De "Lalau" a santo
Com um jeito discreto e equilibrado, Wenceslau Braz presidiu o Brasil
durante a Primeira Guerra Mundial, reduziu o próprio salário e tirou o país da
crise.
Rodrigo Elias
Filho de um poderoso coronel,
Wenceslau Braz Pereira Gomes nasceu em fevereiro de 1868, em São Caetano da
Vargem Grande, hoje Brazópolis, no sul de Minas Gerais. Sua mãe, Isabel Pereira
dos Santos, administrava a casa nas constantes ausências do marido e ainda o
substituía em compromissos políticos. Seu pai, Francisco Braz Pereira Gomes,
era um chefe político importante da região, apesar de nunca ter frequentado
uma sala de aula - fato do qual se lastimava, fazendo questão de que os filhos
estudassem. O velho Chico Braz era um entusiasta da educação, tendo fundado uma
escola normal, além de destinar o dinheiro que recebia por exercício de cargos
públicos a instituições de ensino e caridade.
O jovem Wenceslau não foi, como
o pai pretendia, aluno exemplar. Matriculado em 1884 na Faculdade de Direito de
São Paulo - onde gravara o nome à ponta de canivete em sua carteira -, suas
notas não ultrapassavam a mediocridade. Chegou a afirmar em uma entrevista, já
aos 96 anos (Wenceslau foi o presidente brasileiro mais longevo): "abusei
da mocidade!"
Mas seu discreto rendimento
escolar não refletia o gosto pelos assuntos públicos. Ainda estudante, foi
responsável pela instalação em sua cidade do Partido Republicano e
Abolicionista, dedicando-se à libertação de escravos e à difusão da
alfabetização. Antes de completar vinte anos, foi convidado por políticos da
região para ocupar uma vaga de deputado provincial, não podendo atender devido
à pouca idade.
Bacharelado em Direito em 1890,
Braz voltou a Minas para advogar. Pouco depois já era vereador e, em seguida,
presidente da Câmara de Vereadores (equivalente hoje ao cargo de prefeito) da
cidade de Monte Santo. Deputado estadual entre 1892 e 1898, foi secretário de
Interior, Justiça e Segurança Pública de Minas de 1898 a 1902. Já estava
casado, nesta época, com a filha de um chefe político do sul mineiro, Maria
Carneiro Pereira Gomes, mãe dos seus sete filhos.
A ascensão política de Wenceslau
foi, de fato, meteórica, e aos 35 anos ele já era deputado federal e líder da
bancada mineira no Congresso Nacional, passando rapidamente a líder da
maioria. Aos 41 anos, em 1909, assumia a presidência do estado de Minas
Gerais, um dos mais poderosos da federação e, no ano seguinte, era eleito
vice-presidente da República na chapa de Hermes da Fonseca. Cabia-lhe, de
acordo com a Constituição de 1891, a presidência do Senado, mas Wenceslau, mineiramente,
retirou-se para Itajubá, próximo à sua cidade natal, dedicando-se a um de seus
passatempos favoritos, a pescaria. Ficou de fora das crises políticas do
azarado - e pouco competente - Dudu (ver Hermes da Fonseca), enquanto o Senado e todo o
governo eram conduzidos pelo senador gaúcho Pinheiro Machado.
Eleito em 1914 com 532.107
votos, "seu Lalau", como Wenceslau também era conhecido, tomou posse
na Presidência com o seu vice, o maranhense Urbano Santos (1859-1922), em meio
à desconfiança. Era o mais jovem presidente eleito, e temia-se que a
influência de Pinheiro Machado durante a "pagodeira hermista" se
repetisse no seu mandato. Um jornal da época afirmou que Pinheiro pretendia
"dispor eternamente dos governos como das suas éguas na fazenda da Boa
Vista".
O panorama ao início do governo
Wenceslau Braz não era, portanto, promissor. Mas o aparentemente tímido e
omisso Lalau revelou-se um determinado homem de Estado. No discurso da posse,
deu o tom do seu governo: "Ao patriotismo dos homens de responsabilidade
do Brasil se impõe, iniludivelmente, uma grande obra de construção política e
econômica e restauração financeira. Está bem claro que esta dupla obra exige
uma mesma base: intransigência moral, administrativa, absoluto respeito às
leis, imparcial aplicação dessas, paz, ordem em todas as modalidades".
