O voto obrigatório é pouco presente no mundo e seus supostos benefícios
não são comprovados. Para que nos serve, então?
O centro de
gravidade das democracias modernas é o sistema eleitoral: um conjunto de regras
que determina quem representa quem durante quanto tempo. Mas por seu excesso de
detalhes é quase impossível ao leigo entendê-lo plenamente. Talvez seja por
isso que circulem tantos mitos em torno dele.
O sistema eleitoral brasileiro é proporcional,
de lista aberta, para os mandatos nas Câmaras municipais e estaduais e na
Câmara dos Deputados. Os mandatos são distribuídos conforme os votos dos
partidos ou coligações que atingiram o quociente eleitoral (calculado a partir
do número de vagas dividido pelo número de votos válidos). Ou seja, mesmo dando
seu voto para um candidato, o eleitor na prática vota na legenda. Os chefes de
governo (prefeitos, governadores e presidente), assim como os senadores, são
eleitos por regra majoritária - ganha o mais votado. Os votos brancos e nulos são
considerados inválidos e, ao contrário do que diz a lenda, não há nenhuma regra
que determine que uma eleição com 50% de votos brancos ou nulos seja anulada.
Outro componente pouco esclarecido é o
voto obrigatório. Poucas regras dentro do sistema político atingem o cidadão de
forma tão direta. Alguns o consideram uma restrição da sua liberdade como
cidadão eleitor. Outros o entendem como um lembrete de que a nossa liberdade
democrática também exige momentos de ação. Essa ambiguidade tem sido traduzida
pelo dualismo “direitos x deveres“. No Brasil, o descontentamento com a
participação compulsória fica mais palpável em anos eleitorais. Isso nem sempre
tem a ver com o voto obrigatório em si, mas sim com a oferta de candidatos e a
cultura das campanhas eleitorais. Em maio de 2014, 61% dos eleitores
entrevistados pelo Datafolha declararam-se contra o voto obrigatório, e 57%
responderam que não iriam votar este ano se o voto fosse facultativo. O grupo
de defensores do voto obrigatório, por outro lado, tende a crescer logo depois
de eleições com baixo comparecimento eleitoral.
Embora haja diferentes concepções quanto
às democracias modernas – desde as contratualistas do século XVII até as
contemporâneas, como em Max Weber e Benjamin Barber no século XX – quase
todas consideram o voto um dever e um direito ao mesmo tempo. Pois é inegável
que o direito de votar foi uma conquista histórica e que eleições precisam de
eleitores. Muitas vezes mal entendido como um debate entre direito ou dever,
os filósofos franceses e ingleses, ao longo do século XIX, se debruçaram, na
verdade, mais sobre a questão para quê e para quem servia
esse direito, se seria um direito individual ou um direito
delegado. Na França, prevaleceu o entendimento de que o cidadão comum não
podia ser obrigado a votar, pois o voto foi-lhe concedido e não exigido.
Em Considerações sobre o governo representativo (1861), o inglês
John Stuart Mill considera que o voto não seria um direito individual, e sim um
direito delegado, pois, o exercício de qualquer função política, seja como um
eleitor ou como um representante, é um poder sobre os outros.
Hoje há países que exigem o comparecimento
por lei e aplicam sanções financeiras (multas), trabalhistas (não poder fazer
concurso público), ou a restrição de direitos civis (não poder tirar o
passaporte), como é o caso do Brasil. Alguns países consideram o voto um dever
civil, mas não aplicam sanções para quem o descumpre. Na Itália, pode ser
difícil para pais que não compareceram às urnas achar um lugar nas creches
públicas para os seus filhos. Nos anos 1950, no estado americano de Illinois,
aqueles que não votaram foram colocados no topo da lista de voluntários em
júris populares, uma tarefa pública não muito desejada. Na Alemanha, o voto é facultativo,
mas é comum que não votantes tenham que se justificar diante de seus
familiares, amigos ou até superiores no trabalho. Todos esses casos mostram que
sanções não estão restritas a sistemas eleitorais com voto obrigatório, e que
na prática a divisão de deveres e direitos é pouco nítida. A maioria das
sanções se refere ao uso de benefícios públicos, e não a direitos individuais.
E o segmento mais propenso a ser confrontado com obrigações eleitorais é o dos
funcionários públicos. O Brasil não é uma exceção.
O ano de
1930 foi um marco na história brasileira, e trouxe mudanças fundamentais para a
ordem política. O golpe de Estado que levou Getúlio Vargas ao poder deu fim à primeira
experiência republicana e implementou mudanças institucionais que
sobreviveram às décadas e às mudanças de regime. Um símbolo dessa fase é o
Código Eleitoral de 24 de fevereiro de 1932.Com ele, criam-se a Justiça
Eleitoral e o sufrágio feminino. O voto passa a ser secreto e direto, o
alistamento eleitoral e o voto tornam-se obrigatórios, com sanções para homens
entre 21 e 60 anos que não fossem alistados. Os títulos eleitorais chegaram a
exigir fotos. Todas essas medidas representaram um novo combate a fraudes
eleitorais e mexeram com a cultura do coronelismo, do famoso “voto de
cabresto“. E a decisão pelo voto obrigatório estava ligada à preocupação de que
uma elevada abstenção comprometesse a legitimidade do processo.
