Pela primeira vez desde que
começaram a ser publicados os anuários de segurança pública no Brasil, os
números de casos de estupros foram maiores que os de mortes violentas. A taxa
média brasileira ultrapassou 26,1 ocorrências por 100 mil habitantes, com
50.617 registros em 2012, contra 42.482 em 2011. Apesar do aumento,
pesquisadores e profissionais que trabalham de alguma forma com a questão afirmam
que os números ainda estão muito aquém da realidade. De forma geral, as
estatísticas policiais são pouco confiáveis, mas para crimes contra a liberdade
sexual, a subnotificação é muito grande, por várias razões. "Parte desse
aumento reflete, na verdade, um ganho de consciência e uma mudança no trabalho
da polícia, que agora é regulado por uma legislação diferente", diz a
socióloga Wânia Pasinato, que há 30 anos pesquisa o tema. A legislação
brasileira está melhor do que era desde a publicação da Lei 12.015, de agosto
de 2009, que ampliou as punições para qualquer tipo de coerção sexual. Até
então, só era considerado crime de estupro quando havia penetração vaginal.
Qualquer outra agressão era considerada
atentado violento ao pudor. Hoje, os crimes sexuais estão todos sob a
denominação de "crimes contra a liberdade sexual", o que permite
incluir os ataques que não chegam à penetração, envolvam outros atos
libidinosos, agressões verbais e também a garotos - que embora aconteçam em
menor número, são mais comuns do que se imagina. "Como os números de 2012
uniram dois tipos de ocorrências diferentes e os índices de atentado também
eram altos, pode estar havendo algum impacto", ressalva a coordenadora
técnica do Fórum Nacional de Segurança Pública, Patrícia Nogueira. Embora
sutil, a nova nomenclatura provocou grandes alterações na rotina e no registro
dos crimes, e também na sua punição. Com a nova lei, uma vítima tem mais
chances de ver seu agressor condenado e punido, mas ao mesmo tempo está mais
vulnerável do que nunca às distorções provocadas pela mentalidade atrasada que
perdura na sociedade, em geral marcada pelo que as feministas estão chamando
de "cultura do estupro". Por exemplo, se a vítima estava bêbada no
momento do ataque, ou com roupas consideradas provocativas, ou ainda em local ou
situação vulnerável, esses detalhes são citados como atenuantes e, na maioria
das vezes, desqualificam a vítima que, no limite, acaba sendo culpada pela
agressão que sofreu. "Já li sentenças em que o juiz argumenta que não
houve estupro porque a vítima era casada com o acusado e o sexo é uma obrigação
conjugal", conta alarmada, a advogada Cyn-tia Semíramis, doutoranda na
Universidade Federal de Minas Gerais e militante na seção local da Marcha das
Vadias.
Outro problema é que como o
texto da lei não define exatamente o que é crime, essa decisão fica nas mãos
do policial que atender a ocorrência. Cyntia diz que está no meio do caminho,
trabalhando com os policiais e as vítimas. "A situação dos policiais é
ruim, eles sofrem um estresse grande por conta da militarização da
polícia", afirma. Ela diz que há uma violência institucional no
treinamento da Polícia Militar, principalmente, e uma grande cobrança nas duas
corporações por metas e resultados. "Ao mesmo tempo eles não têm
segurança para trabalhar e moram no aglomerado (favela) ao lado dos bandidos e
são hostilizados", diz. Segundo a pesquisadora, mesmo treinado e
totalmente consciente de como deve agir, o atendimento não é bom.
"Acontece de tudo. Da negligencia até o exagero", diz. Ela conta o
caso de um turista italiano preso na piscina de um resort na Bahia em 2009 denunciado por estupro.
