Brasil dos insetos
Ronaldo
Vainfas
Não faltam exemplos na história do
Ocidente em que animais se viram tratados pela Justiça como se fossem humanos.
O código espanhol de Afonso, o Sábio, datado do século XIII, previa pena de
morte para todos que tivessem relações sexuais com animais - a bestialidade -
acrescentando que também o animal deveria morrer para apagar a lembrança do fato.
Séculos depois, a Inquisição espanhola andou inventariando cabras e vacas que
alguns andaram namorando nas lides do pastoreio. Na Idade Média francesa houve o
caso de uma menina de 12 anos acusada de manter relações sexuais com seu cão. O
mais incrível é que o cão esteve presente ao inquérito.
Na História do Brasil também há casos
bizarros de bestialidade. Mas há outros mais interessantes, envolvendo o
combate aos insetos. A cruzada contra os insetos começou cedo. Basta ler a
carta do jesuíta Jerônimo Rodrigues, datada de 1561, queixando-se do "grandíssimo
número" de insetos minúsculos que não se via na Europa. As pulgas eram a
perdição das ceroulas e camisas, que ficavam pintadas de sangue. Chegou a
contar 450 pulgas em sua cama, certa noite, "sem falar nas que
fugiram". Os grilos destruíam livros e vestidos. Baratas, dizia, "não
se pode crer, porque o altar, a mesa, a comida, e tudo era cheio delas".
Laura de Mello e Souza nos conta algumas destas queixas no seu livro O Diabo
e a Terra de Santa Cruz, convencida de que, salvo pelas praias e mata
virgem, poucos viram o Brasil como paraíso. Culpa dos insetos.
Nada, porém, supera um processo movido
pelos capuchos de São Luís do Maranhão, em 1713, contra formigas que flagelavam
o convento de Santo Antônio, documento que me passou o historiador Ângelo de
Assis. O caso foi ao juízo eclesiástico, testemunhas foram arroladas, e houve
quem as defendesse em face do vigário-geral. Antônio da Silva Duarte se apresentou
como advogado das formigas, apontadas como rés no processo, embargou testemunhas,
ofereceu contraditas. Boa parte das testemunhas garantiu que as rés agiram sem
nenhuma malícia, por serem criaturas desprovidas de razão, "e não saberem
do bem nem do mal". Alguns acrescentaram que "antes da fundação do
dito convento já as rés tinham suas moradias no dito convento", de sorte
que não podiam ser consideradas intrusas. O caso se arrastou até 1714 e os
autos de 19 fólios ficaram inconclusos.
O leitor haverá de perguntar que
importância pode ter, para a nossa história, esta disputa entre os capuchos do
Maranhão e o formigueiro gigante que molestava os frades em 1713. A bem da
verdade, pouquíssima. Mas, antes de achar que o Nosso Historiador da vez
escreve abrasado pelo calor carioca, desmiolado, considere que o affaire das
formigas faz parte de um outro mundo e outro tempo. Mundo encantado, barroco, onde
o real e o fantástico se misturavam cotidianamente. Tempo em que os diabos e os
espíritos eram tão reais quanto quaisquer criaturas. A outra hipótese para o
caso se inspira num sermão clássico do jesuíta Antônio Vieira que, condenando
os senhores de escravos maranhenses por capturarem os índios ao arrepio da lei,
disse que o Maranhão começava com a letra M porque M era a letra da mentira. Vieira era implacável.
De todo modo, no documento em causa, as
testemunhas disseram que as formigas não agiram de má-fé contra os capuchos,
nem poderiam. E a cruzada contra os insetos, que os jesuítas iniciaram e os franciscanos
prosseguiram, fracassou completamente. As formigas seguiram em paz e os insetos
continuaram a enxamear no Brasil.
Ronaldo Vainfas é professor titular de
História Moderna na Universidade Federal Fluminense e autor de Trópico
dos pecados: moral, sexualidade e Inquisição no Brasil colonial. 3ª
ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004.
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