Com as
campanhas de Alexandre Magno na Índia, e o retorno de alguns dos seus
participantes, começaram a chegar à Europa notícias sobre a existência, no
Oriente, de “uma espécie de bambu que produzia mel sem intervenção das abelhas,
servindo também para preparar uma bebida inebriante”, nas palavras do historiador
português Henrique Parreira.
Era por volta de 327 a.C., e aquelas
notícias inscreviam-se em um dos movimentos mais fascinantes da história da
humanidade: a disseminação, entre os diferentes povos e regiões, da grande
diversidade de plantas e animais existente nas diferentes regiões do planeta. A
cana-de-açúcar se tornaria uma das protagonistas deste fenômeno. Até então
desconhecida dos europeus, foi descrita a partir de elementos do mundo natural
que eles então conheciam. Ela se parecia fisicamente com os bambus e produzia
um líquido doce comparável ao mel.
As primeiras notícias sobre a utilização
da cana no Ocidente não mencionavam o açúcar. A extração do caldo da cana,
assim como seu emprego para produzir “bebidas inebriantes”, marcou o início da
sua presença nas sociedades humanas. Segundo pesquisas recentes, a Saccharum
officinarum, espécie de cana dominante no mundo, é uma gramínea
originária da região onde hoje se encontra a Papua Nova Guiné, na zona tropical
do Oceano Pacífico, onde deve ter sido domesticada por populações tribais há
mais de 7 mil anos. Não se sabe com precisão como se propagou na direção da
Índia e da China, mas por volta do século IV a.C. ela era cultivada nessas
regiões, inclusive com a manufatura do açúcar em escala reduzida. No século III
a.C., fabricava-se na China, a partir da cana, um produto sugestivamente
identificado pelos ideogramas “pedra” e “mel”.
O primeiro grande impulso para transformar
a cana-de-açúcar em um dos ícones do mundo moderno foi a sua disseminação para
a Bacia Mediterrânica, a partir do século X. O movimento ocorreu através dos
circuitos que conectavam a expansão árabe entre a Índia e a Europa. O açúcar da
cana passou a ser produzido no norte da África, no sul da Península Ibérica e
no sul da Itália. Era um mercado de escala reduzida, mas com ganhos
significativos, voltado para o ornamento culinário dos muito ricos e para
algumas práticas medicinais.
A partir do século XV acontece um segundo
impulso inovador, que ampliará enormemente o volume da produção e o alcance
social do seu consumo. De tal forma que no século XIX o açúcar já seria
artigo de primeira necessidade para os trabalhadores e a classe média dos
países em processo de urbanização e industrialização – um consumo
frequentemente associado à difusão do café, do chá e do chocolate, que o
antropólogo norte-americano Marshall Sahlins chamou de “drogas suaves” da
modernidade.
A indústria açucareira do Atlântico será
responsável pela invenção da primeira commodity agrícola, ou seja, um
produto cuja escala de produção e a cotação dos preços são definidas pelo
mercado global. Para entender o desenvolvimento dessa nova etapa, é preciso
considerar as características biológicas da planta e as especificidades físicas
do produto. A ecologia original da cana-de-açúcar é profundamente tropical, o
que delimitou sua difusão geográfica. O clima quente do Mediterrâneo até
aceitou a aclimatação da cana, mas de forma limitada. Os colonizadores
portugueses, em seu pragmatismo estratégico, aprenderam algumas lições sobre as
restrições ecológicas de novos cultivos. Foi o caso, por exemplo, do fracasso
da introdução do trigo, que exige uma espécie de clima temperado, no Nordeste
do Brasil. Com o tempo, eles se especializaram em introduzir nas colônias
atlânticas espécies originárias dos trópicos asiáticos e africanos. O pleno
florescimento da produtividade da planta ocorreu quando ela foi levada para
ilhas como a Madeira e as Canárias e, depois, com muito maior intensidade, ao
Brasil e ao Caribe.
A aceleração da produção de açúcar nas
regiões de floresta tropical do “novo mundo” também está relacionada com um
impacto social de enorme alcance: foi o principal estímulo para a construção do
escravismo moderno. Foi nos territórios da América tropical que o modelo de
produção de monoculturas e trabalho escravo gerou o maior impacto na ecologia
das paisagens. Desde o início da agricultura, especialmente no contexto das
civilizações complexas surgidas nos últimos 7 mil anos, o desflorestamento
global concentrou-se nas florestas temperadas do hemisfério norte. O
desmatamento tropical é um fenômeno moderno, que atingiu o seu auge no século
XX. O Brasil e algumas ilhas do Caribe, como Cuba e Jamaica, tornaram-se os
símbolos do desmatamento provocado pela cana. Mas ele se alastrou para várias
outras regiões, como as Ilhas Maurício, Indonésia, Filipinas, Havaí e Fiji.