Assumindo uma economia à beira
do colapso (300 mil contos de réis em dívidas a pagar, o que ultrapassava 70%
da arrecadação bruta de 1914), sua primeira preocupação foi a contenção de
gastos. Assim, enviou ao Congresso um pedido de corte de 50% no próprio
salário. O Congresso, talvez temeroso do mau exemplo, limitou a redução
a 20%. Wenceslau utilizava o próprio carro, servindo-se de transporte oficial
em raríssimas ocasiões e impedindo seus familiares de fazê-lo. À diferença da
festa na qual se tornara o Palácio do Catete no governo anterior, houve apenas
uma celebração naquela residência oficial durante o seu mandato, quando a
primeira-dama, dona Maria Carneiro, organizou uma recepção para angariar
donativos para flagelados do Nordeste.
Estas medidas, apesar de moralizadoras,
não tinham efeitos práticos no gigantesco rombo das contas estatais. Mas dava
ao governo autoridade moral para agir em outras frentes, cobrando a unificação
das receitas e despesas da União; a abolição de remuneração nas convocações
extraordinárias do Congresso e a eliminação das autorizações
extra-orçamentárias, que considerava "ruinosa prática".
A escolha do ministério favoreceu
critérios de recuperação econômica e independência política, recusando-se
Wenceslau a acatar indicações tanto de Pinheiro Machado quanto de seus
opositores. Colocou à frente dos dois principais ministérios, Fazenda e
Agricultura, dois homens ligados às finanças, respectivamente o mineiro Sabino
Barroso e o fluminense Pandiá Calógeras, este último ligado a Minas. Wenceslau
fiscalizava todo o trabalho de sua equipe; opinava sobre tudo, e ficou
conhecida a sua prática de enviar bilhetes e recortes de jornal para os
ministros e auxiliares diretos. Sua antecipação sobre vários assuntos
causava, segundo um assessor, "perplexidade de uns e admiração de
outros".
Outro problema com o qual se
deparou foi a sucessão do governo do Rio de Janeiro. O candidato apoiado por
Pinheiro Machado, Feliciano Sodré, havia vencido as eleições, mas o Supremo
Tribunal Federal concedera habeas corpus ao seu adversário, o
ex-presidente Nilo Peçanha, declarando-o habilitado para a posse. Wenceslau,
legalista contumaz, não hesitou e obedeceu a decisão do STF, colocando tropas
à disposição da Justiça e empossando Nilo.
Wenceslau Braz teve que lidar com grandes conflagrações dentro e fora do país. A Guerra do Contestado, que se arrastava desde 1912, nascida em meio à disputa na demarcação de limites entre Paraná e Santa
Wenceslau Braz teve que lidar com grandes conflagrações dentro e fora do país. A Guerra do Contestado, que se arrastava desde 1912, nascida em meio à disputa na demarcação de limites entre Paraná e Santa
No plano externo, encontrou a
Europa em plena Primeira Grande Guerra, iniciada em julho de 1914. O Brasil
tomou parte direta no conflito após o torpedeamento de quatro navios mercantes por
submarinos
alemães. Em outubro de 1917, em mensagem enviada ao Congresso, o presidente afirmava
que não cabia ao governo mais do que reconhecer o estado de beligerância imposto
pela Alemanha. Assim, em agosto de 1918, às vésperas do armistício, foi enviada à Europa
uma frota brasileira que, no entanto, não chegou a participar do conflito,
tendo-se abatido sobre a tripulação um surto de gripe espanhola, causando 156 baixas.
A gripe, aliás, foi grande empecilho
à normalização nacional. Apenas no Rio de Janeiro, entre setembro e novembro de 1918, os mortos já chegavam a 17 mil. As ruas, escolas,
lojas e repartições públicas desertas contrastavam com os hospitais e cemitérios
superlotados. A doença não foi vencida no mandato de Wenceslau, e chegou a
matar o seu sucessor, Rodrigues Alves, em 1919, antes de tomar posse da
Presidência.
Para piorar a situação financeira
do país, que apresentou em 1914 déficit na balança comercial pelo segundo ano
consecutivo, o conflito europeu praticamente fechou o principal mercado para o
café. Da mesma forma, recursos externos antes disponíveis para investimento no
país foram canalizados para os gastos bélicos.
Durante o seu governo foi elaborado
ainda o Código Civil, promulgado em 1916, conhecido como "Código
Wenceslau", que vigorou até 2002. Wenceslau ainda promoveu uma reforma no
ensino, restaurando o rigor nos exames de humanidades e contratando
professores mais qualificados através de concursos. Os resultados da mudança,
já no primeiro ano, foram enormes: as reprovações passaram de 2% para 60% nos
exames finais do ensino médio, e as aprovações nos concursos para os cursos
superiores na capital federal saltaram na mesma proporção.
Deixando a Presidência, não se
dedicaria mais à política. Segundo suas palavras, "depois de ter sido
presidente, a nada mais deve aspirar um homem na vida pública". Voltando a
Itajubá, onde morreria, aos 98 anos, em 1966, dedicou-se aos negócios, dirigindo
empresas como uma fábrica de tecidos e um banco, não deixando, entretanto, de
reservar tempo para o que mais gostava de fazer: caçar e pescar.
