Nove anos de violência
Enquanto o
país aguardava a maioridade de Pedro II, movimentos rebeldes eclodiram de norte
a sul. Ao mesmo tempo, começava a tomar forma a imagem do "brasileiro
cordial"
Marco Morel
O período das regências (1831-1840) foi considerado
"o mais interessante, dramático e instrutivo da História do Brasil"
por um de seus primeiros historiadores, Manoel Pereira da Silva (1817-1894),
ainda no século XIX. Neste intervalo de nove anos - que vai da abdicação de d.
Pedro I, em 1831, à coroação de seu filho, d. Pedro II, em 1840, quando o país
foi governado por sete regentes -, a sociedade brasileira viveu, de fato, uma
experiência singular e marcante. Dezenas de milhares de homens e mulheres de
todas as etnias e condições sociais pegaram em armas e morreram em rebeliões
ocorridas em vários pontos do país. No discurso dos grupos dirigentes da época,
consolidado na pena de historiadores monarquistas como Pereira da Silva, o período
foi tachado de "caótico", "desordenado",
"anárquico" e "turbulento". Apesar disso, as rebeliões
trouxeram à tona os conflitos e a capacidade de resistência da população,
revelando, por outro lado, o clima de opressão com que a sociedade brasileira
convivia na época.
O período regencial foi na
verdade um momento-chave na construção da nação brasileira. Ao custo de muitas
vidas e despesas, garantiu-se a Independência e o caminho de uma ordem nacional.
A estrutura política do império - que se pretendia consolidar como Estado
nacional - abalava-se pela ausência de poder centralizado na figura do monarca,
e pela emergência de atores históricos variados, com suas demandas sociais. O
Brasil recém-independente parecia prestes a se despedaçar, mas acabou tomando
um rumo. Foi um tempo de esperanças, inseguranças e exaltações, de rebeldia e
de repressão, gerando definições cujos traços ainda permanecem na nossa
sociedade. A tendência, hoje, é encarar a era das regências como um grande
laboratório de formulações e de práticas políticas e sociais, como ocorreu em
poucos momentos na história do Brasil. Entraram na pauta de discussões, então,
temas da maior importância para a época, como monarquia constitucional,
absolutismo, republicanismo, separatismo e as diferentes fórmulas de
organização de Estado. Eclodiram conflitos étnicos multifacetados, expressões
de identidades regionais antagônicas e formas de associação até então
inéditas.
Esta movimentação envolveu amplos
setores da sociedade. Tribos inteiras de índios, quilombos com centenas e até
milhares de escravos, grandes contingentes de caboclos e vaqueiros, camadas
pobres livres, alguns nobres descontentes, grandes e pequenos proprietários de
terras, lavradores pobres, profissionais liberais, comerciantes, pessoas sem
atividade nas cidades e nos campos, setores urbanos letrados e politicamente
radicalizados, funcionários públicos, entre outros, formaram contingentes rebeldes
que em alguns casos tomaram o poder em vastas áreas do território brasileiro
por longo espaço de tempo, como foi o caso da Cabanagem amazônica, da Balaiada maranhense,
da Revolução Farroupilha gaúcha, da Cabanada pernambucana ou da Sabinada
baiana. Foi um momento de explosão da palavra pública em suas múltiplas e nem
sempre tranquilizadoras possibilidades.
Infelizmente não ficaram imagens
da maioria dos rebeldes, nem mesmo dos líderes dos vários movimentos. Não
sabemos como eram os rostos do escravo Cosme Bento das Chagas ou do vaqueiro
Raimundo Gomes, que se destacaram na Balaiada (Maranhão e Piauí), à frente de
milhares de homens em armas; dos irmãos Francisco e Antonio Vinagre, da Cabanagem
(Pará), que controlaram largas faixas territoriais e destituíram governos
locais; das dezenas de chefes de bandos armados que integraram estes dois
movimentos e tantos outros como a Cabanada (Pernambuco e Alagoas) e a
Farroupilha (Rio Grande do Sul e Santa Catarina); do médico Francisco Sabino
Vieira, da Sabinada; de Pacífico Licutan, Manoel Calafate e Elesbão do Carmo,
do Levante dos Males (Bahia); do escravo, tropeiro e considerado "rei
africano", Ventura da Mina, na Revolta das Carrancas (Minas Gerais), dos
militares e civis que fizeram barricadas e tentaram motins nas ruas do Rio de
Janeiro, entre muitos outros.
É sugestivo notar que o registro
iconográfico destes episódios, com frequência, se circunscreve às figuras dos
chefes militares ou civis encarregadas da repressão ou de restaurar o controle
governamental em vários pontos do país. Tais rostos e bustos engalanados ou
encasacados parecem relegar ao purgatório as faces desconhecidas dos rebelados
que eles capturaram ou eliminaram. O conhecimento de episódios do período
regencial vai também de encontro à difundida ideia de que o Brasil se associa a
uma tradição ordeira e pacífica. Já havia, na época das regências, a
preocupação com este fator básico de elaboração da nossa identidade nacional.
Em meio ao espocar de motins,
sedições e revoltas, o "caráter brasileiro" era então motivo de debate.
Perguntava-se, já naquela época, se existiria essa propensão à docilidade e à
cordialidade atribuída ao brasileiro. O redator do jornal Nova Luz
Brazileira, Ezequiel Correia dos Santos (1801-1864), acenava com "revoluções
terríveis e inevitáveis, desde que a paciência de um Povo pacífico se acaba
antes que se acabe a ma fé dos Governos". Isto é, mesmo para aqueles
comprometidos com a perspectiva de continuar uma revolução, colocava-se este
substrato cultural, como se houvesse uma tradição de costumes que caracterizasse
uma índole pacífica coletiva.
O todo-poderoso ministro da
Justiça e futuro regente, Diogo Feijó (1784-1843), diante dos primeiros
motins que eclodiram na capital da monarquia brasileira após a abdicação de d.
