Léguas a nos separar
Em contradição com sua própria linha política, o regime militar
brasileiro apoiou, em 1974, a Revolução dos Cravos, em Portugal, que acabava
com um período de ditadura.
O golpe do 25 de Abril rapidamente se
transformou na Revolução dos Cravos, um dos acontecimentos mais dramáticos do
período da Guerra Fria. Foi inesperado também, ocorrendo praticamente da noite
para o dia. Pegas de surpresa, nações poderosas, como os Estados Unidos, acabaram
na constrangedora posição de meros observadores. Como disse o chefe da delegação da CIA em
Londres, Cord Meyer: “Quando a Revolução aconteceu em Portugal, os Estados
Unidos tinham ‘saído para almoçar’. Foi uma surpresa total”. O processo
revolucionário abriu a possibilidade de que, no chamado “verão quente” de 1975,
sob a chefia do general Vasco Gonçalves, Portugal se aproximasse em demasia do
bloco soviético. Para muitos observadores, havia o perigo real de se
transformar em um país comunista.
A
queda da ditadura portuguesa gerou opiniões diversas, tão comuns naqueles anos
de bipolaridade. Por um lado, por exemplo, o senador norte-americano James
Buckley afirmou, preocupado: “Não há nada a acontecer hoje no mundo – nem no
Sudeste Asiático, nem no Oriente Médio – que tenha metade da importância e seja
mais ameaçador que o avanço comunista para o poder em Portugal”. Por outro
lado, o escritor e jornalista Gabriel García Márquez, em visita a Lisboa para
cobrir a revolução para o jornal colombiano Alternativa, não só comparou a
capital portuguesa à Havana de 1959 como também afirmou suas esperanças em um
futuro socialista na pequena república ibérica.
No Brasil, claro, os acontecimentos
portugueses logo ganharam a atenção de governo, intelectuais e opinião pública.
A oposição à ditadura militar festejou como se a vitória fosse sua. Exilado na
Europa, o cineasta Glauber Rocha dirigiu o belo documentário “As armas e o
povo”, enfatizando o olhar popular a respeito daqueles acontecimentos. O
fotógrafo Sebastião Salgado fez uma série de fotografias tanto da Revolução
quanto da guerra civil na África. Mas foi, talvez, a partir da música de Chico
Buarque de Holanda que o Portugal pós-25 de Abril ficou mais conhecido. A terra
lusitana repleta de conservadorismo, tradição e fé católica se transformou em
lugar da esperança e em exemplo a ser seguido. Pelo menos três canções de Chico
se remetem, direta ou indiretamente, ao tema. A primeira delas, “Fado Tropical”
[ouça com Chico], composta em parceria com
Ruy Guerra para a peça “Calabar: o elogio da traição”, foi escrita antes da
queda do salazarismo. Por ocasião do processo revolucionário, na medida em que
Portugal ou se redemocratizava ou se aproximava do socialismo, dizer que “esta
terra ainda vai cumprir seu ideal/ ainda vai tornar-se um imenso Portugal”
soava provocativo para a ditadura. A canção, assim como a peça, foi proibida.
No início da década de 1980, Chico compôs e gravou “Morena de Angola” [ouça com Chico], “minha camarada do MPLA”, em referência ao
Movimento Popular de Libertação de Angola, o partido marxista que havia tomado
o poder após a descolonização.
O Brasil vivia sob uma forte ditadura e,
para a intelectualidade de esquerda, qualquer derrota de regimes arbitrários à
direita significava um alento. Se a oposição brasileira se regozijava com a
queda do Estado Novo português, era de se esperar que a postura do governo dos
militares fosse oposta. Se não resultasse em um rompimento definitivo, pelo
menos que fossem adotadas medidas de cautela. Não só em relação a Portugal,
mas, sobretudo, em relação às antigas colônias que gradualmente foram aderindo
ao bloco socialista. Apesar do anticomunismo, apesar das relações amistosas com
governos ditatoriais e de direita, como os de Pinochet no Chile e de
Stroessner no Paraguai, para nos restringirmos à América Latina, o
posicionamento brasileiro foi contrário a tudo o que dele se esperava. Já no
dia 27 de abril, o Brasil reconhecia formalmente o novo regime português, tendo
sido o primeiro país a fazê-lo. E ofereceu imediatamente asilo político ao
presidente da República deposto, Américo Tomás, e ao presidente do Conselho de
Ministros, sucessor de Salazar, Marcello Caetano, que veio a falecer no Brasil
seis anos depois.
