“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

sexta-feira, 26 de julho de 2013

Além da versão oficial

João Pessoa, João Goulart, Carlos Lacerda, Tancredo Neves, Juscelino Kubitschek, Elza Fernandes,
Pinheiro Machado, D. Pedro II . Muitas foram as mortes que deixaram a população com a pulga atrás da orelha. Causas naturais ou assassinato? Confira uma galeria de casos que geraram intrigas e teorias conspiratórias
     Primeiro ela deu um tiro no namorado. Depois, sentou-se na cama e atirou no próprio peito. Os dois foram encontrados mortos na casa de praia dele, em Maceió, Alagoas, no dia 23 de junho de 1996. Esta é a versão da polícia alagoana. A princípio, fica fácil acreditar que se trata de um crime passional. Mas a desconfiança começa a surgir quando o namorado em questão é Paulo César Farias, o tesoureiro da campanha do ex-presidente Fernando Collor de Mello. O mesmo que deu nome a um dos maiores esquemas de corrupção da História do Brasil, o Esquema PC.
     Conforme a investigação avançava, as dúvidas aumentavam. No livro Morcegos negros, o jornalista Lucas Figueiredo aponta algumas falhas: o local do crime não foi preservado, não houve busca de resíduos de pólvora nas mãos dos seguranças – que dizem não ter ouvido os tiros –, e ainda por cima, o colchão onde o casal morreu foi queimado pela família de PC Farias. Estranho...           
 
     Mas quem vai questionar a versão oficial? Muita gente. De boca em boca, as histórias de possíveis crimes políticos ganham fama. Quando João Pessoa (1878-1930) foi assassinado, muitos acreditaram que se tratava de um crime passional. A trama chegou a virar o filme Parahyba, Mulher Macho (1983), Tizuka Yamazaki. Mas pode não ter sido bem assim.
     A morte do marechal Castelo Branco (1897-1967) num acidente aéreo no dia 18 de julho de 1967, quatro meses depois de ter deixado a Presidência, também deixou a população desconfiada. Os jornais descreviam detalhes do choque entre o avião de Castelo Branco e um jato da Força Aérea Brasileira. Logo a FAB! Segundo a Última Hora, a morte “foi causada por violenta pancada no pulmão, ao destroçar-se a aeronave nas proximidades de Mondubim, a seis quilômetros de Fortaleza”.
     O ex-presidente ia da fazenda da escritora e amiga Rachel de Queiroz (1910-2003), em Quixadá, para Fortaleza. Em 1991, em uma entrevista no programa “Roda Viva”, da TV Cultura, Rachel deu um depoimento que deu um banho de água fria em quem achava que o choque entre os aviões tivesse sido um atentado. Segundo ela, Castelo Branco pediu ao piloto que passasse por cima da maior linha de distribuição de energia do São Francisco para ver os postes de alta tensão. O comandante ficou indeciso, mas atendeu ao pedido. “No instante em que eles atravessaram a linha, vinha uma formação de três jatos, e a ponta de um dos jatos pegou. De forma que o atentado seria impossível, tinham que adivinhar que o Castelo ia pedir, que o comandante não iria, depois cedeu, e que o jato iria coincidir naquela hora...”, contou a escritora. O relato se baseia no testemunho do único sobrevivente do acidente: o filho de Castelo Branco. 
     Para uns, depoimentos como esse confirmam a versão oficial; para outros, é apenas mais uma. Nunca se sabe ao certo onde nascem os boatos que formam uma teoria conspiratória. “Essa é uma característica que torna difícil a análise pelos historiadores”, diz o historiador Douglas Attila Marcelino. Mas será que esse gosto por teorias conspiratórias é inato? Para o psicanalista Benilton Bezerra Jr., essa preferência pela hipótese de atentados pode ser motivada por certa busca de sentido para os eventos. “Inscrever um crime numa trama ou narrativa política dá a ele um sentido maior, que ultrapassa o mero acidente. Nós somos seres de sentido, procuramos significado em tudo que nos acontece. Isto é um movimento natural nos humanos”, esclarece Bezerra Jr.
     O psicanalista chama atenção para o fato de que a própria História pode influenciar essa desconfiança em relação às versões oficiais. “Há muitos eventos e crimes provocados por interesses políticos que só se tornaram públicos muito tempo depois do acontecido. Desmentidos oficiais nunca são vistos, com boas razões, como critério de verdade. Na dúvida, melhor manter abertas as possibilidades”.
 
