Rachel
Soihet
Nas últimas décadas do século
XIX, a Revista Ilustrada, comandada por Ângelo Agostini, era uma das
publicações mais importantes do país. Com grande aceitação popular, publicava
artigos bem-humorados e irônicos que defendiam posições políticas avançadas
para a época, contra a escravidão e o conservadorismo do governo imperial. Mas,
como se pode ler num de seus editoriais, intitulado "Com as damas",
de 1886, a situação da mulher e sua reivindicação por maior participação na
sociedade não eram vistas com bons olhos, merecendo até mesmo tratamento
caricato:
"Não será da nossa parte que as legítimas
aspirações do sexo gentil, da mais simpática e apreciável metade do gênero,
encontrarão qualquer embaraço, por mais insignificante que seja, à sua justa
expansão. Confiamos muito no bom senso e na inteligência servida pela educação
para recear que as mães, as irmãs e as esposas, abandonando a serenidade dos
lares, se atirem à política e aos meetings, obrigando-nos a velar pela
cozinha e pelos recém-nascidos. Não! A mulher manter-se-á na órbita que lhe
convém e, se alguma exceção houver, estamos certos que esse papel ficara
reservado às sogras."
A emancipação feminina era vista
pelos mais diversos setores sociais e tendências políticas como grave ameaça
à ordem estabelecida, e o predomínio masculino encontrava legitimidade até no
pensamento científico da época. A filosofia considerava que a inferioridade
da razão entre as mulheres era fato incontestável, cabendo a elas apenas
cultivá-la na medida necessária ao cumprimento de seus deveres naturais:
obedecer ao marido e cuidar dos filhos. A medicina do século XIX afirmava que
a fragilidade, o recato e o predomínio das faculdades afetivas sobre as
intelectuais eram características biologicamente femininas, assim como a
subordinação da sexualidade ao instinto maternal. Em oposição, o homem somaria
à sua força física uma natureza autoritária, empreendedora, racional, e uma
sexualidade sem freios.
O recurso da ironia e da comédia
foi um poderoso instrumento para desmoralizar a luta pela emancipação feminina
e reforçar o mito da inferioridade e passividade da mulher.
-
Tambêm você para nada presta.
-
Mas, Milu, se eu nunca aprendi a fazer isso...
-
E o que foi que aprendeu, não me dirá? O senhor é um
imprestável.
-
Mas Milu...
-
Cale-se homem, cale-se! (...) Irra! Molenga! Banana!
Pastelão!
-
Eu só queria ver você na cozinha...
-
Sim? Queria? Pois esse gosto não há de ter, meu caro.
Então eu, uma mulher superior, vou lá me ocupar com esses cuidados
domésticos...
-
E as crianças?
-
Pois aí não tem queijo? Não tem pão? Vá ferver água para
o chá.
-
Chá, pão e queijo? Mas isso é lá um jantar?
-
E basta. Também você só cuida da barriga (...). E passará
a dormir na sala de visitas durante três meses. É para ensiná-lo a respeitar
uma mulher emancipada.
Apesar do tom de galhofa, essa
abordagem não estava tão distante da adotada por criminalistas e médicos da
época, que alertavam para o perigo representado pelas mulheres
intelectualizadas. No Rio de Janeiro, vários médicos concordavam com essas
afirmações. Comentando os motivos que levariam a mulher a cometer o terrível
crime do infanticídio, o Dr. Augusto Militão Pacheco aponta as "mulheres
originais", distintas das demais "pela extrema devassidão (...) pelo
gosto infrene de pintar, escrever, viajar etc." Interessante notar que são
enquadradas, em primeiro lugar, a mulher infiel e, em segundo, a emancipada.
Para grande parte dos estudiosos em comportamento da virada do século XIX para
o XX, a intelectual emancipada era mau exemplo para as outras mulheres, pois
faria com que acreditassem que poderiam sobreviver sem o auxílio do marido. Ao
se recusarem a restringir seu universo à maternidade e ao lar, desprezando
suas funções naturais, essas mulheres de comportamento diferenciado seriam a
fonte de todos os flagelos sociais.