A questão de Angola
As razões que levaram os militares a
adotar uma política inesperada têm a ver, sobretudo, com a chamada questão
colonial e com as guerras de independência de Angola, Moçambique e Guiné,
travadas desde o início dos anos 1960. Essas batalhas contribuíram para a
derrocada do regime autoritário em Portugal. Álvaro Lins, embaixador brasileiro
em Lisboa no final da década de 1950, vislumbrava a possibilidade de o Brasil
vir a se tornar o herdeiro natural da influência portuguesa nos territórios
africanos. Segundo suas palavras: “O fato evidente e incontestável de que
seremos, em tais colônias, os herdeiros legítimos e substitutos naturais de
Portugal, em matéria de influência cultural e intercâmbio comercial, quando se
tornarem países independentes”.
O otimismo do embaixador, entretanto,
contrastava com a insistência de Portugal em manter as colônias do ultramar. No
início da guerra anticolonial, o Brasil, junto com o Vaticano e a Espanha,
tentou convencer o governo português a optar por uma saída negociada para a
crise. Portugal recusou. Data desta época uma das mais conhecidas frases de
Salazar: “Estamos cada vez mais orgulhosamente sós”. Mas os olhos do Brasil e
dos brasileiros se mantiveram abertos para a evolução da política portuguesa.
A esperança de acompanhar de perto a
evolução da redemocratização portuguesa veio ao lado do desejo de ser parte
integrante do processo de transição das antigas colônias para a independência.
O ministro das Relações Exteriores do Brasil, Antônio Francisco Azeredo da
Silveira, esforçou-se ao máximo para que o governo brasileiro tivesse um papel
de destaque nas negociações com as colônias. Portugal, entretanto, apesar da
gratidão pelo comportamento brasileiro no imediato pós-25 de Abril, mostrava
resistência quanto a um papel de destaque do Brasil nas negociações pela
independência das nações africanas. Para o ministro dos Negócios Estrangeiros
de Portugal, Mário Soares, as negociações deveriam ocorrer sem a mediação de
outros países.
Brasil desagradando o governo de Lisboa
Insatisfeito, o Brasil não hesitou em
tomar atitudes que desagradaram ao governo de Lisboa. Duas delas merecem
destaque: em 16 de julho de 1974, sem consulta prévia aos portugueses, o Brasil
reconhecia a independência da Guiné-Bissau. Esta atitude, que passava por cima
do Tratado de Amizade e Consulta, causou mal-estar em Lisboa. Para Portugal,
tratava-se de uma incursão indevida visando à superação da hegemonia portuguesa
na África. O ministro Mário Soares exigiu desculpas, mas o Itamaraty considerou
injustificada tal medida. Este foi, provavelmente, o momento de maior tensão
nas relações diplomáticas luso-brasileiras durante o processo revolucionário
português. Mesmo após a opção das novas nações africanas de aderirem ao bloco
socialista, o governo brasileiro continuou decidido a influenciar os destinos
daqueles países. No início de 1975, antes de encerradas as negociações para a
independência de Angola, o Brasil instalou uma representação oficial em Luanda.
Proclamada a independência, em 11 de novembro daquele ano, o governo brasileiro
logo reconheceu o feito de Angola, sendo o primeiro país a fazer isso. A
representação logo se transformou em embaixada. A atitude brasileira de
reconhecer um regime com valores marxistas, como era de se esperar, causou
estranheza no corpo diplomático norte-americano.
Indicado pelo ministro das Relações
Exteriores, Antônio Francisco Azeredo da Silveira, o diplomata Ítalo Zappa
chefiava o Departamento de África, Ásia e Oceania do Itamaraty. De cunho
esquerdista, as opiniões de Zappa iam ao encontro da opção do general Geisel de
se afastar do colonialismo português. Esta postura estava vinculada à
possibilidade de o Brasil exercer influência sobre as jovens nações que se
formariam com o fim do sistema colonial.
O Departamento chefiado por Zappa
encontrou situações diferentes nos territórios africanos de língua portuguesa.
A Guiné já tinha seu território reconhecido por um conjunto expressivo de
nações desde setembro de 1973. Moçambique foi reconhecida imediatamente, em
função da existência de apenas um partido político, a Frelimo (Frente de
Libertação de Moçambique), sob a direção de Samora Machel. Sem maiores traumas,
Moçambique teve sua independência reconhecida em 1975, a partir dos processos
de negociação com o governo revolucionário português.