Crimes duvidosos: Atentados
D. Pedro II - Morte nada suspeita
José Murilo de Carvalho
     O imperador brasileiro morreu de pneumonia, em 5 de dezembro de 1891, em sua cama, em um quarto de hotel em Paris. Uma morte nada suspeita. Mas por pouco Pedro II (1825-1891) não entrou para a lista das personalidades políticas assassinadas no Brasil. Em 15 de julho de 1889 – quatro meses antes do golpe que o derrubaria do poder –, ele saía de um teatro no Centro do Rio de Janeiro quando ouviu um grito de “Viva a República!” Um jovem sacou um revólver e deu um tiro na direção do imperador, mas ninguém foi atingido.
     Foi o primeiro atentado contra a vida de um chefe de Estado no país. O clima era tenso na capital desde a véspera, quando um grupo de estudantes republicanos que queriam comemorar o centenário da Revolução Francesa entrou em confronto com a Guarda Negra, formada por libertos. O culpado do atentado ao imperador foi preso horas depois do crime. Era Adriano Augusto do Vale (?-1903), um caixeiro português desempregado. Apesar da acusação de ter contato com republicanos radicais, a motivação para o crime nunca ficou clara.
     Diante das manifestações de solidariedade, Pedro II minimizou o fato, alegando que tinha sido apenas o tiro de um louco que ele mal notara. Uma semana após a proclamação da República, o acusado foi julgado e absolvido sem apontar nenhum cúmplice.
José Murilo de Carvalho é professor aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autor de D. Pedro II: ser ou não ser (Companhia das Letras, 2007).

Pinheiro Machado - Manso, desequilíbrio motivado pela imprensa
Vera Lúcia Bogéa Borges
     Em 1915, dizia-se que o senador gaúcho José Gomes Pinheiro Machado (1851-1915) mandava mais do que o presidente da República. Mas sua imagem sofreu um desgaste, que estava associado ao poder que tinha no processo eleitoral. Era ele quem controlava a Comissão de Verificação, que apresentava os resultados e diplomava os candidatos eleitos. O Congresso chegou a receber um projeto de lei pedindo a “extinção” de Pinheiro Machado por decreto. A imprensa promovia uma campanha contra ele, mas nada o derrubava. Até que, no dia 8 de setembro, Francisco Manso Paiva (1884 –19?) entrou no Hotel dos Estrangeiros, no Rio de Janeiro, onde três políticos conversavam no saguão, e cravou um punhal nas costas do senador, que ainda exclamou: “Ah, canalha!”. Terminava assim a vida do poderoso Pinheiro Machado.
     Após cometer o crime, o assassino foi preso por dois guardas a poucos metros dali. A investigação concluiu que não houve motivação política. Manso Paiva seria um desequilibrado que havia agido sozinho, incentivado pelas críticas da imprensa ao senador. Ele ficou preso por 20 anos, e após ser libertado conseguiu um emprego no Instituto Brasileiro do Café, por meio de contatos do jornalista Assis Chateaubriand (1892-1968), e passou a vender bilhetes de loteria nas redações dos jornais nas horas vagas. Até hoje, nunca ficou provado se ele teve alguma razão política para matar Pinheiro Machado. Manso Paiva sustentou sua versão até o fim da vida e declarou ao repórter Edmar Morel: “Não houve mandantes (...) Nasceu em mim a obsessão por matá-lo, na certeza de que livraria o Brasil de um tirano”.
Vera Lúcia Bogéa Borges é professora de História do Colégio Pedro II (CPII) e autora de Morte na República: os últimos anos de Pinheiro Machado e a política oligárquica (1909-1915) (IHGB, 2004).

João Pessoa - Honra lavada vira revolução
Inês Caminha Lopes Rodrigues
     Presidente da Paraíba de 22 de outubro de 1928 a 26 de julho de 1930 e candidato a vice na chapa de Getulio Vargas, João Pessoa (1878-1930) era contra tomar o poder à força caso perdesse a eleição presidencial de março de 1930. “Prefiro dez Júlio Prestes (candidato adversário) a uma revolução”, declarou durante a passagem da Caravana da Aliança Liberal pela Paraíba a fim de conclamar a Região Norte para a sublevaçna Paraão. Prestes foi o vencedor, e apesar da insatisfação com o modelo econômico e político do país e a alternância de São Paulo e Minas Gerais no poder, Vargas se encaminhava para aceitar a derrota. Mas o assassinato de João Pessoa serviu de estopim para o início da revolução.
     O crime estava mais relacionado a questões locais do que nacionais. João Pessoa havia tomado medidas contra os coronéis, líderes políticos locais, o que levou um deles, José Pereira, a iniciar uma revolta no município de Princesa em 28 de fevereiro de 1930. No início de julho, o advogado João Dantas (1888-1930), que seria ligado a Pereira, teve o seu escritório-residência arrombado pelas forças do governo. Sentindo-se humilhado, assassinou o presidente do Estado a tiros no dia 26 de julho, na Confeitaria Glória, no Recife.
     A comoção causada pelo crime serviu para mobilizar partidários de Vargas, que tomaram o poder em 3 de outubro. “João Pessoa vivo foi uma voz contra a revolução. Mas João Pessoa morto foi o verdadeiro rearticulador do movimento revolucionário”, definiu o jornalista Barbosa Lima Sobrinho (1897-2000).
Inês Caminha Lopes Rodrigues é professora aposentada da Universidade Federal da Paraíba e autora de A Revolta de Princesa: poder privado x poder instituído (Brasiliense, 1981).

