluministas, os revolucionários de
1789, os liberais e democratas do século XIX, os comunistas do século XX. A
naturalização da necessidade da existência do Estado ficou mais associada ao
nome do inglês Thomas Hobbes (1588-1679), porém esta talvez tenha sido apenas
uma das vozes mais perceptíveis em um coral muito bem afinado.
Mas é claro que nem todos concordavam com
isso. Maquiavel, há exatos quinhentos anos, em 1513, expunha de maneira crua em
"O príncipe" qual era o objetivo do Estado. Nada de felicidade da
comunidade. Nada de segurança dos cidadãos. O Estado existia para perpetuar a
si próprio. A verdade era tão evidente e tão desconcertante que o escritor
florentino foi condenado unanimemente: suas obras foram consideradas heréticas
por católicos e protestantes (em uma época na qual estas facções não se
entendiam sobre nada), liberais e comunistas. Ser chamado de “maquiavélico”
ainda é ofensivo. Entretanto, Maquiavel não estava apenas dando conselhos a um
governante para conquistar o governo e manter o poder: ele estava mostrando que
os governantes bem-sucedidos e as formações estatais que tiveram alguma
perenidade (as cidades-estados italianas da sua época viviam grande
instabilidade) gastavam todas as suas energias na autopreservação, independente
do julgamento das suas ações.
O fato inelutável, entretanto, é que não
há registro de uma formação estatal que tenha como traço constitutivo essencial
o bem do conjunto da população – ao menos não de uma forma voluntária, mesmo
que os seus instituidores digam (e até acreditem) estar movidos pelas melhores
intenções. Desde que o Estado realmente se impôs no Ocidente como forma de
organização social, em fins do século XV, ele tem sido pouco mais
(essencialmente) do que uma forma de privatização do controle sobre uma parcela
considerável de gente (súditos ou cidadãos).
Tomando-se como exemplo os governos
monárquicos hereditários, o que temos entre os séculos XV e XVIII é uma tentativa
de manutenção de dinastias – e o largo recurso a exércitos constituídos por
mercenários estrangeiros dá uma boa medida das intenções dos governantes
durante toda esta época: manter a “ordem interna”, isto é, manter afastada a
possibilidade de mudança na direção do aparato estatal que beneficia uma casa
real e o seu sustentáculo político-militar, a aristocracia, bem como a
instituição que deve lhe dar sustentação ideológica, o clero.
Nas formas constitucionais de governo,
sejam repúblicas ou monarquias, o que se vê no mesmo período é apenas uma
variação de intensidade do mesmo princípio (e talvez esteja aí uma chave para
compreender mudanças ocorridas posteriormente dentro de sociedades que
conheceram formações estatais). Veja-se, por exemplo, o caso inglês. Ao longo
do século XVI, boa parte da história política da pátria de Henrique VIII (e
mesmo os seus desdobramentos na sociedade e na cultura) pode ser interpretada
como uma luta entre grupos privados pelo controle do aparato estatal. Disputas dinásticas
que assumiam feição religiosa, como deveria ocorrer em um século no qual as
legitimidades de governo deviam dar conta da queda de braço que acontecia dos
dois lados do Canal da Mancha para saber quem era o real porta-voz de Deus
(parte considerável da Europa já não se reportava mais ao Trono de São Pedro).
Quando a poeira desta grossíssima baderna
baixou, o governo instaurado em 1685 por Jaime II tentou recuar com as
conquistas dos antigos revoltosos: o Parlamento convidou um nobre holandês,
Guilherme de Orange, para assumir o trono e colocou Jaime II para correr. A
partir daí, o Estado inglês é obrigado a tratar seus súditos de outra maneira.
Não que ele funcione naturalmente desta forma: se uma parte considerável
daquela população se sente especialmente violentada pelo Estado, ela o
confronta.
Na França, um século depois, as
autoridades tradicionais também se veem acuadas por uma parcela significativa
da sociedade. Os governos revolucionários que se sucedem a partir de julho de
1789, inclusive decapitando um rei e uma rainha, precisam dar conta destas
demandas que passam a chegar diretamente das ruas.