Nenhum meio foi desprezado na difusão do
princípio de que os cuidados com os filhos exigiam que a esfera feminina
fosse aquela da casa, nessa campanha desenvolvida, a fim de salvaguardar os
privilégios masculinos, incluindo a música carnavalesca. Deixava-se claro que,
além dos males acarretados aos filhos, a competição, que se desenvolveria
entre homens e mulheres, prejudicaria o relacionamento conjugal, levando à
ruína a instituição do matrimônio. As ideias contrárias ao feminismo
circulavam também nas camadas populares, e o papel de provedor, destinado aos
homens na organização patriarcal, constituía-se em ideal que não escapava a
todas as camadas, embora dificilmente se concretizasse.
A charge foi um recurso muito
utilizado para ridicularizar o movimento de emancipação feminina. O
caricaturista Raul Pederneiras, que teve grande atuação na imprensa do Rio de
Janeiro, foi um crítico implacável das mulheres que pretendiam ampliar seu
espaço de atuação na sociedade. Entre as cenas que privilegiava, buscava
realçar a incompatibilidade entre o exercício de atividades extradomésticas (o
trabalho em especial) e as funções de mãe.
Numa caricatura intitulada A
mulher polícia, observa-se uma mulher gorda, pesadona, de rosto carrancudo,
vestida com uniforme policial, enquanto amamenta uma criança de colo. O conjunto
pretende denunciar o caráter grotesco da situação, já que a figura está longe
de representar a idealização difundida da fragilidade e docilidade das mães. A
policial é instada por um homem a tomar uma medida, o que é mostrado, não
apenas pela postura dele na figura, como na frase: "Acuda!... estão
apitando lá fora!" Ao que ela responde: "Não vê que estou
presa?" O autor, assim, procura desmoralizar as pretensões das mulheres
de acumular duas funções, de mãe e de profissional, demonstrando sua
impossibilidade e o perigo que representa para a sociedade confiar nelas.
O grande J. Carlos, por sua vez,
costumava retratar em suas charges personagens femininas dos segmentos superiores
- mulheres sedutoras, extremamente sofisticadas e ocupadas com a aparência. Mas
a preocupação com o avanço do feminismo está demonstrada em pelo menos dois
de seus trabalhos. Num deles (na página 16), denominado Emancipação (revista
Para Todos, 1926), um pai aparece sentado, totalmente rendido ao
cansaço, segurando um bebé ao colo com a infalível mamadeira. Em torno dele,
brinquedos espalhados e três crianças entregues às mais diversas travessuras.
Elegante, a mãe chega então com um chapéu masculino na cabeça, indiferente à
confusão. A segunda caricatura (na mesma página 16), Mater Dolorosa (revista
Fon-Fon, 1935), mostra também um homem abatido ao lado do bebé, cercado
de grande quantidade de brinquedos espalhados.
Raul Pederneiras, porém, aponta
a solução para esses problemas. Em seu álbum Cenas da vida carioca, de
1926, há um painel de quatro caricaturas representando um dia na rotina de uma
mulher. Um deles, intitulado Dia útil, mostra justamente uma mulher com o
filho ao colo, mexendo uma panela no fogão - a imagem perfeita para a boa ordem
da sociedade, segundo o ideal masculino. Havia, portanto, que alertar para os
perigos da participação feminina em esferas consideradas do domínio dos
homens, expondo-os a situações incompatíveis com sua natureza.