Elza Fernandes - Traição ou ingenuidade?
Raul Rebello Vital Junior
     Elvira Cupello Calônio (1920-1936), uma jovem de 16 anos do interior de São Paulo, apaixonou-se pelo secretário-geral do Partido Comunista do Brasil (PCB), Antônio Maciel Bonfim, mais conhecido como Miranda. Os dois se conheceram em Copacabana, quando ela foi trabalhar como doméstica, e logo foram morar juntos. Elvira, então, passou a adotar o codinome Elza Fernandes. Miranda nasceu em 1905 e faleceu no final da década de 1940. Após o levante comunista de 1935, aumentou a repressão ao PCB. Miranda e Elza foram presos em janeiro do ano seguinte. Após ser solta pela polícia, ela foi “condenada” pelo partido por traição e executada. A polícia nada pôde provar sobre o assassinato no ano em que ele ocorreu. Somente em 1940 é que o caso vem à tona. No mês de abril, Luiz Carlos Prestes já aparecia como mentor intelectual da morte de Elza em importantes jornais da época.
     A notícia de seu estrangulamento contribuiu para estimular o sentimento anticomunista, reforçado pela imprensa. Houve a suspeita de que o casal teria denunciado outros membros do partido, porque a polícia libertou Elza duas semanas após detê-la, enquanto Miranda era barbaramente torturado pela polícia. Além disso, vários comunistas foram presos depois que ela saiu da cadeia e fez contato com dirigentes importantes. Entre esses dirigentes estavam Rodolfo Ghioldi e João Barbosa de Melo.  A investigação conduzida pelo “Tribunal Vermelho” do PCB, sob influência do líder Luiz Carlos Prestes (1898-1990) por meio de um bilhete, selou o destino de Elza.  Há controvérsias sobre o fato de Elza ter delatado seus companheiros. Acredita-se que ela era uma inocente sem formação política, e por causa da sua ingenuidade teria sido usada pela polícia, que passou a segui-la.  
Raul Rebello Vital Junior é professor das Faculdades Porto-Alegrenses de Educação, Ciências e Letras e autor da dissertação Tribunal Vermelho: em cena o caso Elza Fernandesrecortes do anticomunismo brasileiro durante o Estado Novo” (PUC-RS, 2001).

João Goulart - Ataque político, parada cardíaca
Oswaldo Munteal Filho
     João Goulart (1918-1976), presidente da República de 1961 a 1964, morreu na mesma época que seus colegas de aliança, o também ex-presidente Juscelino Kubitschek e o ex-governador do Rio de Janeiro Carlos Lacerda. Integrante da Frente Ampla – formada em 1968 contra a ditadura militar –, ele teria sofrido um ataque cardíaco em sua fazenda em Mercedes, na Argentina, onde estava exilado. Esta é a tese aceita pela história oficial, mas novas explicações têm surgido nos últimos anos.
     Em 2008, em entrevista à Folha de S. Paulo, o ex-agente do serviço secreto uruguaio Mario Neira Barreiro, que está preso em Charqueadas (RS), afirmou ter participado da Operação Escorpião – braço brasileiro da Operação Condor –, que resultou no envenenamento do ex-presidente. A tese de assassinato é reforçada pelo fato de Jango ter sido vigiado por autoridades militares desde 1954, quando renunciou ao cargo de ministro do Trabalho de Getúlio Vargas (1882-1954), e pelas recentes declarações de Jarbas Passarinho, político que ocupou três ministérios durante a ditadura. Segundo Passarinho, durante o governo do general Ernesto Geisel (1974-1979) houve uma orientação para o extermínio dos adversários políticos.
 Oswaldo Munteal Filho é professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e autor de Tempo negro, temperatura sufocante: Estado e sociedade no Brasil do AI-5 (PUC-Rio/ Contraponto, 2008).