O governo instaurado, evidentemente, não
chama a população para “conversar pacificamente”, uma vez que aquele não
reconhece nesta um interlocutor político; o governador do Rio de Janeiro,
recentemente, afirmou que a população não age politicamente de forma
“espontânea”, o que é apenas uma atualização da negação que o Estado dispensa
desde sempre à maior parte da sociedade no que diz respeito à sua capacidade
“política”. A única ação “política” que o Estado pode reconhecer na sociedade,
em nosso caso, é o voto.
Se observarmos do século XXI para o
passado, entretanto, vamos ver que os governos franceses que se instalaram no
século XX tiveram um cuidado maior quando precisam se preservar da população.
Os movimentos liberais ou conservadores daquela sociedade ao longo dos últimos
cem anos (e mesmo nos últimos meses) deixam bem claro que aquele Estado não
pode agir muito explicitamente em contrariedade da vontade da maior parte da
população: o povo francês consegue constranger o Estado quando isto é do seu
interesse.
No caso norte-americano, em geral
considerado um exemplo de democracia para o mundo (na maior parte das vezes,
por eles próprios), a sociedade constrange constantemente o Estado – obviamente
os motivos foram diversos, mas é bem significativo de uma cultura política que
quatro presidentes tenham sido assassinados no cargo (Lincoln em 1865, Garfield
em 1881, McKinley em 1901 e Kennedy em 1963).
O que acontece, neste e em outros casos, é
que a sociedade norte-americana, para o bem ou para o mal, amedronta
cotidianamente quem a está governando – o político americano típico precisa
fingir que é o próprio povo – andando de metrô ou de bicicleta – ou deve estar
muito explicitamente separado da sociedade – seguranças, carros blindados,
esquemas especiais. Em todo caso, por via das dúvidas, ele precisa parecer agir
a favor da sociedade (políticos norte-americanos são excelentes pedintes de
desculpas e, falando de forma hipotética, é muito improvável que o mais valente
destes desfira um soco na cara de um ofensor).
Não é preciso ir longe, entretanto, para
perceber que a sociedade só consegue segurança e felicidade quando confronta o
Estado e o próprio arcabouço legal (as normas criadas pelo próprio Estado para
protegê-lo). Temos aqui alguns exemplos bem básicos: a própria existência da
sociedade e do Estado brasileiros de maneira autônoma de Portugal só existe por
conta do constrangimento que a sociedade (ou parte dela) impôs ao antigo Estado
lusitano e às suas leis. A independência do Brasil só se deu porque um
determinado segmento social descumpriu as leis portuguesas, declarou a
emancipação em 1822 e fez uma guerra que se arrastou até 1825.
A escravidão só teve fim oficial (isto é,
reconhecido pelo Estado brasileiro) em 1888 porque escravos e pessoas livres
que eram contra o cativeiro descumpriram o direito à propriedade privada
garantido pela Constituição de 1824 – com desobediência pacífica mas também com
uma grande dose de violência (escravos e abolicionistas eram, do ponto de vista
da ordenação jurídica do Estado brasileiro, baderneiros).
Ao longo do século XX, o direito ao voto,
o direito à educação pública, o direito à aposentadoria, o direito à jornada de
trabalho de oito horas diárias, o direito ao salário mínimo... Nada disso foi
dado pelo Estado para a felicidade e a segurança da população: tudo foi
resultado do constrangimento que a própria população impôs ao Estado (baderna,
portanto).
É muito comum, entretanto, por parte
destes gestores do Estado, que se diga que vivemos em um “regime democrático”
(trata-se de uma atualização daquele mito político do qual falamos, segundo o
qual o Estado é resultado de um acordo entre os homens e que ele existe em
benefício da maioria). Não é preciso demonstrar que se trata de uma falácia.
Mas vou fazer assim mesmo: basta que se mencione a existência de tropas de
choque. Qual é a função desta divisão da força policial? Ora, é manter a “ordem
interna”, isto é, a segurança do próprio Estado. Por isso seu nome não é “tropa
de manutenção da segurança e da felicidade dos cidadãos”. É choque mesmo, para
confrontar a sociedade quando uma parcela desta entrar em desacordo físico com
a direção do Estado (a que damos o nome de “governo”).