"Ele havia dado um selinho na filha, que estava nadando apenas de
calcinha", conta. "A culpabilização da vítima é hoje o maior problema
nessa área", diz Haydée Svab, estudante na Escola Politécnica de
Engenharia da Universidade de São Paulo (Poli/USP), integrante do PoliGen, um
coletivo feminista que atua na faculdade. Haydée cita o IntegraPoli, uma gincana
organizada para receber os calouros como a mais pura expressão da cultura do
estupro. "Estudantes da Poli fazem festas com conteúdos sexistas e
machistas, sempre em tom de brincadeira. A lista de tarefas publicada este ano
incluía provas como a piscina do Gugu, em que as calouras deveriam entrar na
piscina de biquini e lutar com os veteranos; lavar carro com roupa branca, gravar
um vídeo com um "cumshot surprise" (vídeos em que um aluno ejacula em
uma mulher sem o consentimento dela)", conta. A festa virou notícia por
conta de uma prova bizarra, que consistia em construir uma metralhadora para
atirar elásticos ao vivo em calouras vestidas apenas de biquini. O caso ganhou visibilidade
nos jornais, provocou escândalo e a direção da Poli suspendeu o evento
temporariamente. "Eles refizeram a lista, retirando as provas mais polêmicas,
mas isso não significa que elas deixaram de existir. Na verdade, foram
abafadas", conta a militante. A única medida foi contratar prostitutas
para o banho na banheira do Gugu. O IntegraPoli ocorre em março. Em agosto, na festa junina
realizada pelo Centro Acadêmico, outro escândalo, desta vez por conta da
barraca do tapa, uma versão torta da barraca do beijo. "Eles xingam a
garota violentamente para que ela fique com raiva e pague para dar um tapa na
cara do cara", conta Haydée. Organizações feministas e alunas reagiram
mal, o caso novamente ganhou visibilidade - desta vez por meio de um relato
publicado no Facebook - e a direção do Centro Académico de Mecânica e
Mecatrônica, responsável pela barraca, publicou uma nota de esclarecimento.
Segundo o texto, os excessos foram promovidos por uma minoria e não são aprovados
pela direção. Uma desculpa, já que o texto do convite da barraca é uma apologia
ao preconceito e a discriminação de mulheres:
"Você já foi taxada de vagabunda pelos seus colegas de classe? (...)
Aquele babaca já te chamou de gorda? (...)
A sociedade te menospreza pelo simples fato de ser mulher? (...)
Se sim, saiba que nós, do CAM, incentivamos e apoiamos todos esses tipos de
práticas que deixam vocês, mulheres, putas da vida."
"Cu de Bêbado(a) Tem Dono Sim!"
A frase acima tornou-se o bordão
dos coletivos feministas da USP e título de uma tese de mestrado de uma aluna
que aborda a questão. Como um microcosmo social, a Cidade Universitária
reflete o modo como a sociedade, de uma forma geral, trata da questão. Durante
a apuração foram ouvidos vários relatos de casos ocorridos há poucos dias, em
conversas informais com alunos, professores e funcionários, como o de uma
professora que teria sido arrastada para uma obra do campus e atacada em pleno
sol de meio dia. Ou de ocorrências em festas com alunas embriagadas, que são
estupradas por mais de um colega. "O bêbado é considerado, pela legislação,
um incapaz e, portanto, esses rapazes cometeram crime, mas a sociedade
considera que o erro é da garota", diz Silvia Pereira de Castro Casa
Nova, militante do Genera, um grupo da Faculdade de Economia e Administração
da USP de pesquisa em género e raça. Nenhuma dessas ocorrências, no entanto,
mesmo as que foram constatadas pela comunidade, chegaram a ser registradas
ou, se geraram algum registro, não foram investigadas.
O último caso com esse enredo e
noticiado na imprensa aconteceu no início do ano na Escola de Engenharia de
Lorena, da USP, durante uma festa de república e entre amigos de classe.
"A garota só entendeu que havia sido vítima de um crime depois de
conversar conosco. Até então, ela estava se sentindo mal, mas achava que a
culpa era dela, por estar na república onde foi atacada e ter bebido mais do
que devia", conta a estudante de ciências sociais Paula Kaufmann, que
faz parte da Frente Feminista da USP, criada em 2010 para tentar reduzir o
número de casos e ampliar o debate em torno da questão. "A primeira coisa
que queremos é ter acesso às estatísticas, o que é importante para adotar
medidas de controle", diz.