Pedro I (1831), diagnosticava: "Esses acontecimentos, aliás funestos em suas consequências,
tiveram a vantagem de desenganar aos poucos facciosos e anarquistas que ainda
nos incomodam, que o brasileiro não foi feito para a desordem, que o seu
natural é o da tranquilidade". Escrevendo do interior das prisões regenciais
administradas por Feijó, o líder oposicionista Cipriano Barata (1762-1838) levaria adiante o
debate, indagando: "Que coisa seja Docilidade Brasileira?" E ele
mesmo responderia com seu estilo mordaz: "Docilidade é a boa disposição
do homem para se deixar instruir. Gênio ou natureza dócil é aquele que abraça
as doutrinas e ensino que se lhe dá; porém, este termo docilidade aplicado hoje
aos Brasileiros tem outro sentido: dócil quer dizer estólido, ou tolo; homem
que se contenta com tudo, que deixa ir as coisas por água abaixo (...); em uma
palavra, dócil deixa dizer Brasileiro ovelha mansa, que trabalha como burro
para pagar tributos desnecessários em benefício dos satélites do
governo".
Já esboçada durante a Independência, a
concepção da índole-pacífica-do-povo-brasileiro foi afirmada com mais ênfase
durante as regências, espraiou-se pelo Segundo Reinado em nome da tranquilidade
social e da conciliação política, e se tornaria verdadeiro lugar-comum na
República, como se fosse preciso pousar o véu do esquecimento sobre tantas
violências cometidas. O certo é que os habitantes do território que se articulava
como brasileiro não foram todos "ovelhas mansas" durante o período
regencial. Muitos demonstraram de forma cabal sua disposição de influir, mesmo
que fosse com o uso da força, nos destinos do país que se transformava em
nação.
Marco Morel é professor da UERJ,
pesquisador do CNPq e autor de O período das Regências (1831-1840). Rio
de Janeiro: Zahar, 2003.
A guerra dos bem-te-vis
A Balaiada, no Maranhão, foi descrita
pela historiografia como um levante de facínoras e ladrões movidos pelo ódio
aos brancos. Hoje já se tem uma ideia bem diferente do conflito
Matthias
Röhrig Assunção
O
nome dado à revolta derivou-se da alcunha de um dos seus líderes, o Balaio,
reputado, pela tradição, como o mais cruel e sanguinário dos rebeldes. Entre as
suas façanhas constaria a de haver mandado costurar um leitãozinho vivo na
barriga de uma de suas vítimas, na cidade de Caxias (MA). Esta visão satanizada
do movimento deriva, em larga medida, do relato do escritor Domingos José
Gonçalves de Magalhães (1811-1882),
secretário de Luiz Alves de Lima no governo do Maranhão durante o conflito. A
memória histórica e documentada da revolução foi publicada poucos anos
depois da revolta, em 1847.
Nela, Magalhães pinta um quadro pouco favorável da província do Maranhão, cuja
população viveria, segundo ele, ainda em estado semisselvagem. A indolência dos
maranhenses, tão deplorada por Magalhães e seus contemporâneos letrados,
reflete sobretudo o seu desprezo pelo modo de vida dos caboclos do interior.
Tanto
para a burocracia imperial quanto para os fazendeiros, somente o comércio ou a
grande lavoura de exportação eram considerados fontes de riquezas. No caso do
Maranhão, milhares de escravos do eito (a população cativa constituía 52% dos
216 mil habitantes recenseados da província) produziam o algodão e algum arroz
para exportação. Trabalhavam também nas fazendas de gado no Piauí, na
"baixada" e no sul do Maranhão. A área da grande lavoura se
restringia às melhores terras dos vales de alguns rios e seus afluentes, como
o Itapecuru, onde se concentrava a população escravizada. Nos interstícios
desta economia escravista havia se desenvolvido uma produção camponesa. Os
"caboclos" - termo que no Maranhão designa não somente o descendente
de índio, mas qualquer pequeno produtor - plantavam mandioca, milho e feijão
para sua subsistência, vendendo o eventual excedente. Complementavam sua dieta
com a colheita de frutas silvestres, a caça e a pesca.
Eram
justamente estas atividades que a elite escravista condenava, pois não as
considerava como trabalho. Além do mais, o agricultor de subsistência não
pagava impostos, e portanto era visto como inútil para o Estado. Desde a época
colonial as autoridades se queixavam da independência dos caboclos e tentavam
controlar esta população por todos os meios. O recrutamento para as forças
armadas era tido como a melhor solução para tirar o caboclo de sua
"indolência" e forçá-lo a ser útil à sociedade.
No
Maranhão e no Piauí, a Independência foi conquistada pela força das armas de um
exército de voluntários, alistados desde o Ceará, contra uma elite portuguesa,
ou de origem portuguesa, que pretendia manter a província dentro do império
lusitano. Sua derrota, em 1823, quando as duas províncias "aderem" ao
Império do Brasil, foi relativa, pois rapidamente os portugueses
reconquistaram posições de poder na esfera provincial. Por esta razão, ações
contra "os portugueses" assumiram dimensões importantes até bem
depois da Independência. Reivindica-va-se a remoção dos portugueses de cargos
importantes ou mesmo a sua expulsão da província.
Os
conflitos políticos e sociais no Maranhão tendiam a se sobrepor a antagonismos
étnico-raciais. Após a Independência, por motivos de legitimação, os liberais
tendiam a identificar a elite conservadora com "os portugueses"
(independentemente do fato de que muitos tivessem nascido no Brasil), enquanto
se apresentavam como o partido "brasileiro". Assim o Partido Liberal,
ou "Bem-te-vi", como era chamado no Maranhão, reivindicava ser o
legítimo representante da nação brasileira. A hora dos liberais chegou com a
abdicação de d. Pedro I (1831), quando a Regência introduziu reformas
descentralizadoras que resultaram na eleição de assembleias provinciais e de
autoridades locais, como os juízes de paz. Estes últimos passaram a deter o
poder de polícia nos municípios e presidiam as mesas durante as eleições.
Os
conservadores, se não gozavam de grande prestígio entre as classes populares,
puderam contar com o apoio do governo central durante o Primeiro Reinado, e ainda
mais durante a reação centralizadora que, a partir de 1837, novamente alterou
o equilíbrio das forças políticas no Império. Como sucedeu em algumas outras
províncias, o presidente do Maranhão, Vicente Camargo, um conservador, criou
prefeituras em 1838. Os prefeitos concentravam o poder de polícia em cada
comarca e eram responsáveis pelo recrutamento. Nomeados pelo presidente da
província, costumavam abusar de suas atribuições, perseguindo adversários
políticos e procurando controlar, por todos os meios, a população pobre e
livre.
