A cana-de-açúcar reforçou o papel do Brasil na economia global e foi
responsável pela invenção de uma nova sociedade. O negócio era ser “senhor”
Ao longo da costa brasileira – primeiro em
São Vicente, Pernambuco e Bahia, depois no Rio de Janeiro e em outras áreas –
foi no espaço dos engenhos que a sociedade colonial tomou forma. Essa nova
sociedade era fruto da Europa medieval, a partir do conceito jurídico de
estados ou ordens, com nobres e plebeus, pagãos e cristãos, cristãos-novos e
cristãos velhos. Foi modificada ainda com as novas realidades americanas de etnias
ou raças. A presença de índios e africanos, que tinham diferentes cores de
pele, culturas, religiões e línguas, criava novas hierarquias.
Os engenhos não erigiram essa pirâmide
social, mas a reforçavam. Nessas verdadeiras indústrias, os brancos eram os
donos da terra e das moendas. Os indígenas e depois os africanos eram a força
de trabalho. E cabia aos brancos pobres, mulatos, mestiços e libertos os
chamados “ofícios mecânicos”. Essas fazendas se transformaram no espelho e na
metáfora da sociedade brasileira: os brancos nas mais altas posições, os negros
(ou índios) na mais baixa, e as pessoas de raças misturadas, no meio. Gradações
bem parecidas, aliás, com as da produção do açúcar: o branco como o mais
valorizado; o de panela, escuro, e de menor valor; e o marrom, mascavo, no
meio.
Claro que sempre houve segmentos da
sociedade que não estavam diretamente envolvidos na produção açucareira – como
roceiros, boiadeiros, calafates (profissionais que vedam as frestas de uma
embarcação) e sertanistas – mas era frequente, de um jeito ou de outro, que
seus negócios (as plantações, o gado, as embarcações, os índios cativos)
estivessem relacionados com a economia do açúcar. Até o surgimento de Minas
Gerais como força econômica, era comum dizer que o Brasil era uma “sociedade e
civilização do açúcar”.
É fácil entender por quê. A produção do
açúcar cresceu de forma rápida especialmente em Pernambuco e na Bahia. Em 1570,
havia 60 engenhos no Brasil. Em 1630, eram 350 e produziam mais de 20 mil
toneladas por ano. A riqueza estava sendo criada. No fim do século XVII, o
lucro que a colônia dava a Portugal já era cerca de 50% maior que o seu custo
de manutenção. Esse período de rápida expansão no século XVI, quando algumas
fortunas foram criadas, foi possível em função dos altos preços do açúcar no
mercado europeu. Já na década de 1620, guerras e retrações econômicas
diminuíram as margens de lucro. Embora
os preços tenham subido novamente em 1640, o início da competição com o açúcar
das ilhas caribenhas nas décadas seguintes acabou abaixando os valores
novamente. Junto a isso, a demanda nessas ilhas por trabalho aumentou o custo
dos escravos no Atlântico. No fim da década de 1680, os senhores de engenho no
Brasil reclamavam que a indústria açucareira estava quase falindo. Mas as
guerras europeias novamente mudaram as condições do mercado, e os produtores
brasileiros outra vez ganharam confiança.
Depois de 1670, o Brasil nunca mais
dominou o mercado do açúcar no Atlântico da mesma maneira que antes, mas a
indústria açucareira permaneceu lucrativa. Na maior parte do século XVIII, os
senhores de um engenho bem administrado contavam com um lucro anual de 5 a 10%.
E em algumas décadas, como a de 1790, os ganhos foram consideravelmente maiores
que isso. Também é importante lembrar que, até no ápice da mineração de ouro no
século XVIII, o valor da produção agrícola sempre excedeu o do garimpo. Mesmo
quando Barbados, Jamaica e outras ilhas se tornaram grandes produtores de
açúcar, o Brasil produzia mais do que todos eles. Apesar das rivalidades e
competições entre si, o setor açucareiro – os senhores de engenho, os
lavradores de cana, os mercadores que entregavam o açúcar – continuaram sendo
uma força política na colônia.