Desde o código eleitoral de 1988, o voto é
obrigatório para todos os cidadãos entre 18 e 70 anos, e facultativo para
jovens de 16 e 17 anos, idosos com mais que 70 anos e analfabetos. Até poucos
anos atrás, o voto obrigatório não era um item discutido publicamente. Desde
2013, este quadro está mudando. Com mais da metade dos eleitores brasileiros a favor
do fim da obrigatoriedade, cada vez mais políticos e agentes públicos vêm se
manifestando contra essa regra quase centenária – como os senadores Francisco
Dornelles (PP/RJ) e Paulo Paim (PT/RS), e o ministro do Supremo Tribunal
Federal (STF), Marco Aurélio Mello. Em face das várias práticas de corrupção
eleitoral e da rápida “amnésia” dos votantes (que logo se esquecem de quem
escolheram para representá-los), há controvérsias sobre a qualidade do voto no
Brasil. Estudos indicam que os possíveis
benefícios do voto obrigatório não se comprovam. Em 2000, o cientista político
Zachary Elkins concluiu, pelas pesquisas realizadas nas eleições de 1994 e
1998, que haveria pouca diferença na equidade da participação eleitoral, por
segmentos sociais, caso o voto fosse facultativo.
O voto obrigatório não necessariamente
aumenta a participação eleitoral. Poucos países usam essa exigência atualmente
(menos de 30) e muitos sistemas com voto facultativo ultrapassam, em
comparecimento às urnas, os sistemas com a obrigatoriedade. A Alemanha, com
voto facultativo, durante muitos anos contou com mais de 80% de participação
dos eleitores. O Brasil atinge a mesma participação aplicando o voto
obrigatório e sanções.
Três supostos benefícios se destacam entre
os argumentos dos defensores do voto obrigatório. A “equalização” seria o
processo em que o voto se “populariza” até não ser mais restrito às elites
econômicas e intelectuais, e sim minimamente bem distribuído entre diferentes
classes sociais. A “homogeneização” significa diminuir a discrepância no
comparecimento eleitoral entre diferentes regiões. Por fim, haveria no voto
obrigatório uma “natureza pedagógica”: habituar o eleitor ao exercício do
direito de votar.
Todas a medidas de moralização da vida
pública nacional são indiscutivelmente úteis e merecem o aplauso de quantos
anseiam pela elevação do político no Brasil. Mas não tenhamos demasiadas
ilusões. A pobreza do povo, especialmente da população rural, e em consequência
o seu atraso cívico e intelectual constituirão sérios obstáculos às intenções
mais nobres, afirmou Vitor Nunes Leal no clássico livro Coronelismo, Enxada
e Voto (1948). Em outras palavras, mudanças fundamentais não dependem
apenas de uma instituição. É preciso identificar quais fatores as impedem. Um
bom passo seria aproximar o cidadão comum das regras que determinam a vida
política que, por sua vez, determina todo o resto.
Hoje, o Brasil tem o maior
eleitorado do mundo a funcionar com voto obrigatório. O que temos aprendido com
ele?
Julia Stadler é
autora da dissertação “The Brazilian Electoral Process and the Reforma
Politica: The Role of Informal Institutions (Universidade de Tübingen,
Alemanha, 2008).
Saiba mais - Bibliogarfia
BIRCH, Sarah. Full
Participation. A comparative study of compulsory voting. New York: United
Nations University Press, 2009.
ELKINS, Zachary. “Quem
iria votar? Conhecendo as consequências do voto obrigatório no Brasil”. Opinião
Pública, 6 (1), p. 109-136, 2000.
LYRA, Augusto Tavares de.
“Regime eleitoral, 1821-1921”. In: ARINOS, Afonso. Modelos alternativos
de representação política no Brasile regime eleitoral, 1821-1921. Brasília:
UnB, 1980.
Saiba mais – Filmes
As Sufragistas
As indicadas ao Oscar® Carey Mulligan e Helena Bonham
Carter, além de Meryl Streep, três vezes vencedora do Oscar®, estrelam este
poderoso drama, inspirado em eventos reais, sobre mulheres dispostas a tudo em
favor de sua luta pela igualdade, na Inglaterra do início do século 21.
Instigada pela fugitiva Emmeline (Meryl Streep), Maud (Carey Mulligan) entra no
crescente movimento sufragista, juntamente com mulheres de todos os níveis
sociais, que sacrificaram seus empregos, suas casas, filhos e até suas vidas
pelo direito de votar.
Direção: Sarah Gavron
Ano: 2016
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