Os
liberais se viram eliminados do poder não somente no âmbito regional, mas
também na esfera política local, já que os juízes de paz eleitos tinham perdido
suas atribuições mais relevantes. O recrutamento, em particular, era a arma
predileta dos prefeitos para dispensar favores, disciplinar os recalcitrantes,
e se livrar dos elementos considerados perigosos. Com cada filho recrutado,
a família camponesa perdia uma importante força de trabalho. Por esta razão,
muitas famílias caboclas decidiram esconder seus filhos em idade de servir nas
matas, que nesta época ainda eram abundantes em toda a província. Levavam comida
a lugares predeterminados, e assim muitos jovens conseguiram escapar daquilo
que a memória oral passou a chamar de "Pega".
O
tempo do "Pega" pode ser considerado a fase de incubação da Balaiada,
pois na segunda metade de 1838 já
havia muitos caboclos vivendo escondidos na mata para fugir ao recrutamento.
Em novembro, Francisco Ferreira, apelidado de o Balaio, libertou um filho seu
que, por ter resistido ao recrutamento, fora levado preso por uma pequena
força, junto com mais alguns indivíduos considerados desertores. Este episódio
é lembrado pela memória oral como o início da Balaiada. Foi também registrado
nas fontes de arquivo, apesar de não ser mencionado pela historiografia. Esta,
até agora, prefere a versão de que o Balaio, enfurecido pelo estupro de sua
filha por um oficial do exército, jurou vingança e por isso cometeu toda sorte
de latrocínios. Como este episódio é tão verossímil quanto o outro, podemos
concluir que talvez tenham existido vários Balaios na Balaiada.
No
dia 13 de dezembro de 1838, o vaqueiro Raimundo Gomes, junto com nove
companheiros, assaltou a prisão da Vila da Manga para libertar seu irmão,
preso, como recruta, pelo subprefeito da localidade. A ação de Gomes elevou a
resistência ao "Pega" a outro patamar. Ele não somente empregou de
força para liberar um recruta, como fizera o Balaio, mas também fez uma
proclamação política, inspirada nos princípios liberais. Nela, exigia o fim das
prefeituras e do recrutamento arbitrário. Foi o estopim que atearia o
fogo da revolta. Em pouco tempo, milhares de rebeldes, que se proclamavam do
partido Bem-te-vi, se levantaram. E em cada região, a Guerra dos Bem-te-vis,
como o episódio é conhecido na memória oral, assumiu características próprias.
No
sertão de Pastos Bons do Maranhão e na maior parte do Piauí, fazendeiros
liberais de algumas posses, como Lívio Lopes, aderiram à revolta. No baixo
Parnaíba e Maranhão oriental, milhares de caboclos também se levantaram. E no
vale do Itapecuru, cerca de 3 mil
escravos fugiram e constituíram um formidável quilombo, na Lagoa Amarela. Seu
líder, chamado Cosme, se intitulava "Defensor das Liberdades
Bem-te-vis" e buscava explicitamente uma aliança com os rebeldes livres.
Alguns autores acham que a distância entre livres e escravos aquilombados era
grande demais para compor uma aliança viável. No entanto, muitos dos pobres
livres viviam uma opressão muito próxima do cativeiro. O trabalho compulsório
nas embarcações e estradas dos "índios domésticos", os habitantes das
antigas aldeias, guardava muitos traços da antiga escravidão indígena. A
repressão à liberdade de movimento dos forros também. Durante a primeira fase
da revolta, as forças da legalidade sofreram várias derrotas importantes, e
em julho de 1839 a cidade de Caxias
foi tomada pelos rebeldes. Somente a remessa, pelo governo central, de tropas,
dinheiro e de um general qualificado -
Luiz Alves de Lima, o futuro duque de Caxias, que assumiu o comando unificado
da província em fevereiro de 1840 -
consegue reverter a situação.
O general
se utiliza da anistia imperial para dividir o movimento, forçando os rebeldes
livres que se entregam a capturar os quilombolas. Alguns chefes bem-te-vis
permanecem no mato fingindo que ainda são rebeldes, quando na verdade estão
caçando escravos. Nesta última fase milhares de camponeses, incluindo
mulheres e crianças, se refugiaram nas matas. A memória oral registra que a
tropa do governo "aparava crianças na ponta de espada", sugerindo que
a repressão à Balaiada assumiu características de genocídio da população
cabocla. No início de 1841, os últimos bem-te-vis são forçados a se entregar.
Raimundo Gomes foi morto em circunstâncias pouco esclarecidas. O escravo
rebelde Cosme é capturado e executado, após julgamento. Caxias enfim submeteu a
província, mas a preço certamente muito alto.
Matthias Röhrig Assunção é professor na Universidade de Essex,
Inglaterra, e autor de artigos e livros sobre a história do Maranhão, entre os
quais A Guerra dos Bem-te-vis. A Balaiada na memória
oral. São Luís: SIOGE, 1988.
Tempestade sobre Belém
Fugindo ao controle dos líderes da Cabanagem,
índios e escravos se insurgiram contra o regime de opressão a que eram
submetidos, massacraram seus senhores e tentaram tomar o poder no Pará.
Luís Balkar Sá Peixoto Pinheiro
Amedrontadas,
as autoridades ouviam os trovões, cada vez mais perto, cada vez mais fortes.
Na madrugada de 7 de janeiro de 1835, enfim, a tormenta desabou sobre Belém do
Pará: torrencial, voraz, a revolta popular ganhou as ruas, sem que nada nem ninguém
pudesse contê-la. Incrédulo, Emille Carrey, um viajante francês, registrou em
suas memórias: "A cidade tinha dentro de seus muros cem guardas policiais,
1.300 soldados de infantaria, 1.200 guardas nacionais e fundeados no rio dois
navios de guerra. Às oito horas da manhã tudo isso estava submetido ou
derrotado e os 65 revoltosos, coadjuvados por todos os descontentes do dia,
estavam senhores da cidade".
Entre
os rebeldes emergem vozes poderosas, anunciando sua liderança. Félix Malcher,
um proprietário de terras e de escravos há muito envolvido em disputas
palacianas, mas sempre preterido por sua condição de paraense, assume a
presidência da província em meio a discursos nativistas que apontam os
portugueses ali estabelecidos como os causadores dos males que afligiam o
Pará. Para Malcher, como também para as outras lideranças brancas do movimento,
"os paraenses querem ser governados por um patrício paraense". Daí
porque, três dias após assumir o poder, Malcher, dirigindo-se ao povo em armas,
apela pelo fim da revolta: "Ide gozar a paz no seio de vossas famílias...
Largai as armas, tomai os instrumentos agrícolas para felicitar a indústria e o
comércio".
