Ao mito da
mulata travessa se opõe a história de uma ex-escrava determinada que conseguiu
superar a exclusão social
Júnia
Ferreira Furtado
Até meados do século XX, a verdadeira
aparência de Chica da Silva ainda gerava controvérsias. Alguns afirmaram que,
quando Felício dos Santos escreveu, ainda existiam pessoas no Tejuco que a
haviam conhecido e não poderiam enganar-se sobre sua aparência. Em 1924, Nazaré
Meneses, autora das notas de uma nova edição das Memórias do Distrito
Diamantino, afirmou que ela não poderia ser feia ou asquerosa, pois
despertara o amor do jovem contratador. Pouco depois, o jornalista Antônio
Torres, ao
Chica nasceu por volta de 1732, no arraial
do Milho Verde, a meio caminho entre o Tejuco e a Vila do Príncipe - hoje cidade
do Serro. Era mulata clara, filha de negra com homem branco, fato comum na
sociedade da época, em que as mulheres, principalmente brancas, eram raras. Sua
mãe chamava-se
Maria, escrava africana
oriunda da Costa da Mina, e seu pai o português Antônio Caetano de Sá. Ainda jovem,
foi vendida a Manuel Pires Sardinha, proprietário de lavras e médico no Tejuco.
Em 1751, teve o primeiro filho, Simão, com seu próprio senhor. Ela era então
muito jovem, e Manuel Pires Sardinha quase um sexagenário. No registro de
batismo, ele não assumiu a paternidade de Simão, mas deu-lhe a alforria. Mais
tarde, em seu testamento, reconheceu Simão como um de seus herdeiros, mesmo já
tendo dois outros filhos.
João Fernandes de Oliveira nasceu em
Mariana, em 1727, filho do sargento-mor do mesmo nome e de
Maria de São José, natural
do Rio de Janeiro, primeira esposa do sargento-mor. Estudou em Portugal,
formando-se em cânones, na Universidade de Coimbra, e recebeu o importante
título, comprado pelo pai, de Cavaleiro da Ordem de Cristo. Tornou-se
desembargador, ao ser nomeado para o Tribunal da Relação do Porto e, em 1763,
juiz do Fisco das Minas Gerais. Em 1753, ele chegou ao Tejuco, como um dos
arrematantes do quarto contrato efetuado pela Coroa para a extração de
diamantes. Sua trajetória refletia o processo de ascensão social que seu pai,
antigo contratador, procurava garantir para o herdeiro. João Fernandes de Oliveira,
o velho, apesar da enorme fortuna, alcançou apenas o título de sargento-mor, pelo
qual era sempre referido. "Solteiro, de boa vida e costumes" e
coberto de nobreza, João Fernandes, surpreendentemente, envolveu-se com Chica
da Silva, com quem teve relação estável – mas não oficial, pois, na época, o
casamento era reservado apenas aos indivíduos do mesmo status social – e
de fidelidade, ainda que tivessem que viver separados em seus últimos anos, ela
no Tejuco e ele em Lisboa.
Entre os padrinhos dos filhos de Chica e
João Fernandes não havia autoridade importante da capitania ou mesmo do
distrito, o que faz supor uma certa dificuldade do contratador em estabelecer
alianças com representantes da Coroa. As crianças foram batizadas por
importantes moradores do Tejuco, sinal provável de que a sociedade local aprovava
aquela relação não oficial entre pessoas diferentes em suas condições sociais. Além
de Manuel Pires Sardinha, que batizou a primogênita Francisca de Paula,
apadrinharam as outras crianças o sargento-mor José da Silva de Oliveira, velho
amigo do pai do contratador, e o coronel José Velho Barreto, importante
fazendeiro e negociante por atacado no Tejuco. Seu tio Ventura Fernandes de
Oliveira, estabelecido em Vila Rica, foi padrinho de Joaquim. Os demais
padrinhos eram militares locais de baixas patentes, como o sargento-mor Antônio
Araújo de Freitas, o capitão Luís Lopes da Costa, padrinho de Ana, Helena e
Luísa, e os capitães Francisco Malheiros e Luís de Mendonça Cabral.
Francisca da Silva de Oliveira agia como
qualquer senhora da sociedade. Educou todas as filhas no Recolhimento de
Macaúbas, o melhor educandário das Minas na época. Em 1767, recolheu em
Macaúbas as mais velhas - Francisca de Paula, de 12 anos, Rita Quitéria, de dez,
e Ana Quitéria, com cinco - pagando por matrícula, no ano seguinte, o dote de 900
mil-réis em barras de ouro. As meninas levaram com elas, para as servirem em
seu retiro, três escravas pardas e mais um casal, que ficava de fora.
