“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

domingo, 27 de abril de 2014

Da polícia do rei à polícia do cidadão

Concebida a partir de um modelo autoritário, desde os tempos de D. João VI a polícia desperta medo e desconfiança na população.
     Não era, com certeza, uma tarefa simples. Acomodar na cidade do Rio de Janeiro o príncipe regente e seu séquito significava encontrar, num curto espaço de tempo, locais suficientes para hospedar de 12 a 15 mil pessoas. Mas o primeiro intendente de polícia Paulo Fernandes Viana a desempenhou com habilidade, em virtude dos amplos poderes que lhe eram atribuídos. Coube a ele garantir o cumprimento da lei das aposentadorias, que obrigava aquele que tivesse sua casa marcada com as letras PR, isto é “Príncipe Regente” (ou, como interpretava o povo, “Ponha-se na Rua” ou ainda “Prédio Roubado”), a entregar o imóvel para a acomodação dos recém-chegados.
     A Intendência Geral de Polícia fora criada pelo Alvará de 10 de maio de 1808, dois meses depois de a Corte portuguesa aportar no Rio de Janeiro. Mantendo a mesma jurisdição que esse órgão tinha em Portugal, a atuação da polícia compreendia, além da manutenção da ordem pública, o cuidado com o espaço urbano, incluindo a responsabilidade de prover a limpeza, a salubridade, a iluminação, o arruamento da cidade, o abastecimento de água. A Intendência tinha também autoridade judicial sobre delitos que ameaçavam a ordem urbana, julgando e punindo os desordeiros, desocupados, escravos fugidos, capoeiras, ciganos, aventureiros.
     Responsável pelo cargo até 1821, Paulo Fernandes Viana, entre outras providências, organizou a Guarda Real de Polícia da Corte, integrada pelo famoso major Miguel Nunes Vidigal (1745-1843), que foi imortalizado em Memórias de um Sargento de Milícias. O aviso de “Lá vem o Vidigal!” provocava fugas e tumultos. A chibata, arma usada por seus guardas, é que dava início à ação policial. Assim escreve Manuel Antônio de Almeida (1831-1861) no seu romance:  “O Major Vidigal era o rei absoluto, o árbitro supremo de tudo o que dizia respeito a esse ramo de administração, era o juiz que julgava e distribuía a pena, e ao mesmo tempo o guarda que dava caça aos criminosos; nas causas da sua imensa alçada não havia testemunhas, nem provas, nem razões, nem processo; ele resumia tudo em si; a sua justiça era infalível; não havia apelação das sentenças que dava; fazia o que queria e ninguém lhe tomava as contas. Exercia, enfim, uma espécie de inquisição policial”. 
     A ação violenta e arbitrária da polícia nessa época já era criticada por contemporâneos, como o jornalista Hipólito José da Costa (1774-1823), que escrevia, de Londres, o Correio Braziliense. Incomodado particularmente com a inclusão da censura à imprensa nas atribuições da Intendência, Hipólito criticava os excessos cometidos no Brasil, confrontando-os com as leis inglesas.
     E, de fato, a criação da Polícia Metropolitana de Londres pelo ministro do Interior, Sir Robert Peel (1788-1850), em 1829, marcaria o surgimento de um outro modelo de polícia, cuja missão básica era prevenir o crime e a desordem, como alternativa à repressão pela força militar e à severidade da punição legal. Essa nova visão levaria à construção de um outro conceito de segurança, entendida como um bem público e universal, que deveria ser garantido pelo Estado sob a forma de um serviço oferecido à sociedade, sem distinção de classe social e sem interferência da política local.
     No Brasil, o surgimento das instituições policiais teve como característica principal a ação repressiva voltada para a manutenção da ordem pública diante da crescente diversidade social e étnica do século XIX. O poder discricionário da polícia se tornou liberdade de ação frente aos preceitos legais e normativos, e o arbítrio foi considerado o principal instrumento de controle e manutenção da segurança do Estado, gerando uma tradição de desrespeito aos direitos individuais. O excesso de poder revelou-se uma característica quase “natural” do exercício da autoridade policial, funcionando como um mecanismo de aplicação extralegal da justiça.
     Esse padrão prevaleceu por toda a época imperial e resistiu às mudanças republicanas, que não conseguiram garantir os direitos civis para toda a população. Não houve interação entre polícia e sociedade, uma vez que as práticas policiais continuaram arbitrárias. A chibata dos tempos do Vidigal foi substituída pelo conhecido “pé na porta”, que ainda hoje dá início à ação policial junto às populações pobres.
     Durante o regime militar, após o golpe de 1964, a segurança pública passou a ser tratada como prioridade a partir da Doutrina de Segurança Nacional, resultando no aprofundamento do modelo autoritário da instituição policial, voltada para o total controle da informação na luta contra o inimigo interno — as organizações políticas de esquerda. A tortura, prática rotineira nas delegacias em todo o país, tornou-se visível para a sociedade nacional ao atingir outros grupos sociais, em especial os de classe média, o que favoreceu o fortalecimento de campanhas contra o regime.
     Os anos 1980 se caracterizaram pela rejeição da concepção militarizada da ação policial, identificada como “herança da ditadura”. Setores de esquerda, com diversas orientações partidárias, demandavam a remodelação e a modernização das instituições policiais, com a adoção de linhas de ação que respeitassem os direitos dos cidadãos.
     A Constituição de 1988 representou uma mudança na concepção da segurança pública. Além de “dever do Estado”, como afirmava o art. 144, ela passou a ser também responsabilidade de todos, o que significava, formalmente, o reconhecimento de um Estado democrático, no qual a concepção de ordem está diretamente relacionada às atitudes e valores do cidadão, quer isoladamente, quer em coletividade.
     O processo de redemocratização do Brasil trouxe uma expectativa de expansão de direitos individuais, políticos e sociais mediante a concretização do estado de direito. No entanto, tem-se observado a permanência do exercício arbitrário e ilegal do poder, que tem resultado em uma série de violações, entre as quais se destaca a violência da polícia, que significa o abuso da força nas suas intervenções, particularmente da força letal, bem como o uso da tortura para obter confissões nas investigações e para garantir o controle dos presos. Todas as evidências indicam que essa brutalidade é exercida fundamentalmente contra alguns dos grupos mais vulneráveis da sociedade: moradores de favelas ou bairros pobres, e negros.
     A violência policial representa uma das graves manifestações de violação de direitos humanos no Brasil. Se, por um lado, a instituição tem a atribuição do uso da força física, isto deve se dar a partir de limites claros, fundamentados nas leis. Mas as práticas cotidianas das polícias revelam que não há efetivamente clareza acerca dos limites do trabalho policial.
     A consequência desse quadro é uma forte deslegitimação das instituições policiais, que são percebidas com desconfiança e descrença pela população, o que não significa a negação do papel da instituição.  Grande parte da sociedade civil tem reivindicado que as organizações policiais atuem no sentido de manter e preservar a ordem pública, mas espera que a atuação cotidiana delas aconteça sem a violação de garantias individuais e coletivas. O desafio que se coloca é como utilizar a força baseando-se na legalidade e na legitimidade.
     No entanto, há uma parcela da sociedade civil que deseja uma polícia mais repressiva e violenta para os criminosos, a partir de uma concepção de direitos que se aplica apenas aos que são considerados cidadãos de bem. Ao negar-se a universalização de direitos e apoiar as estratégias de “guerra contra o crime”, defende-se a permanência de práticas autoritárias, que historicamente têm se mostrado ineficazes, porque não dão conta de dois aspectos fundamentais: a manutenção da ordem pública não se dá com o extermínio da diferença e a democracia não se consolida pelo uso da violência.