A
ação rebelde entabulada por prósperos proprietários de terra nativos, como
Malcher, ou por seus prepostos, como Francisco Vinagre e Eduardo Angelim,
guarda relação íntima com o quadro político mais amplo, ligando-se às mesmas
motivações que sacudiram as margens de um país em construção. Assim, a eclosão
de outros movimentos sediciosos naquele momento não é mera coincidência, mas um
sintoma de uma das mais graves crises do recém-criado Império do Brasil, que
como Estado nacional e unidade territorial era ainda um projeto em desenvolvimento,
levado a cabo por políticos das províncias dinâmicas do centro-sul, pouco interessados
em fazer concessões às províncias menores e marginais.
O que
as revoltas regenciais pareciam questionar era, portanto, o lugar que o Brasil
reservava para as oligarquias regionais e as províncias periféricas. Daí porque
as rebeliões, tidas inicialmente como nativistas, ganharam logo ares de
movimentos regionalistas. De passagem pelo Pará, Emille Carrey registrou que
o termo "estrangeiro" significava, "na linguagem de Belém, os
europeus ou americanos do norte e todos os brasileiros das outras
províncias", indistintamente. Os anais do Parlamento imperial brasileiro
estão repletos de queixas onde os políticos do Norte comparam, em termos
depreciativos, as atitudes da corte do Rio de Janeiro com aquelas tomadas
anteriormente por Lisboa. O visconde de Goyanna (1782-1854) externava essa
insatisfação ao afirmar que, enquanto a Corte anistiava os rebeldes do Rio
Grande do Sul, recusava-se a "dar uma medida séria para o Pará, porque há
muitos anos está aquela província abandonada". Para ele, "apesar de
os tempos antigos [coloniais] serem menos circunspectos do que os da
constituição [Brasil independente], o Pará mereceu mais consideração do governo
desse tempo que do tempo constitucional, em que tem sido inteiramente
abandonado".
Lembrou
que em seu governo mandara fuzilar "em frente ao palácio do governo, o
célebre Joaquim Antonio, oficial da milícia rebelde que tinha uma força de mais
de quinhentos homens e proclamava uma liberdade a seu jeito, incluída a de
escravos em geral..." Deu conta, também, de que "foi fuzilado em
frente ao palácio do governo um preto chefe da insurreição do rio Guamá, logo
que chegou à capital. Foi morto à surra em frente ao palácio do governo um
mulato, escravo do português Nogueira, por ter traído a seu senhor e lavado as
mãos em seu sangue inocente...".
Para
a grande maioria da população do Grão-Pará, submetida a diversas formas de
trabalho compulsório, os discursos reformistas das lideranças brancas não
superavam o desejo de extinção do controle despótico e das práticas abusivas de
seus senhores e patrões. Assim, o foco da rebeldia popular é a própria
dominação senhorial e o desejo franco de liberdade. Tal choque de interesses
se expressa novamente na fala do francês Emille Carrey, que, em suas memórias,
descreve o encontro de uma embarcação de rebeldes numa localidade próxima a
Belém com uma família branca em fuga, O viajante relata que o líder do grupo
tentou conter a fúria de seus seguidores e preservar a vida do branco:
"- Este não é português, disse ele; é
brasileiro como nós. Deixemo-lo e entremos no Moju; lá não faltam engenhos.
Mas um dos malvados gritou:
Não, não. É um fazendeiro. Morra como os
outros!"
Com
efeito, o que as pesquisas recentes têm permitido fazer é exatamente recuperar
a multiplicidade e a lógica própria das ações de rebeldia popular que marcaram
movimentos como a Cabanagem, reafirmando que tais revoltas encerram atores
diferenciados que, por sua vez, trazem demandas igualmente diferenciadas à
cena pública. As fontes não convencionais, como os arquivos oriundos da
repressão, têm possibilitado discutir as intenções dos rebeldes, por
meio de um olhar mais detido acerca de suas ações. Neste particular, a
recuperação dos "Assentamentos de presos cabanos na corveta Defensora",
que dormitavam no Arquivo Público do Pará, tem sido um manancial por onde se
pode reabrir a discussão sobre o movimento, averiguando suas múltiplas
demandas.
Hoje
parece claro que, enquanto fazendeiros e proprietários brancos, membros de uma
elite nativa em expansão, se lançavam à revolta ansiosos por ascensão social,
mediante o controle do poder político local, outros segmentos, como a imensa
massa de despossuídos que participou da revolta, mobiliza-ram-se em outras
direções, externando demandas bastante diferenciadas.
Os
registros carcerários trazem dezenas de exemplos: o escravo Leandro aparece
como "um dos mais influentes que houve no rio Acará para incêndios e autor
dos assassínios dos brancos", e o mestiço João Dias como preso que andava
no rio Capim "persuadindo os escravos que deveriam matar seus senhores
para ficarem libertos". Francisco de Borges, um mulato, preso por ser
"um dos assassinos de Carlos de Tal, feitor de Luís Calandrino". Já
João Batista, um escravo de apenas 12 anos de idade, foi preso por "ser encarregado
de dar bofetadas nas senhoras brancas". Índios e tapuios (índios
submetidos ao mundo do branco), associados aos corpos de trabalhadores e a
outras modalidades de recrutamento compulsório, investiram contra seus
comandantes e depois passavam a se intitular de tenentes-coronéis e
a andar "vestidos com fardamento da polícia e armados com as armas das
suas vítimas".
Tornou-se
comum acompanhar ações de rebeldia nas quais os cabanos buscavam passar a limpo
as diversas relações de poder e submissão, escolhendo criteriosamente suas
vítimas e o repertório de punições a ser empregado contra elas. Isso significa
dizer que, quase sempre, vítimas e algozes se reconheciam no turbilhão da
revolta, embora ali pudessem experimentar uma inusitada inversão de papéis: o
soldado acima de seu comandante, o escravo de seu senhor, o índio de seu
patrão.
É
preciso argumentar que rebeliões como a Cabanagem não forjaram a violência a
que passaram a ser intimamente associadas nos livros de História. A violência
empregada pelos rebeldes (palmatórias, açoites no pelourinho,
etc.) era diretamente recolhida do acervo de punições
largamente empregadas no cotidiano do Grão-Pará, o que nos leva a argumentar
que, pela revolta, os populares tendem a devolver à
sociedade aquilo que dela recebiam com maior frequência.