A
morte do velho sargento-mor João Fernandes de Oliveira, em 1770, em Portugal,
iria interferir de forma irreversível na vida de Chica e do desembargador João
Fernandes no Tejuco. Em 1748, o sargento-mor casara-se em segundas núpcias com
uma rica viúva, Isabel Pires Monteiro, num enlace arranjado pelo governador Gomes
Freire de Andrade, seu amigo. Casamento de interesses, os nubentes estabeleceram
um pacto pré-nupcial: a noiva incorporou seu patrimônio ao do marido e, em
troca, quando da morte dele, caso não tivessem filhos, ela retiraria da herança
apenas o montante correspondente aos seus bens. No entanto, poucos dias antes
de o sargento-mor falecer, Isabel conseguiu que ele alterasse o testamento,
concedendo-lhe o direito à metade dos bens do marido. João Fernandes deixou Chica
com as crianças no
Tejuco e retornou
imediatamente a Portugal, para tentar anular o testamento. O arrendamento de inúmeros
contratos de cobrança de impostos em Minas em parceria com o pai havia tornado
os interesses de ambos indissociáveis. Nos últimos anos, o filho contribuíra
para o enriquecimento da família e via a herança paterna como recompensa pela
boa administração dos diversos contratos de extração de diamantes que
administrara em seu nome, ou em sociedade. Foi esse o verdadeiro motivo da
partida precipitada de João Fernandes para Lisboa, e não, como foi difundido, supostos
conflitos entre o contratador e a Intendência dos Diamantes. A decretação do monopólio
régio dos diamantes pela Coroa, com a criação, em 1771, da Real Extração, não
significava retaliações pessoais contra o contratador, mas sim um efeito da política
pombalina de fazer retornar ao controle da Coroa as riquezas de além-mar.
Ao retornar a Portugal, João Fernandes
nomeou um tutor para as crianças e um representante junto ao contrato de
exploração dos diamantes, além de redigir um testamento que garantia a herança
aos filhos ilegítimos. Chica, por sua vez, também redigiu seu testa mento
dispondo dos bens entre os filhos. Provavelmente já alfabetizada, assumiu o
compromisso de garantir a educação e os cuidados com as filhas, enquanto João
Fernandes levou para o reino os quatro filhos homens, além de Simão Pires
Sardinha, o primeiro filho de Chica, que se responsabilizaria pelo futuro dos irmãos.
Disposto a introduzir os filhos na corte, o ex-contratador ocultou as origens
deles e sua relação com a ex-escrava, não por esquecimento ou ingratidão, mas,
ao contrário, para dignificar a prole na sociedade hierarquizada do reino. Com
isso, mesmo à distância, cuidava de Chica - a quem transmitira, no Tejuco, a posse
de vastos bens - e de seus filhos e filhas.
A reconstrução da história de Chica da
Silva, a partir de novos documentos, lança luz sobre o tempo em que viveu e os
significados de sua trajetória. Assim como outras ex-escravas, Chica alcançou a
liberdade, amou, teve filhos, educou-os e buscou ascender socialmente, provavelmente
desejando reduzir a marca que a condição de parda e forra impunha a ela e a
seus descendentes. Inserção contraditória, ao buscar o reconhecimento da sociedade
branca, foi, porém, a única maneira que mulheres como ela encontraram para retomar
o controle sobre suas vidas, acumulando bens, transitando entre as irmandades,
tornando-se senhora de escravos. Seu itinerário é revelador também das relações
entre os grupos étnicos nas Minas Gerais do século XVIII. Sob o manto de
pretensa democracia racial, sutil e veladamente uma sociedade mestiça procurava
branquear-se e escapar por variados recursos, inclusive a dissimulação, da fria
exclusão sociorracial.
Transferido para o lado de fora do templo,
em sepultura vertical, o corpo de Chica da Silva permaneceu esquecido na igreja
de São Francisco, se for mesmo verdade o relato de Antônio Torres. O tempo, no entanto,
perpetuou a memória da parda Chica da Silva e de sua união com o poderoso
contratador dos diamantes. Ao contrário das inúmeras mulheres negras que
povoaram as ruas do Tejuco setecentista, cuja lembrança se dissolveu nos
séculos, sua trajetória imortalizou-se no mito da "Chica que manda".
Júnia
Ferreira Furtado é professora do Departamento de História da Universidade Federal de
Minas Gerais.
Fonte: Revista Nossa História -
Ano I - nº 2 - Dez. 2003
Saiba Mais – Filme
Xica da Silva
Ano: 1976
Duração: 107 minutos
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