Mas não apenas a questão da
profissionalização feminina mereceu severas críticas. As demais reivindicações
do género, com vistas ao exercício da plena cidadania, particularmente a luta
pelo voto, eram objeto de chacotas, com o propósito de ridicularizá-las. Um
exemplo é a crónica "Mais uma
reivindicação feminina" (revista Fon-Fon, 4/1/1908): "Já não são somente nas
profissões, já não se limitam aos direitos civis e políticos; não param também
nos vestuários as reivindicações das nossas ardentes feministas. Há uma
tendência pronunciada para usar coisas até agora permitidas ao sexo feio. É
assim que brevemente aparecerá uma obra
da ilustrada senhora X... reivindicando o direito de senhoras usarem barbas também."
Por trás dessa piada sobre a
pretensão feminina de usar barba parece estar a intenção de sugerir que a
feminista é uma mulher ansiosa para não só assumir papéis considerados
privativos dos homens, mas também seus atributos físicos. Para terminar, o
autor destaca mais uma das alegadas fraquezas da mulher: "(a barba)
servirá (...) para demonstrar a falsidade da alegação de que toda mulher é
tagarela, pois necessariamente terão de ficar caladas, ao menos enquanto
fizerem a barba".
Alguns autores tentaram manifestar
sua oposição às mudanças pretendidas pelas feministas apelando para um tom
cavalheiresco, beirando a pieguice: "Não concebo a mulher fora do seu
ciclo, apostrofando os deuses ou discutindo a origem das espécies. Ela foi
feita para domar o homem. Que será da humanidade no dia em que ela, rasgando o
peignoir de rendas (...) sair para a rua, não mais com a leve sombrinha
de seda, mas com o humilhante cacete do capanga eleitoral? Desaparecerá o
encanto dos salões, a alma da paisagem, o amor do lar..." Repetem-se velhos
estereótipos sobre a importância de os diferentes atributos dos homens e
mulheres serem respeitados - um conceito presente na religião, aprimorado pelos filósofos iluministas e adotado pela ciência da época. No fim, a crónica adota um tom
vulgar: "Só (...) as muito feias hão de querer se emancipar... coitadas! As bonitas não (...). Que nos importa as
feias! Salvem-se as belas, que a humanidade se aperfeiçoará."
("Páginas da Cidade" Careta, 11/1/1919).
A necessidade de a mulher ser
bela é sempre ressaltada. Algumas crónicas propõem estratégias para a
superação desse obstáculo, a fim de garantir às feias a possibilidade do
casamento, única aspiração feminina considerada legítima pela mentalidade
machista da época. Em certo artigo, a atuação das militantes brasileiras é
atribuída à ociosidade: "Se não tiverem com o que se distrair em casa, vão
para as fábricas, namorem ou façam-se telefonistas." Para finalizar, a suprema ameaça:
"Se persistirem nessas bobagens... ficarão todas solteironas, o que é o
diabo!" (Careta, 2/2/1918).
Outro cronista propõe com sarcasmo que
sejam realizados "leilões matrimoniais", recurso útil para que as
moças feias tivessem mais chance de conseguir o casamento: "Talvez fosse
esse o único, excelente, maravilhoso meio de acabar duma vez com as sufragistas, as literatas, as neurastênicas, as cochichadeiras e as
beatas, horríveis espécies femininas nascidas da classe imensa, descontente,
vingativa e audaz das vieilles filies" ("O leilão das
moças", Fon-Fon, 5/1/1918). A curiosa conclusão é que a mulher não agraciada
com a beleza, vendo-se relegada à humilhante situação de solteirona, a vieille
filie, buscaria vingança questionando sua condição e aderindo aos
movimentos de emancipação.
Em outra caricatura de Raul
Pederneiras, intitulada Miss Alma, tipo feminista, vê-se uma mulher magra
e feia usando chapéu e sapatos masculinos e portando um livro - estereótipo da
intelectual solteirona. E outra mulher mais gorda, de ar arrogante, apresenta
as mesmas características: feiúra, masculinização e o inevitável livro. Não é
de admirar que esse tipo seja classificado na seção "Sapatos".