Na
Corte, a Cabanagem era vista como uma rebelião de bárbaros e celerados,
circulando notícias de saques e massacres contra a população branca. Foram
poucas as vozes dissonantes. No Parlamento, apenas os deputados das províncias
do Norte denunciavam a adoção "de um remédio pior do que o mal" e
temiam que a onda repressiva fosse se "estendendo para outras províncias,
até hoje só lembradas para os castigos".
Enquanto
o movimento cabano naufragava em suas contradições, a Regência fechava o cerco,
armando soldados no Rio e nas principais cidades do Nordeste. As tropas
legais, entregues ao general Francisco José Soares
d'Andréa, militar experiente na repressão de movimentos
sediciosos, iniciam sangrenta reação, ancoradas na suspensão das garantias
constitucionais. No início de 1836
isolaram Belém, tentando impedir a chegada de armas e suprimentos. Tendo
perdido o controle sobre a massa rebelada, Angelim foge para o interior, e
Belém volta às mãos da legalidade em 13
de maio daquele ano.
A
posse da capital por Andréa marca a retomada das vilas e povoados, num processo
repressivo implacável e sangrento que se estende até 1840. Os prisioneiros -
muitos sem culpa formada - eram jogados às centenas nas prisões e nos porões
dos navios, sucumbindo em poucos dias. Angelim e Vinagre, deportados por dez
anos, puderam voltar ao Pará e reconstruir suas vidas, mas para a maioria dos
rebeldes de origem humilde o preço da luta pela liberdade foi a morte num
fétido porão de navio ou nas metralhas do pelotão de fuzilamento.
Luís Balkar Sá Peixoto Pinheiro é doutor em
História pela PUC-SP, professor do Departamento de História da Universidade
Federal do Amazonas (UFAM) e autor de Visões da Cabanagem. Manaus:
Valer, 2001.
Garibaldi: pirata ou herói?
Documentos da Guerra dos Farrapos revelam que revolucionário italiano,
apesar de suas façanhas, não era exatamente o "herói de dois mundos"
consagrado pelo mito.
Alvaro Walmrath Bischoff e Cíntia Vieira Souto
O
mito Garibaldi começa quando ele é condenado à morte, em 1834, após fracassada conspiração contra o rei
Carlos Alberto, do Piemonte-Sardenha, aliado dos austríacos, em sua primeira
tentativa de unificação da Itália. Sendo perseguido na Europa, teve de fugir
em 1835 para o Brasil, onde já havia outros exilados italianos. Naquele mesmo
ano, eclodiu a Revolução Farroupilha no Rio Grande do Sul, à qual logo se ligaria. Tito
Zambeccari (1802-1862), secretário do líder farroupilha Bento Gonçalves
(1788-1847), era também um italiano exilado no Brasil, e sua aproximação com
Garibaldi foi inevitável. Por sua prática como marinheiro, este recebeu uma
"carta de corsário farroupilha" - autorização para apresar navios
da marinha brasileira. Iniciava assim, em terras americanas, sua vida de
revolucionário.
Alguns
episódios de Garibaldi no comando da esquadra rio-grandense se tornaram
célebres: o transporte de barcos - lanchões -, por terra, até a foz do rio
Tramandaí, em uma distância estimada em sessenta quilômetros, já que a saída
para o mar pela Lagoa dos Patos estava sob o domínio dos imperiais; a tomada de
Laguna; a anexação de Santa Catarina e fundação da República Juliana, em julho
de 1839; seu romance com Ana Maria de Jesus Ribeiro (1821-1849), futuramente
Anita Garibaldi. Em todos os festejos cívicos que anualmente celebram a
Revolução Farroupilha, Garibaldi é lembrado com veneração. Serão homenagens
merecidas ou exageradas? Em outras palavras, a participação de Garibaldi terá
tido tamanha relevância? Onde acaba a história e onde começa o mito? E ainda:
o que diferenciava Garibaldi dos demais estrangeiros, incluindo muitos
italianos, que lutaram ao lado dos farroupilhas?
Garibaldi,
ao contrário de muitos que pereceram na batalha, abandonou a revolução em 1841,
emigrando para o Uruguai. Ao retornar para a Europa, em 1849, tomou parte nas
lutas pela unificação da Itália. Já em 1860, conquistou Nápoles e a Sicília,
tornando-se mundialmente famoso. A esse tempo, Garibaldi já não era um mero
corsário, mas, sim, um general. Dessa forma, o herói Garibaldi, por muitos venerado,
não foi o pirata farroupilha, mas o general da unificação italiana. Outro elemento
que diferenciou Garibaldi de seus companheiros foi ter escrito seu livro de Memórias,
cuja edição mais famosa foi a do escritor francês Alexandre Dumas, de
1860. Assim, os relatos acerca da atuação de Garibaldi, que serviram para criar
a sua imagem heróica, têm como principal fonte suas próprias Memórias! Acrescente-se
a isso o caráter romanceado da versão de Dumas.
Os
chefes civis e militares farroupilhas, em sua maioria, eram estancieiros e
escravocratas. Não havia espaço, nos postos de comando, para outros segmentos
sociais. Garibaldi, um entre tantos estrangeiros a se bater por uma causa que
não era sua, não era visto como um igual. Um episódio que demonstra como
Garibaldi era visto com desconfiança pelos chefes farroupilhas foi o namoro
deste com Manoela, sobrinha de Bento Gonçalves, que teve destaque na
minissérie A casa das sete mulheres, exibida, em 2003, pela Rede Globo
de Televisão. Assim lemos nas Memórias: "Uma dessas jovens,
Manoela, era senhora do meu coração: sem esperança de poder possuí-la, ainda assim
não poderia deixar de a amar. Era noiva de um dos filhos de Bento
Gonçalves". O romance foi proibido. Bento Gonçalves disse a Garibaldi que
Manoela estava prometida ao seu filho Joaquim. Não era verdade. Garibaldi era
considerado um aventureiro indigno de desposar uma sinhazinha como Manoela.
Uma
carta de Otacílio Ferreira, sobrinho de Manoela, que veio a público somente em
1935, esclareceu a situação: "O suposto noivado com seu primo, filho de
Bento Gonçalves, não passou de um pretexto de seus pais para recusarem o
pedido de Garibaldi, pois embora o recebessem em seu lar e o cumulassem de
gentilezas não deixavam de considerá-lo como aventureiro, motivo pelo qual se
opuseram ao casamento". Manoela de Paula Ferreira morreu solteira, aos 84
anos, aproximadamente no ano de 1900, em Pelotas. Era conhecida como "a
noiva de Garibaldi".