Sua obra política, financeira,
legislativa e administrativa deu vigor a um país à beira do abismo. Seu Lalau,
recebido em 1914 com arremessos de jaca, deixou a capital federal em 15 de
novem novembro
de 1918, aclamado pelo povo, pelos políticos e pela imprensa. A esta altura, já
o chamavam de "São Wenceslau".
Rodrigo Elias é
professor das Faculdades Integradas Simonsen e pesquisador da Revista de
História da Biblioteca Nacional.
Fonte: Revista Nossa
História - Ano III nº 32 – Julho - 2006
As primeiras notícias sobre a peste que
devastava a Europa, publicadas pela imprensa nos últimos dias de setembro de
1918, também foram encaradas com displicência. Algumas vezes, como aparece na
revista A Careta, as notícias eram abordadas de forma cômica e num tom
de crítica política: a gripe vista como arma bacteriológica criada pelos alemães
para vencer a Primeira Guerra e afastar dos combates os países neutros.
Algumas instituições foram de grande
importância no auxílio da população como a Cruz Vermelha Brasileira, que
improvisou vários hospitais pela cidade para atender ao público, e o Corpo de
Bombeiros que distribuía sopas aos necessitados. Os bombeiros eram responsáveis
também pela venda das galinhas que passaram a ser confiscadas pelo governo em
granjas e casas particulares. A canja, feita com arroz e galinha, era tida como
um ótimo alimento na recuperação dos doentes. Isso originou um mercado negro
de galinhas e vários quebra-quebras pela cidade, consequentes da acirrada
disputa pelas valiosas aves. O colapso das instituições de saúde pública, juntamente
com a falta de médicos, leitos nos hospitais, remédios e alimentos, despertou a
ira da população. Mesmo diante do caos instaurado, as autoridades políticas e
sanitárias insistiam em defender publicamente a benignidade do mal reinante,
tornando mais agudas as tensões sociais instauradas pela pandemia, que
construiu e destruiu reputações. A imprensa conduziu à execração pública, por
exemplo, o diretor-geral da Saúde Pública, Carlos Seidl. Bode expiatório da
gripe espanhola, sua perda de prestígio social foi tamanha que ele jamais se
recuperou.
No auge da epidemia tudo se desorganizou,
inviabilizando funcionamento da cidade, na época centro administrativo e
político do país. As repartições fecharam por falta de funcionários e os
colégios suspenderam as aulas. Diante de todos esses problemas, o próprio
presidente Venceslau Brás (1914-1918) foi acusado de incompetência política.
Saiu do episódio achincalhado pelos seus adversários políticos e pela opinião
pública. Não se candidatou a cargo político pelo resto da vida.
Memória da
peste
Parecia o
fim do mundo: cadáveres insepultos, falta de comida e de remédios para
enfrentar a maior epidemia de todos os tempos. No Rio de Janeiro, usada
politicamente, a gripe espanhola construiu e destruiu reputações.
Adriana da
Costa Goulart
Num espaço de oito meses, a gripe espanhola matou
entre 50 a 100 milhões de pessoas no mundo. Na cidade do Rio de Janeiro, então
capital federal, os índices de mortalidade alcançaram cifras nunca imaginadas.
No mês de setembro de 1918 morreram 48 pessoas, e em outubro os óbitos
aumentaram em 2.000%. Apenas no dia 22 desse mês registra-ram-se 890 mortes.
Vistas no passado como
consequência dos miasmas que habitam as imundícies e os ares fétidos, as
epidemias evocam medos ancestrais, que remontam à antiguidade e à Idade Média.
De fato, sobreviventes da espanhola, entrevistados por mim, hesitaram em
pronunciar o nome da gripe, como se sua simples menção pudesse desencadear
novamente a tragédia vivida.
Nas suas memórias, o médico Pedro
Nava descreve aquele dramático período da seguinte forma: "Aqueles dias
ninguém que os tenha vivido poderá jamais esquecê-los; tudo era de um cinza
purulento, dum roxo podre, poente de chuva, saimento, marcha fúnebre,
viscosidade e catarro."
Os primeiros brasileiros a
contraírem a gripe foram os oficiais do Exército que integravam a Missão
Médica Brasileira. Estavam a caminho de Dacar, no Senegal, com a missão de
auxiliar as forças aliadas. Durante o trajeto, muitos adoeceram e morreram,
tendo seus corpos lançados ao mar. A notícia chegou ao Brasil, por cabograma,
no dia 26 de setembro de 1918. A gravidade do acontecimento e a expansão da
moléstia foi, no entanto, ignorada pelas autoridades, na verdade sem recursos
para montar uma estratégia de socorro à população.