O Brasil se tornou uma colônia de sucesso
porque a coroa portuguesa podia taxar a produção e o comércio de açúcar, e
percebia que a indústria açucareira crescia principalmente a partir de
investimentos privados. Enquanto isso foi verdade, a coroa portuguesa deu aos
produtores de açúcar alguma liberdade. O crescimento da produção de açúcar foi
acompanhado por outra mudança e, de alguma forma, só foi possível graças a ela:
a questão da mão de obra indígena. Na primeira metade do século da produção
brasileira, os povos nativos foram contratados ou forçados a trabalhar no
campo. Mas a relutância de guerreiros em trabalhar na agricultura – que eles
consideravam serviço de mulheres – as doenças epidêmicas da década de 1560, as
guerras de resistência, as leis reais contra a escravização dos indígenas (de
1570, 1595 e 1609), além dos esforços dos jesuítas que exigiam um tratamento
mais digno para os índios, tornaram muito caro e difícil o uso de trabalhadores
indígenas. A resposta veio da África.
Os escravos africanos eram caros, mas os
portugueses acreditavam que eles eram mais produtivos que os índios, e menos
propensos a fugir ou a morrer de doenças. “Sem açúcar, não há Brasil; sem a
escravidão, não há açúcar; sem Angola, não há escravos”, era um dito comum que
mostrava a centralidade do açúcar, da escravidão e da África para a existência
da colônia. O que saiu daí foi o sistema de plantation, que ao fim se
espalhou pelas Américas, de Luisiana a Barbados, como uma forma clássica de
produção do açúcar e, depois, para o cultivo de café, cacau e outras
monoculturas
A escravidão fazia parte de todos os
aspectos da vida brasileira, mas nas áreas do açúcar os escravos eram
frequentemente 70% da população. A alta mortalidade e as baixas taxas de
fertilidade dos escravos nessas áreas exigiam uma importação contínua de mais
africanos – um fato que ajuda a explicar a presença e a persistência da cultura
africana no Brasil. Quando o Conde de Arcos, governador da Bahia, reclamou com
exasperação em 1760 que sua capitania era “uma terra de hotentotes [povo do
sudoeste da África]”, ele estava reconhecendo a herança do açúcar.
Nas cidades verdadeiramente constituídas era possível
encontrar ainda figuras importantes, como mercadores portugueses e
estrangeiros, advogados, inspetores, fiscais de impostos e oficiais do governo.
Essa aglomeração até alimentava as tensões entre engenho e município, senhor de
engenho e mercador, mas pesquisas recentes têm mostrado que as elites urbana e
rural estavam muitas vezes interligadas, e que a posse de um engenho era um
objetivo social, não apenas uma atividade econômica. Os senhores de engenho
insistiam em usar esse título porque ele significava autoridade senhorial. Eles
raramente se autodenominavam “fazendeiros”. Como na famosa passagem de padre
Antonil (pseudônimo do jesuíta italiano Giovani Andreoni, que viveu no Brasil
entre os séculos XVII e XVIII): “é título [o de senhor] a que muitos aspiram,
porque traz consigo a ser servido, obedecido e respeitado de muitos”.
Muitos dos senhores de engenho tinham
origem plebeia ou eram cristãos-novos (ou seja, descendentes de judeus), mas
agora viviam e agiam como se pertencessem a uma aristocracia. Eles eram
apoiados pelos lavradores de cana, que não tinham capital suficiente para ter
seus próprios engenhos, mas que, ainda assim, cultivavam a cana-de-açúcar em
suas propriedades ou em terras alugadas. Essa classe era característica da economia
brasileira do açúcar. Entre esses lavradores havia desde homens ricos com alto status
até pobres e dependentes. O certo é que a maioria era branca e quase todos
desejavam possuir seu próprio engenho. Por volta de 1710, quando o Brasil tinha
525 engenhos, havia cerca de 450 famílias controlando-os, e em torno de 2 mil
famílias de lavradores. Juntos, eles formavam a elite colonial. Mesmo que
fossem frequentes as dívidas com mercadores da colônia, o setor açucareiro
encantava estes comerciantes: até eles buscavam ganhar prestígio social para
também se tornarem senhores de engenho.