Outro
episódio significativo da passagem de Garibaldi na revolução, por todos
enaltecida, foi a travessia dos lanchões Seival e Farroupilha da
Lagoa dos Patos até as praias de Tramandaí, para auxiliar na conquista de Santa
Catarina: "Os habitantes gozaram então de um espetáculo curioso e
desusado, isto é, verem dois navios em cima de duas carretas, e puxados por
duzentos bois, atravessarem 54 milhas, isto é, 18 léguas, sem a menor
dificuldade, sem o mais pequeno incidente", assim narrado pelo revolucionário
italiano em suas Memórias.
Contudo,
a travessia dos lanchões, como de resto praticamente toda a atividade corsária
de Garibaldi, pouco contribuiu para a consolidação da República Rio-Grandense.
O barco comandado por Garibaldi foi a pique poucas horas após chegar ao mar,
causando prejuízos ao projeto farroupilha. Foi o que relatou o líder
revolucionário David Canabarro em carta a Bento Gonçalves. Essa mesma carta, ao
pedir decretos que regulassem a divisão daquilo que fosse apreendido, aponta
exatamente a função de Garibaldi: um corsário, ou seja, um pirata. Malograda a
expedição a Santa Catarina, que em novembro de 1839 foi retomada pelos
imperiais, Garibaldi retornou ao Rio Grande do Sul. Trazia Ana Maria de Jesus
Ribeiro, que, abandonando o marido para seguir o aventureiro italiano, passou
à História com o nome de Anita Garibaldi.
Nas Memórias,
Garibaldi omite o fato de Anita ser casada quando ele a conheceu. Em 1841,
com o declínio da revolução, ele abandonou o campo de batalha e emigrou para o
Uruguai, alegando ter sido dispensado pelo presidente da República, bem como
ter recebido cerca de novecentas cabeças de gado pela sua participação na
revolução: "(...) numa estância, chamada Curral de Pedras, com o beneplácito
do ministro das Finanças, eu conseguira reunir, em cerca de vinte dias e à
custa de um indizível esforço, algo em torno de novecentos animais - que eram
completamente selvagens". Não há evidências de que Garibaldi tenha
recebido de fato autorização para deixar a revolução. Aliás, na bibliografia e
documentos pesquisados não encontramos menção a esse tipo de autorização, seja
para estrangeiros ou nacionais. Também é pouco crível que, em função das
dificuldades financeiras por que sempre passou a República Rio-Grandense,
fossem destinadas novecentas cabeças de gado para quem estivesse deixando o
campo de batalha.
Ao
que tudo indica Garibaldi parece ter arrebanhado por conta própria a
boiada. Outra interpretação possível, conforme correspondência de Domingos
José de Almeida, é que tal rebanho seria na verdade destinado a Fructuoso
Rivera, em pagamento pelo fornecimento de bens, provavelmente armas, enviados
do Uruguai aos farroupilhas: "Para D. Fructuoso Rivera. São Gabriel, 6 de
abril de 1841. Ao conduto do Ca-pitão-tenente José Garibaldi segue para essa
uma tropa de mil reses de saladero que V. Exa. se servirá mandar receber e
dispor para seu produto, e, depois de pagas as despesas de condução, a
aplicar para pagamento de parte da importância dos objetos entregues ao Capitão
Joaquim Pereira Fagundes; esta tropa vai em nome do dito Capitão-tenente por me
parecer não devê-lo fazer diretamente a V. Exa.".
Garibaldi
nunca entregou os bois a Rivera. Chegando ao Uruguai, dirigiu-se à legação
brasileira de Montevideu pedindo anistia ao imperador dom Pedro II. Enfim, os
documentos contemporâneos à Revolução atestam o papel secundário desempenhado
pelos estrangeiros em geral, e, por Garibaldi, em particular, no movimento
farroupilha.
Alvaro Walmrath Bischoff é licenciado
em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e bacharelando
em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS).
Cíntia Vieira Souto é bacharel
e licenciada em História pela Universidade Federai do Rio Grande do Sul (UFRGS)
e mestre em Ciência Política na mesma universidade. Ambos são historiadores do
Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul.
Insurreição de um homem só
Anselmada foi liderada por político para fazer valer sua vontade contra as
autoridades do governo, num tempo em que questões de poder eram resolvidas à
bala.
Edna Maria
Matos Antonio
Foi a primeira invasão de um
total de três registradas no mesmo ano - acontecimentos que ficaram marcados
na história de Franca como a Anselmada. Apesar de pouco conhecida, há muito que
se especula sobre a natureza e as causas dessa rebelião de um homem só. A Anselmada
instigou importantes historiadores do Instituto Histórico e Geográfico de São
Paulo, como Estevão Leão Bourroul (1856-1914) e Afonso d'Escragnolle Taunay
(1876-1958), sem falar na memória local, que sempre rendeu interpretações
variadas e apaixonadas. Vista como uma briga de famílias ou confronto violento
de fazendeiros contra comerciantes, as explicações nem sempre buscaram maiores
vinculações com os debates políticos do período regencial. Mas deviam.
As correrias causadas por
Anselmo e sua gente alimentaram muitas discussões na Assembleia Provincial
paulista. Nos confrontos entre liberais e conservadores, a Anselmada foi
bastante explorada, por exemplificar os males da descentralização e justificar
o retorno à centralização como elemento básico ao estabelecimento da ordem.
Esta polêmica e a repercussão da rebelião nos jornais de São Paulo e da Corte
representariam mais um agravante ao clima de instabilidade e tensão do
período, que, no quadro mais geral do país, exigiriam a adoção de medidas de
fortalecimento do poder central, legitimando a opção conservadora na formação
do Estado brasileiro.
Claro que existiu uma forte
questão local, presente na disputa entre dois grupos: um novo - formado
por recém-chegados que rapidamente conquistaram poder econômico e prestígio
social na região, como o próprio juiz Antônio Barbosa Sandoval - e outro
composto por pessoas mais tradicionais da comunidade (porque chegaram
primeiro), como Anselmo, incomodadas com a força política conquistada pelos
novos elementos que ingressaram na sociedade local. Para compreendermos melhor
como esses dois grupos passaram da convivência suportável à condição de
inimigos mortais, é importante lembrar que a implantação de medidas de caráter
descentralizador fortaleceu o poder das elites locais. Estas passaram a
controlar a polícia, a justiça e toda a vida administrativa da cidade.