Tal visão da espanhola só se
desfez quando as pessoas começaram a adoecer em massa e as ruas da cidade a
se encher de cadáveres. A incubação da gripe durava de três a sete dias. De uma
simples zoeira nos ouvidos, surdez, dores de cabeça e oscilação de temperatura,
a doença se desenvolvia com os infectados apresentando calafrios, hemorragias
intensas, urina e vómitos misturados a sangue. Tal quadro era acompanhado de
perturbações nos nervos cardíacos, infecções nos intestinos, pulmões e
meninges, levando as vítimas a sufocações, a diarreias, dores lancinantes, à
letargia, ao coma, à intoxicação pela falta de funcionamento dos rins, a
cianose (azulamento da pele), à síncope e finalmente à morte em algumas horas
ou dias, cuja proximidade era conhecida pelo escurecimento dos pés das
vítimas. O doente passava a maior parte do tempo em delírio, devido à febre
alta.
Em muitas casas, famílias
inteiras caíam acamadas, dependendo de quem pela rua passasse para que se
pudessem alimentar e receber remédios. Essa função acabava sendo exercida por
lixeiros, coveiros e policiais, que acudiam os "espanholados". Colovavam-se
panos negros nas janelas para indicar que na casa havia doentes necessitando de
socorro.
Quando as mortes se
intensificaram e não se dava mais vazão às demandas por enterros, punham-se os
pés dos mortos escorados nas janelas das casas para que a Assistência Pública
viesse recolher o corpo. Para cobrir a demanda por caixões, passaram a
fabricá-los com tábuas retiradas dos tetos e assoalhos das casas. Com o
acirramento da crise nos serviços funerários, a população deixava no meio da
rua os corpos dos parentes que já apresentavam sinais de decomposição.
Numa tentativa de normalizar a
coleta dos cadáveres insepultos foram utilizados caminhões de lixo e bondes,
estes apelidados pela população de "trens fantasmas", pois
transportavam os defuntos amortalhados em lençóis brancos, não sendo raro encontrar
alguns vivos entre os mortos. Visando contornar a falta de coveiros, para os
serviços funerários convocaram-se os presos da Casa de Correção, presídio
localizado no Rio de Janeiro, o que só fez aumentar o pânico da população.
Circulavam boatos de que os detentos mutilavam os dedos e as orelhas dos mortos
para roubar brincos e anéis, entre outros mais assombrosos e impactantes.
A Santa Casa da Misericórdia,
único hospital voltado para o atendimento do público na cidade, recebeu da
população a alcunha de "Casa do Diabo". Devido ao elevado número de
mortes na instituição, difundiu-se pela cidade que ali se ministrava aos
doentes mais crônicos uma tisana letal, imortalizada na memória popular como
"chá da meia-noite" - supostamente uma mistura de chá com arsénico.
Foi nesse contexto que a figura
de Carlos Chagas emergiu como herdeiro científico de Oswaldo Cruz. A opinião
pública exigiu que o comando dos serviços de socorro público no combate à
gripe fosse entregue a ele. Chagas foi então requisitado pelo presidente da
República, Venceslau Brás, para administrar as atividades de socorro à
população enferma.
A epidemia foi manipulada,
politicamente, por partidários do conselheiro Rodrigues Alves, que se candidatara
a novo mandato presidencial. Ironia do destino, acabaria como uma das vítimas
mais ilustres da espanhola. Idoso, não resistiu à investida da gripe e morreu
no dia 16 de janeiro de 1919.
De todo modo, a gripe contribuiu
para que as questões de saúde ganhassem mais atenção na agenda política do
governo seguinte. Permaneceu, no entanto, como um enigma. Desde a década de 80
do século passado, cientistas americanos, ingleses e canadenses percorrem o
mundo atrás de corpos conservados de vítimas, de onde possam desentranhar o
vírus adormecido. Até hoje, não se conseguiu produzir em laboratório a carga
viral completa da maior epidemia de todos os tempos. O trabalho de detetive
desses cientistas se justifica: não estamos livres de uma nova gripe assassina.
Para a ciência, é apenas uma questão de tempo. Resta saber se até lá teremos
instrumentos eficazes para impedir ou pelo menos atenuar os seus efeitos catastróficos.
Adriana da Costa Goulart é mestre
em História Social pela Universidade Federal Fluminense onde defendeu
dissertação intitulada Um cenário
mefistofélico: a gripe espanhola no Rio de Janeiro, no ano de 2003.
Fonte: Revista Nossa História - Ano I nº 3 - 2004
Saiba
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