Ana Paula Miranda é professora da Universidade Candido Mendes (Ucam) e diretora-presidente do Instituto de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro (ISP).
Lana Lage é professora titular da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (Uenf) e coordenadora de projetos do Instituto de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro.

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terça-feira, 1 de abril de 2014

41 filmes para conhecer a Ditadura civil-militar do Brasil

Repressão, censura, porões. Resistência, greves, guerrilhas, movimentos culturais. A ascensão e declínio do regime militar-civil, em obras importantes do cinema brasileiro.
01. O desafio (1965), Paulo César Sarraceni

02. Manhã cinzenta (1968), Olney São Paulo

03. Brazil: A Report on Torture (1971), de Haskell Wexler e Saul Landau.

04. Paula: a história de uma subversiva (1979), F. Ramalho Jr.

05. Eles Não Usam Black-Tie (1981), Leon Hirszman

06. Pra frente, Brasil (1982), Roberto Farias

07. Cabra marcado para morrer (1984), Eduardo Coutinho

08. Nunca Fomos tão Felizes (1984), Murilo Sales

09. Jango (1984), Silvio Tendler

10. Que Bom Te Ver Viva (1989,), Lucia Murat

11. Kuarup (1989), Ruy Guerra

12. Corpo em Delito (1990), Nuno César Abreu

13. ABC da greve (1990), Leon Hirszman

14. Lamarca (1994), Sérgio Resende

15. O Que É Isso, Companheiro? (1997), Bruno Barreto

16. Ação Entre Amigos (1998), Beto Brant
17. Barra 68 Sem Perder a Ternura (2001), Vladimir Carvalho

18. Cabra cega (2004), Toni Ventura

19. Araguaya: a Conspiração do Silêncio (2004) Ronaldo Duque

20. Quase dois irmãos (2004) Lúcia Murat



21. Memórias clandestinas (2004), Maria Thereza Azevedo

22. Peões (2004), Eduardo Coutinho

23. Memória política: Vera Silva Magalhães (2004), TV Câmara

24. Tempo de resistência (2005), André Ristun

25. Vlado: 30 anos depois (2005), João Batista de Andrade

26. O ano em que meus pais saíram de férias (2006), Cao Hamburguer

27. Zuzu Angel (2006), Sérgio Resende

28. Hércules 56 (2006), Silvio Da-Rin

29. Batismo de sangue (2007), Helvécio Ratton

30. Memória Para Uso Diário (2007), Beth Formaggini

31. Caparaó (2007), Flavio Frederico

32. Cidadão Boilesen (2009), Chaim Litewski

33. Dossiê Jango (2012), Paulo Henrique Fontenelle

34. Marighella (2012), de Isa Grinspum Ferraz

35. O dia que durou 21 anos (2012), Camilo Tavares
36. Memórias do Chumbo – O Futebol nos Tempos do Condor: BRASIL (2012). Lúcio de Castro/ESPN

37. Memórias do Chumbo – Argentina (2012). Lúcio de Castro/ESPN

38. Memórias do Chumbo – Uruguai (2012), Lúcio de Castro/ESPN

39. Memórias do Chumbo – Chile (2012), Lúcio de Castro/ESPN

40. Cara ou coroa (2012), Ugo Giorgetti

41. A memória que me contam (2012), de Lúcia Murat