Segundo Silvia, o Serviço de
Assistência Social (SAS) tem dados sobre ocorrência não apenas de estupros,
mas de vários tipos de violência cometida contra mulheres no campus.
"Também são parciais, mas eles existem. O SAS administra o Crusp (Conjunto
Residencial da USP) e é lá que acontece a maior parte dos casos", explica
Silvia. Mas Paula reclama que esses dados não são divulgados para a
comunidade. "Não sei por que. Aqui atendemos, em média, dois casos por mês
e elas nos procuram porque não há outra opção. É um número alarmante",
avalia. Paula explica que a Frente é a reunião de todos os coletivos feministas
da USP e foi criada para fortalecer o movimento e tentar mudar a situação. Hoje
existe uma pauta de reivindicações em curso, que prevê a melhora da iluminação
do campus, corte da vegetação rasteira e um plano de treinamento da guarda
universitária para atender as ocorrências. "Além de despreparada, a
guarda é impedida de fazer a segurança pessoal, pois o estatuto diz que ela
foi criada para fazer a segurança patrimonial apenas", explica Paula. A
iluminação está sendo instalada.
Denúncias Crescem Mais
A cientista política Natália
Fontoura, pesquisadora da Coordenação de Igualdade de Género e Raça da
diretoria de Estudos e Políticas Sociais do Instituto de Pesquisas e Econômicas
Aplicadas (Ipea), diz que nos últimos anos surgiram reflexões interessantes que
os números dos anuários ajudam a intensificar. "A discussão da cultura do
estupro, em que o acesso ao corpo da mulher pelo homem é visto como natural e
que não depende de consentimento, está vindo à tona e isso ajuda a aumentar a
conscientização", diz. Inclusive das próprias mulheres, que segundo a pesquisadora
acabam assumindo posições machistas e equivocadas. "O caldo cultural serve
para todo mundo. Muitas mulheres sequer percebem", conta. Ela cita uma
pesquisa sobre cantadas. "É considerado natural o fato de uma mulher não
poder circular com a roupa que quer em qualquer lugar. Ou desviar o caminho
para não passar por grupos de homens em posturas agressivas", explica.
Movimentos como a Marcha das Vadias, que cresceu nos últimos anos, esclarecem o
equívoco e também podem estar influenciando os números apresentados pelo
fórum.
Patrícia, a coordenadora do
fórum, explica que foram tomadas várias medidas para tentar melhorar a qualidade
dos dados e diminuir eventuais distorções nos resultados provocadas por falhas
na apuração. "Fizemos uma classificação por grupos de dados, com duas
variáveis; a primeira sobre a qualidade da alimentação de dados pelos estados
do Sistema Nacional de Estatísticas de Segurança Pública e, a segunda,
relativas à forma como os bancos de dados estaduais são construídos",
explica. Os dados recolhidos são comparados com outras fontes, de forma a
criar uma referência. Com relação às denúncias, os números de registros no
sistema foram cruzados com o levantamento do Ligue 180, voltado para denúncias
de violência contra mulher. "Esse sistema tem registrado aumentos ano a
ano e entre 2011 e 2012, o número de denúncias especificamente de violência
sexual aumentou 66%", conta. O que para ela é um sinal claro de que a conscientização
está crescendo no Brasil.
Cyntia também aponta o aumento
da conscientização, em especial entre as meninas das novas gerações, que
engrossam as fileiras de movimentos como o Marcha das Vadias. Mas também vê o
crescimento de grupos conservadores, ligados principalmente às igrejas
neopentecostais. "Eles têm forte influência sobre as novas gerações e
colocam a mulher ideal como a santa, que deve ser submissa ao homem, não tem direito
ao prazer e só se relaciona sexualmente para ter filhos", conta. Um
quadro que gera grandes debates, mas ao mesmo tempo, em vez de promover a
aproximação, reforça e acirra os conflitos entre homens e mulheres.
Lilian
Primi é repórter freelancer at Editora Abril, Revista PIB, Carta Capital.
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