Em seu livro Nordeste, de 1937,
Gilberto Freyre apresentou a entrada da cana na região como “um conquistador em
terra inimiga, matando as árvores, secando o mato, afugentando e destruindo os
animais e até os índios, querendo para si toda a força da terra”. Mais de dois
séculos antes, em 1711, o jesuíta Antonil já havia descrito a fórmula sintética
do canavial como um impiedoso conquistador ecológico – “feita a escolha da
melhor terra para a cana, roça-se, queima-se e alimpa-se, tirando-lhe tudo o
que podia servir de embaraço”. A floresta tropical, com toda a sua diversidade,
aos olhos dos produtores, representava apenas um “embaraço” para o avanço da
cana.
É importante não sermos anacrônicos no
julgamento dos agentes do desflorestamento tropical na formação do mundo
moderno. Naquele contexto cultural e ecológico, no qual as matas pareciam
infindas, eles fizeram uso dos fatores de produção com os quais contavam,
montando um sistema bastante eficaz. No
Brasil, as variedades de cana introduzidas de fora estavam livres das doenças e
dos parasitas que as atacavam em seus lugares de origem. Os solos da região,
especialmente o massapé, revelaram-se propícios. A chuva abundante e contínua
dispensava a necessidade de irrigação. As cinzas da biomassa queimada da Mata
Atlântica fertilizavam o solo, dispensando a adubação. O esgotamento dos solos,
após alguns anos de uso, era enfrentado com novas queimadas e com o avanço da
fronteira econômica.
E o impacto nas florestas não se devia
apenas à abertura de terras para o plantio. Para cada quilo de açúcar
produzido, cerca de 15 quilos de lenha eram queimados nas fornalhas que
alimentavam os enormes caldeirões onde o caldo da cana era cristalizado. Para
purgar o açúcar nas moendas, utilizava-se cinza de madeira, em muitos lugares
retirada dos manguezais. O conjunto da infraestrutura estava calcado na madeira
ou em materiais cuja produção requeria o uso de lenha em fornalhas – como
tijolos, telhas e cal. Das árvores
tropicais provinham até as caixas onde o açúcar era acondicionado para
exportação.
No outro extremo da cadeia econômica, o
açúcar transformava a ecologia do consumo. No mundo pré-moderno, a culinária
pouco utilizava o sabor adocicado – era pontual o uso de mel, de sorgo doce, de
frutas etc. O açúcar foi uma revolução. Por ser fácil de armazenar e
transportar, além de adoçar sem modificar muito o sabor da comida, tornou-se o
adoçante quase hegemônico. Apenas o açúcar de beterraba possui propriedades
físicas semelhantes. Mas, após crescer com força na produção europeia do século
XIX, chegando a gerar 65% do açúcar consumido mundialmente em 1900, a beterraba
perdeu fôlego no século XX diante do vigor resistente da velha cana tropical.
Hoje representa não mais do que 30% do consumo total.
Quais as consequências hoje do consumo
global de mais de 160 milhões de toneladas de açúcar, contra apenas 8 milhões
no início do século XX? Quais os efeitos sociais de um consumo médio anual de
23 quilos, em uma escala que vai de um mínimo de 8 quilos em Bangladesh para um
máximo de 66 quilos em Israel? Como avaliar o efeito da combinação do
açúcar com as bebidas energéticas (como o café) que estimulam a atividade dos
corpos humanos no ritmo de vida frenética da civilização urbano-industrial?
Como equacionar o cortejo de delícias gustativas que o açúcar gerou, associado
ao crescimento epidêmico da diabetes, das cáries dentárias e da obesidade?
A sensação doce na boca tornou-se um dos
traços culturais distintivos da globalização. Mas quem considerar todos os seus
componentes históricos – incluindo os desflorestamentos, as escravidões e as
chamadas “doenças da civilização” – não poderá deixar de notar um gosto amargo,
por vezes demasiadamente amargo, do império da doçura.
José Augusto Pádua é professor
da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor de Um sopro de destruição:
pensamento político e crítica ambiental no Brasil (1786-1888), (Zahar,
2002).
CARNEIRO, Henrique. Comida
e Sociedade. Rio de Janeiro: Campus, 2003.
DEAN, Warren. A Ferro e
Fogo: A História e a Destruição da Mata Atlântica Brasileira. São Paulo:
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Trabalho e Poder: O Mundo dos Engenhos no Nordeste Colonial. Bauru:
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FREYRE, Gilberto. Nordeste:
Aspectos da Influência da Cana sobre a Vida e a Paisagem do Nordeste do Brasil.
Rio de Janeiro: José Olympio, 1985.
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