Conforme a indústria açucareira se
desenvolveu, o campo se ajustou ao seu produto principal e às suas
necessidades. Gado, lenha e farinha de mandioca estavam todos ligados ao mundo
dos engenhos. E no centro de tudo estava a safra de nove meses, com a qual o
engenho operava dia e noite, moendo a cana e consumindo a lenha e as pessoas
para produzir açúcar e riqueza. “Um engenho de açúcar é o horror, e todos os
seus senhores são malditos”, disse o jesuíta Andrés de Gouvea, na Bahia, em
1627. Padre Antônio Vieira fez uma comparação do caldeirão de cobre e da fumaça
que subia das caldeiras com o inferno. Em um famoso sermão, ele equiparou os
escravos do engenho à paixão de Cristo.
Vieira era um realista, cujo irmão era
dono de engenhos na Bahia. Ele conhecia bem a economia da cana. Sempre
reconheceu que a riqueza do açúcar assegurava o crescimento do Brasil. O seu
comércio garantia a Portugal a capacidade de se manter independente e de
defender o seu império contra as ameaças de conquistas dos holandeses invejosos
ou a absorção pela vizinha Castela. Mesmo que no fim do século XVII Vieira
tenha reconhecido que a frota brasileira, às vezes, carregava “mais queixas que
caixas”, ele, como as demais pessoas, viram que o açúcar moldou o corpo e a
alma da colônia, suas virtudes e seus pecados, e deu importância ao Brasil
dentro do império de Portugal e da economia global. Esse legado continuaria de
diversas formas bem depois de o açúcar deixar de ser o principal produto
brasileiro.
Stuart B. Schwartz é professor da Universidade de Yale (EUA) e autor de Segredos internos: Engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835 (Companhia das Letras, 1995).
Saiba
mais - Filme
Menino de
Engenho
O filme (uma adaptação do romance de
José Lins do Rego) foi um dos maiores sucessos populares do Cinema Novo. Inaugurou
a carreira do diretor Walter Lima Jr., que dirigiu o primeiro longa-metragem
com produção de Glauber Rocha.
O filme que aborda a infância do personagem Carlinhos em meio à fase decadente do “ciclo da cana-de-açúcar”, transcorre na Paraíba dos anos 1920, como testemunha do advento de modernas usinas de cana-de-açúcar. Carlinhos cresce acompanhando as consequentes transformações sociais e econômicas da produção canavieira. Após a morte de sua mãe, o menino vai viver com o avô e os tios no engenho Santa Rosa. Depois de conviver com os moleques e empregados dos canaviais e de sofre sucessivas perdas e readaptações afetivas, chega à hora de partir para o colégio e ele não é mais o garoto inocente que chegou. O trem que corta a campina paraibana é um signo das transformações por que passa a produção canavieira e, por extensão, a vida dos personagens.
O filme que aborda a infância do personagem Carlinhos em meio à fase decadente do “ciclo da cana-de-açúcar”, transcorre na Paraíba dos anos 1920, como testemunha do advento de modernas usinas de cana-de-açúcar. Carlinhos cresce acompanhando as consequentes transformações sociais e econômicas da produção canavieira. Após a morte de sua mãe, o menino vai viver com o avô e os tios no engenho Santa Rosa. Depois de conviver com os moleques e empregados dos canaviais e de sofre sucessivas perdas e readaptações afetivas, chega à hora de partir para o colégio e ele não é mais o garoto inocente que chegou. O trem que corta a campina paraibana é um signo das transformações por que passa a produção canavieira e, por extensão, a vida dos personagens.
Ano: 1965
Duração: 110 minutos
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