Outro cacoete discursivo dos governantes
demonstra qual é o fim essencial do Estado. É muito comum que os seus
porta-vozes digam, no caso das atuações em centros urbanos durante
manifestações, que o objetivo destas forças policiais é “garantir o direito de
ir e vir do cidadão”. Acontece que em todos os outros dias o Estado não se
mobiliza para garantir o direito de ir e vir do cidadão (para não mencionar
outros, bem mais simples), que gasta horas no trânsito, da forma mais
desconfortável possível e pagando preços altíssimos em deslocamentos entre a
casa e o trabalho. (Os gestores do Estado, por outro lado, não estão expostos a
estas mesmas condições, como se sabe, assim como se sabe quem é que paga por
isso.)
Também se argumenta que estas mesmas
tropas utilizam “armas não-letais”. Acontece que não existem armas não letais.
Há armas, simplesmente – pode-se matar alguém com um travesseiro de penas de
ganso ou com água filtrada, desde que usados corretamente. Também é bom ter em
conta que dispositivos que podem facilmente cegar pessoas ou matar por
intoxicação ou sufocação não deveriam ser designados por termos eufemísticos.
Além disso, estas armas são utilizadas pelo Estado contra a parcela descontente
da sociedade para garantir a sua permanência no controle do mesmo, sobretudo
quando o que está em jogo é a garantia de renda por parte daqueles que
sustentam política e economicamente aqueles que o estão gerindo (não se pode
supor que os valores gastos por partidos políticos nas campanhas eleitorais
serão compensados por qualquer verba que seja privatizada de forma
contabilizada).
Enfim, é provável que se ouça de
representantes de partidos políticos (sejam governistas ou oposicionistas) que
há disputas de projetos de Estado, que uns projetos são opressores enquanto
outros são democráticos. E agora há uma miríade de tópicos de discurso como
“orçamento participativo”, “conselho da cidade”, “transparência” e tantos outros,
que servem justamente como intermediários ideológicos entre as populações e os
gestores estatais, justamente para amortecer os conflitos e o potencial de
constrangimento.
Trata-se, entretanto, de uma falsidade:
quem entra na gerência do Estado (em nosso ordenamento jurídico, isso acontece
através destas instituições chamadas “partidos”) atua necessariamente para a
sua manutenção, mesmo que isto seja feito contra o conjunto da sociedade. O
militante partidário que disser o contrário estará mentindo – mesmo que
primeiramente para si próprio. Além disso, a ideia segundo a qual pode-se
aderir a um ou outro “partido” com o fito de se escolher um “mal menor” é
ofensiva à inteligência e à dignidade humana.
O objetivo do Estado não é a sua segurança
e a sua felicidade: é que você obedeça e pague impostos. O governo em prol da
sociedade só existe quando a sociedade está mobilizada contra o Estado. Para
criar e garantir direitos, a sociedade precisa constranger permanentemente e de
todas as formas possíveis quem é o governo. Pelo menos é o que tem acontecido
nos últimos 600 anos.
Em tempo 1:
Houve uma experiência no século XX na qual o Estado dizia ser (e acreditava
ser) a manifestação total da vontade da sociedade, assim como a maior parte da
sociedade acreditava (com uma boa dose de medo, é verdade) que o Estado era a
manifestação suprema de todas as suas vontades. O nome desta experiência é
“nazismo”.
Em tempo 2:
Os vândalos eram um povo germânico que vivia no norte da Europa e foi um dos
invasores do Império Romano no século V. Fugiam da fome e da guerra, e acabaram
entrando em território imperial. Em pouco tempo, chegaram às margens do
Mediterrâneo e atravessaram para o norte da África. Eles eram cristãos, mas de
uma dissidência chamada de "arianismo", considerada uma heresia pela
Igreja romana - motivo pelo qual eram amaldiçoados, perseguidos e combatidos.
Quando invadiram a África, elegeram como alvos preferenciais as igrejas e os
mosteiros cristãos romanos - "vandalismo" passou a significar, no vocabulário
de origem latina, a destruição daquilo que é respeitável por sua beleza e por
sua antiguidade. Os vândalos, bem como os outros povos germânicos, acabaram
triunfando sobre o Império Romano. Não porque eram mais fortes: a população
romana, sobrecarregada, faminta e violentada com a opressão do Estado e da
Igreja, aderiu aos recém-chegados. A primeira grande transformação na sociedade
ocidental em nossa era se deu naquele momento.
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