A Anselmada de Franca revela a
luta de facções que disputavam os cargos da administração pública e dos poderes
Legislativo e Judiciário. Valia tudo para alcançar o poder. Provocações,
intimidação, perseguição, controle do eleitorado e a mais comum das estratégias
políticas nos tempos do Império: as fraudes nas eleições. Como último recurso,
o uso da força para retirar o ocupante do cargo, como queria Anselmo em sua
primeira investida. A disputa do cargo de juiz de paz se explica porque era uma
função estrategicamente importante para o controle judiciário da vila, pois
sua função era cuidar dos problemas cotidianos da população, decidindo sem
interferência do poder central.
Autoridade máxima de um
distrito, podia muito bem representar interesses particulares, de grupos ou
pessoas que pudessem ser beneficiados pela omissão ou aplicação mais rigorosa
da justiça. Assim, ser juiz de paz ou tê-lo como aliado era uma vantagem política
importante na localidade e, ao mesmo tempo, sinônimo de poder. Em Franca, ver o
disputado cargo de juiz de paz nas mãos de pessoas de outra facção, somado à
insatisfação de Anselmo com o resultado das eleições de 1836 para a Câmara,
desfavorável ao
seu
grupo, levou-o à ação.
A invasão ocorrida em 27 de
setembro de 1838 foi uma resposta ao não atendimento de suas exigências. Com 74
homens armados de facas, foices e espingardas, Anselmo se dirigiu à casa do
juiz de paz Manoel Rodrigues Pombo para matá-lo. Somente com a intervenção do
padre João Cardoso, amigo do capitão, é que Anselmo muda de ideia. Em vez do
juiz, Anselmo mata o cachorro ao qual ele era muito apegado. Nesta mesma
invasão ele obriga o também juiz municipal José Cursino dos Santos a deixar seu
cargo e soltar da prisão o filho e os amigos de um protegido.
O grupo rival não se intimidaria
tão facilmente. Em 31 de outubro, entre outras autoridades locais,
reuniram-se, na residência de Antônio Barbosa Sandoval, o presidente da Câmara,
José Teixeira Álvares, o juiz José Cursino dos Santos e o comandante
interino da Guarda Nacional, Simão Ferreira de Menezes. O grupo solicitou
soldados do destacamento da vila, armamento e munição. Prepararam-se para o
que chamaram "reação". Foram enviados dois padres à fazenda de
Anselmo, para negociar sua rendição. Mas isso serviria apenas de estímulo para
que Anselmo invadisse a vila pela terceira vez.
Nesse meio tempo, a 6 de
novembro de 1838, ocorreu a morte do juiz de paz Rodrigues Pombo. A suspeita
recaiu imediatamente sobre o capitão, pois todos sabiam do seu desejo de
matá-lo. Pombo fora encontrado mutilado e, segundo algumas testemunhas, o
próprio capitão dissera na vila que tinha dado cabo do juiz. No processo-crime
aberto em 1839, apresentou outra versão: andava o juiz pelas terras da família
de Anselmo quando este o encontrou e pediu que o acompanhasse "por medo
que alguma traição lhe ocorresse". Seguiam na garupa do mesmo cavalo
quando encontraram alguns homens que lhe exigiram a entrega do juiz, o que foi
feito. Passados alguns dias, soube que Pombo estava morto em um buraco e
ordenou que o tirassem de lá e o pusessem na estrada para "ver se havia
alguém que lhe desse sepultura".
Como as autoridades haviam
permanecido em seus cargos, Anselmo atacou a vila em 9 de novembro de 1838,
ferindo e matando os que testemunharam contra ele nos processos abertos para
puni-lo. As autoridades fugiram deixando a vila a sua própria sorte. Muitos
moradores abandonaram suas casas. Os que ficaram enterraram dinheiro, pequenos
pertences e objetos de valor por medo de saque ou de um confronto maior. Por
essa época, Franca possuía 10 mil habitantes, dos quais a maior parte residia
na zona rural, como era comum nas vilas do Brasil oitocentista.
O capitão Anselmo foi indiciado
por três crimes de sedição e pela suspeita de assassinato do juiz de paz. Nos
processos abertos para apurar a primeira e a segunda invasões, sabe-se que não
foi capturado apesar do mandado de prisão, pois os oficiais não conseguiam
encontrá-lo. A ausência de documentos limita o conhecimento sobre a prisão e
julgamento da terceira invasão, mas menções posteriores informam da absolvição
de Anselmo dos crimes de sedição.
Já no processo pelo assassinato
de Pombo, o capitão se apresentou às autoridades, permanecendo preso numa casa
que serviu de prisão até o início do julgamento. Ele colocou homens de vigia na
frente e atrás da igreja, em Batatais, onde se realizava a sessão. Inocentado
da acusação de homicídio, faleceu em 1849, aos 56 anos, mas permaneceu na
memória de Franca a nos lembrar de um tempo em que as questões de honra,
tradição e poder eram resolvidas com bacamarte e pólvora, violência e
autoritarismo, prática aliás bastante enraizada na cultura política do
brasileiro.
Edna Maria Matos Antônio é doutoranda
em História na UNESP/Franca, professora de História do Brasil da Fundação José
Augusto Vieira/Sergipe e autora da dissertação de mestrado A Anselmada:
a trama de uma sedição (1838), defendida na UNESP/Franca em 1999.
O perigo vem das matas
Durante uma guerra que durou três anos, rebeldes "cabanos", lutando
por terra e liberdade, aterrorizaram os senhores de engenho em Pernambuco e
Alagoas.
Janaina Mello
Pelas formas tradicionais de
combate era difícil capturá-los. Conheciam como ninguém a região. Os ataques de
surpresa, seguidos de recuos rápidos para dentro das matas, com a utilização
de "trilhas quase intransitáveis", deixavam os oponentes desnorteados
e costumavam desmantelar a repressão governista. Na correspondência entre o
presidente da província de Pernambuco, Manuel Zeferino dos Santos (14/11/1832 -
27/9/1833), e o ministro do Império Nicolau Pereira de Campos Vergueiro
(13/9/1832 - 23/5/1833), constam, de fato, muitas queixas quanto aos insucessos
da repressão aos cabanos de Alagoas. Pernambuco, por seu turno, estaria
arcando com o ônus do combate nas duas províncias sem possuir homens
suficientes nas tropas de linha, já que as forças militares eram compostas por
civis recrutados compulsoriamente. Estes desertavam do campo de batalha em
grande quantidade, devido ao atraso no soldo e à preocupação com as privações
por que passavam suas famílias por causa de sua ausência no trabalho agrícola.