Apesar desse bombardeio, mais e
mais mulheres reagiam no sentido de alterar sua posição relativa às esferas
pública e privada. Não poucas assumiam abertamente a campanha pela obtenção de
seus direitos. Organizaram-se em associações; faziam pronunciamentos
públicos, utilizando-se fartamente da
imprensa; buscavam apoio de lideranças nos diversos campos, constituindo grupos
de pressão para garantir apoio de parlamentares e de outras autoridades, da
imprensa, da opinião pública etc. Mas, apesar disso, em sua maioria, procuravam
revestir seu discurso com um tom moderado. Não apenas porque consideravam que
esta seria a forma adequada de expressão feminina, mas, igualmente, por
estratégia política.
Curiosamente, uma revista mensal dirigida
por uma mulher que contava com a colaboração de figuras destacadas da época,
como a poetisa Cecília Meireles e até militantes do movimento feminista, a Única,
e que publicava artigos sobre literatura, arte, elegância e sociologia,
noticiava a invasão das pistas de corrida de cavalo e dos quarteirões elegantes
de Londres por "mulheres apaches" de porte másculo e bem vestidas,
pertencentes a um grupo cujo nome bizarro seria Bando dos Quarenta Elefantes.
"Tais criaturas dedicam-se ao roubo nos grandes estabelecimentos, à
violação das fechaduras, à chantagem e até ao assalto a mão armada...
resultado dos direitos equiparados da mulher" ("Feminismo e suas
desvantagens", outubro de 1925).
Essa maneira debochada de apresentar
as mulheres empenhadas na luta por direitos questionava a seriedade de certas
preocupações femininas. Em consequência, não foram poucas as mulheres que
rejeitaram o feminismo e adotaram o discurso conservador, sempre presente nos
diversos meios de comunicação, que acusava o movimento de ser incompatível
com o ideal vigente de beleza, meiguice, paciência e resignação, e identificava
as mulheres engajadas como viragos, pesadas como elefantes, perigosas e
inclinadas a cometer atos criminosos.
Rachel
Soihet é professora do Departamento de
História da Universidade
Federal Fluminense e autora de Condição feminina e formas de violência. Mulheres pobres e ordem urbana (1890-1920). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989.
Fonte: Revista Nossa História - Ano I nº 3 - 2004
Saiba
Mais: Bibliografia
ALVES, Branca Moreira. Ideologia
e feminismo. A luta da mulher pelo voto no Brasil. Petrópolis:
Ed.
Vozes, 1980.
HAHNER, June E. Emancipação
do sexo feminino - a luta pelos direitos da mulher no Brasil,
1850/1940, Editora Mulheres/Unisc, 2003.
Saiba
Mais – Link
ADOREI ESSE TEXTO, QUANDO LI NA REVISTA ''NOSSA HISTÓRIA'' EM 2004 LOGO INTERESSEI EM ABORDÁ-LO COM MEUS ALUNOS OU ALUNAS , JÁ QUE QUASE SEMPRE, ELAS, SÃO MAIORIA NA SALA DE SALA. ATÉ FUI CRITICADO, DISSERAM QUE ERA GAY POR SER HOMEM E ESTAR ABORDANDO ESSE ASSUNTO; MAS COM 40 ANOS E COM UM POUCO DE CONSCIÊNCIA SOBRE OS PRECONCEITOS, VC NÃO TEM MAIS MEDO DESSAS COISAS. DE LA PRÁ CÁ SEMPRE RELEMBRO DESSE TEXTO PARA FALAR DESSE TRISTE PERÍODO QUE AS MULHERES, ENTRE ELAS MINHA MÃE, ERAM DESESTIMULADAS, QUANDO NÃO PROIBIDA DE ESTUDAR. PENA QUE NA EDUCAÇÃO ONDE MAIORIA SÃO MULHERES AINDA NÃO ENCONTREI PARCEIRO PARA ABORDAR O TEMA, OXALÁ CHEGARA BREVE ESSE DIA.
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