O problema maior se encontrava em Angola.
Na mais rica das colônias portuguesas, três forças políticas se digladiavam
pelo controle do território. A FNLA (Frente Nacional de Libertação de Angola)
tinha seu quartel-general no Zaire, ocupava o nordeste do território e,
militarmente, era apoiada pelos Estados Unidos e pela China. A Unita (União
Nacional pela Independência Total de Angola) tinha sua base militar em Zâmbia e
ocupava o planalto central da colônia. Até maio de 1975, esta organização não
dispunha de grandes patrocínios externos, sendo apoiada secretamente apenas
pelo governo português. As maiores bases do MPLA (Movimento Popular de
Libertação de Angola) situavam-se em Luanda, tanto na periferia quanto entre
suas elites intelectuais. Dirigida pelo médico e poeta Agostinho Neto, contava
com a simpatia dos segmentos radicalizados das Forças Armadas portuguesas. Sua
crescente força militar decorreu dos apoios soviético e cubano, evidenciando
assim a tendência que seguiria caso viesse a obter a vitória nas armas.
Indicado por Ítalo Zappa, o diplomata
Ovídio de Melo foi nomeado chefe da representação brasileira em Luanda. Sua
tarefa consistia em negociar com as forças em conflito, procurando manter
neutralidade. Embora formalmente o fizesse, Ovídio de Melo pendia para o MPLA.
Percebia que a FNLA nada mais era que uma invenção americana, enquanto que a
Unita começava a representar um conluio de interesses portugueses e
sul-africanos. Ao mesmo tempo, afirmava para o corpo diplomático brasileiro o
predomínio do MPLA. Seu comportamento gerou estranheza na diplomacia americana,
que não tardou a pressionar por sua saída.
No Brasil, a opção de Ovídio de Melo e de
nossa diplomacia como um todo também foi motivo de estranhamento. O jornal O
Estado de S. Paulo, por exemplo, ao mesmo tempo em que se opunha à política
externa em relação a Angola, não deixava de alertar para a possibilidade de
constituição de mais um satélite do Kremlin em território africano. Também
dentro das Forças Armadas, o descontentamento se manifestava na voz do general
Sílvio Frota, ministro do Exército e futuro opositor de Geisel.
A despeito de importantes pressões
externas e internas, o Brasil se manteve irredutível no apoio ao MPLA. É bom
lembrar que, além das pressões citadas, a ditadura militar brasileira era alvo
da desconfiança das antigas colônias, que não se esqueciam do recente apoio do
Brasil ao colonialismo português. À medida que a guerra pelo controle do
território se radicalizava, que os Estados Unidos patrocinavam a unidade da
FNLA com a Unita e os embaixadores de diversos países se retiravam de Angola, o
Brasil, com Ovídio de Melo, permanecia em Luanda. As negociações para a independência
angolana se encerraram, conforme previamente acordado, no dia 10 de novembro de
1975. À primeira hora do dia 11, o representante brasileiro se apresentou ao
novo governo, antes mesmo de qualquer país do bloco socialista.
Esperança de transição para a esquerda,
pragmatismo para os militares, maldição para os diplomatas. A Revolução dos
Cravos e a luta pela independência das colônias foram, embora por motivos
diversos, apoiadas por forças contraditórias no Brasil. Vale perceber, neste
breve exemplo histórico, datado de abril de 1974 a novembro de 1975, que a
política é rica em surpresas. Quando se esperava uma radicalização
revolucionária, murchou a festa. Quando se imaginava um alinhamento brasileiro
com os Estados Unidos, a aliança se deu à esquerda. E quando se podia imaginar
o reconhecimento dos artífices da opção brasileira, veio seu incômodo
confinamento em terras distantes. Passados muitos anos desde o fim da ditadura
e do império português, pode-se perceber hoje a importância das escolhas do
governo e da diplomacia do Brasil. Ainda que com a devida “distância entre
intenção e gesto”.
Francisco Carlos Palomanes Martinho é professor
do Departamento de História da Uerj e autor do livro A Bem da Nação: o
Sindicalismo Português entre a Tradição e a Modernidade (1933-1945). Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
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Trem Noturno
para Lisboa
Direção: Bille August
Ano: 2013
Duração: 110 minutos
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