Havia na época muita exaltação
nas cidades. Disputavam espaço na cena urbana os moderados (plantadores
e comerciantes defensores do equilíbrio, do Estado forte e centralizado, sem
incorporação de populares), os exaltados (proprietários rurais,
militares, padres, funcionários públicos e médicos defensores da soberania
popular, do federalismo, valorizando os pobres) e os restauradores (que
pregavam a centralização absolutista, com a volta do tradicionalismo português
e a recondução de d. Pedro I ao trono). Mas, para os políticos da Corte, o
campo é que era um espaço instável e preocupante.
Num relatório de 1841, quando
aliás já tinha terminado a Cabanada, o ministro da Justiça Paulino José Soares
de Souza, em nome do Partido Conservador, ainda alertava seus pares sobre como
podiam ser perigosas as ideias "das gentes do interior" não
submetidas às leis do governo. Outro político, Justiniano José da Rocha
(1812-1862), em artigos publicados no jornal O Brasil, ao se referir aos
pobres do país, ressaltava o "baixo nível de civilização dessa
gente", e mais a ausência de crença moral, de fé religiosa e de amor ao
trabalho.
A insurreição cabana, com sua
diversidade étnica, estava associada a demandas sociais, tais como o direito à
terra, à liberdade, à justiça e à prática religiosa almejadas por negros, indígenas
e trabalhadores livres. Mas os cabanos não eram todos pobres. A primeira fase
da revolta foi capitaneada por proprietários, entre eles Domingos Lourenço
Torres Galindo e Manuel Afonso de Melo. Alguns haviam participado da sedição
militar de abril do mesmo ano, conhecida como Abrilada, defendendo a
restauração de d. Pedro I, em oposição ao governo liberal moderado instalado
nas províncias e na Corte. Mas, acostumados ao luxo e a privilégios, não
estavam preparados para a vida nas matas. Enfrentando de inimigos armados a
insetos, alimentando-se de frutos silvestres e larvas, tendo seu vestuário
esgarçado por espinhos e galhos, foram facilmente capturados ou mortos em
combate. Outros, em desespero, se renderam às forças governistas.
Índios e negros estavam mais
habituados aos rigores da natureza. Em 1832, a população indígena ingressou na
guerra cabana, atemorizando os senhores de engenho. Eram eles tapuias-kariris,
originários do Terço Paulista (planalto do Piratininga), cujos antepassados
tinham sido trazidos para a região, no século XVII, por Domingos Jorge Velho. A
partir de 1833, o conflito se intensificou com a presença de escravos fugidos
dos engenhos de açúcar ou conduzidos à guerra pelos interesses políticos dos
próprios senhores.
Em 1834, os negros
"papa-méis" (na fala regional, escravos fugitivos que se alimentavam
de mel silvestre nas matas) já eram maioria entre os cabanos. As epidemias e a
escassez de alimentos, resultante da destruição dos roçados de milho pelas
tropas governistas, reduziram o número de índios e lavradores nas fileiras
revoltosas. No governo de Manuel de Carvalho Pais de Andrade (17/1/1834
-11/4/1835), em Pernambuco, as propostas de anistia, com oferta de roupas,
alimentos, remédios, sementes e instrumentos para o cultivo da terra, também
esvaziavam o movimento.
Os negros estavam excluídos
dessa negociação. A eles - que buscavam a liberdade - só restava retornar à
escravidão depois da guerra, e por isso não se renderam. Em 1834, quando os
combates arrefeceram com a deserção dos "livres", os negros fugidos
mantiveram a resistência nas matas. A "guarda negra" -como se refere
aos seus homens Vicente Ferreira de Paula, líder dos cabanos a partir de 1832,
em cartas publicadas no Diário da Administração Pública de Pernambuco - é objeto de grande preocupação para as
autoridades provinciais.
Ao
atacar os engenhos para libertar escravos, os últimos cabanos interferiam na
lógica da produção capitalista, desmoralizando a disciplina necessária ao
domínio senhorial sobre terras e homens e a própria economia açucareira da
região fronteiriça. Os negros papa-méis preferiam a morte em combate, preservan do sua liberdade até o último instante.
Constituíram, no Riacho da Mata, entre o sul de Pernambuco e o norte de
Alagoas, um espaço para sobrevivência de sua economia de coleta, roçado e usos
e costumes bem diferenciados do modo de vida do branco, como o despique (troca
de mulheres) na reprodução do grupo (a criação de uma comunidade de filhos, onde
a mulher casada se relaciona com outros homens. Viúvas participam,
estabelecendo uma rede de ajuda mútua, cuidados e trabalhos domésticos entre
os envolvidos).
A
Cabanada adquiriu dimensão de gravidade nacional justamente por tocar em
pontos decisivos para a economia agroexportadora: a posse de terras por homens
livres e a liberdade dos escravos.
Se,
no final, as lutas entre liberais, moderados e exaltados não trouxeram
melhorias aos pobres do campo, a guerra cabana representou pelo menos uma
interrupção do direito senhorial, em processo efetuado "de baixo para
cima". Os saques e incêndios contra os engenhos significaram não apenas a
subversão da ordem dominante, mas a apropriação, por inversão e destruição, do
patrimônio senhorial.
Por
fim, vieram a pacificação intermediada pelo bispo de Olinda, d. João Marques
Perdigão, a conquista das matas pelas tropas governistas, as prisões, a
repressão aos quilombos de Pernambuco e aos proprietários cúmplices dos
cabanos. Os índios foram reconduzidos aos aldeamentos. A abertura de estradas
no interior reduziu o espaço de conflitos. Os remanescentes da revolta seriam
utilizados em obras públicas ou recrutados à força para dar combate à
Revolução Farroupilha, no sul do país. Só em 1850, 15 anos depois de terminado
o conflito, o líder Vicente Ferreira de Paula foi aprisionado numa emboscada.
Mas a memória cabana permaneceria ainda por muito tempo a assustar, como um
fantasma, os grandes latifundiários da região.
Janaina Mello é professora
assistente de História do Brasil na Universidade Estadual de Alagoas
(FUNESA/ESPI) e doutoranda em História Social na Universidade Federal do Rio de
Janeiro.
Fonte: Revista Nossa História - Ano 4 nº 37 -
Nov. 2006
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