Saiba mais – link:

Juscelino Kubitschek - Viagem marcada, acidente planejado
Marcelo Squinca da Silva
     Presidente da República de 1956 a 1961, Juscelino Kubitschek (1902-1976) viajava de São Paulo para o Rio de Janeiro na tarde de 22 de agosto de 1976. Seu carro, guiado pelo motorista Geraldo Ribeiro, foi atingido por um ônibus, atravessou a pista da Via Dutra e bateu de frente com uma carreta. Terminou ali a vida de um símbolo da resistência à ditadura militar, que em 1968 havia formado com o ex-presidente João Goulart e com Carlos Lacerda, ex-governador do Rio, a Frente Ampla de oposição ao regime. A família de JK acreditou que sua morte tinha sido um crime político, mas nunca conseguiu provar. O motivo seria a eliminação de líderes de oposição às ditaduras latino-americanas.
     Na época, a Justiça considerou o episódio um acidente, e não um atentado. O governo militar resistiu, mas aceitou decretar luto de três dias. No enterro do ex-presidente, em Brasília, houve uma grande manifestação popular contra a ditadura. Não houve palavras de ordem ou coisa parecida, mas cantos, como a cantiga folclórica “Peixe vivo”, que significava uma saudação a JK.
     Em 2000, a Câmara dos Deputados formou uma comissão para apurar a morte do ex-presidente, mas chegou à conclusão de que se tratou mesmo de acidente. Ainda hoje, muitos pesquisadores não estão convencidos da versão oficial. A suspeita aumentou após a revelação – no romance-reportagem O beijo da morte (2003), de Carlos Heitor Cony e Anna Lee – de que seu nome estaria na agenda da Operação Condor – articulação das ditaduras do Cone Sul, nos anos 1970, para eliminar inimigos.
Marcelo Squinca da Silva é professor da Universidade Cidade de São Paulo e da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e autor da tese “Um caso de desamor: o debate sobre a estatização do setor de energia elétrica (1956-1961)” (PUC-SP, 2009).

Saiba mais – link:

Carlos Lacerda - Histórias mal contadas
Angela Moreira Domingues da Silva
     Dois episódios da vida do jornalista e político Carlos Lacerda (1914-1977) são cercados de dúvidas e indagações. O primeiro é o que ficou conhecido como o “atentado da Rua Tonelero”, em 5 de agosto de 1954, quando Lacerda foi alvejado em frente à sua residência, em Copacabana. O major-aviador Rubens Florentino Vaz, integrante de um grupo de oficiais da Aeronáutica que dava proteção ao deputado federal, morreu em decorrência do tiroteio. A versão oficial sobre a emboscada é de que ela foi perpetrada por grupos ligados ao presidente Getúlio Vargas (1882-1954), principal adversário político de Lacerda. Após instauração de Inquérito Policial Militar, as acusações recaíram sobre Alcino João do Nascimento, autor dos disparos, e Gregório Fortunato (1900-1962), chefe da guarda pessoal de Vargas, acusado de mandante do crime. O tom do inquérito, indicando o “Palácio do Catete como uma constante” na investigação dos fatos, e o suposto “amadorismo” dos envolvidos no atentado, que deixaram pistas consideradas “evidentes” sobre a autoria do crime, provocam um clima de desconfiança e questionamento sobre a versão oficial.
     O segundo episódio polêmico diz respeito à morte de Lacerda, em 21 de maio de 1977. Internado em uma clínica no Rio de Janeiro, aparentemente com uma forte gripe, ele faleceu sem um diagnóstico preciso – infecção generalizada –, não questionado na época. As suposições de que sua morte não foi natural se baseiam na ausência de causas para a infecção. Além disso, o jornalista morreu em data próxima às das mortes dos ex-presidentes Juscelino Kubitschek e João Goulart, o que alimenta o ar de mistério que persiste.
Angela Moreira Domingues da Silva é autora da dissertação “Ditadura militar e repressão legal: a pena de morte rediviva e o caso Theodomiro Romeiro dos Santos (1969-1971)” (UFRJ, 2007).

Tancredo Neves - Múltiplas causas mortis
Douglas Attila Marcelino
     Depois de 21 anos de ditadura militar, o Brasil vivia a expectativa de ter o primeiro presidente civil. Tancredo Neves (1910-1985) fora eleito pelo Congresso Nacional e deveria tomar posse no cargo no dia 15 de março de 1985. Mas, na véspera, chegou a notícia inesperada: ele tinha sido internado num hospital de Brasília, o que desatou uma onda de boatos sobre o motivo da internação. Tiro no peito? Envenenamento? As diferentes versões vinham de todas as partes, sem que ninguém pudesse dizer ao certo onde surgiram.    O grande temor era de que o suposto atentado tivesse o objetivo de interromper o processo de redemocratização do país.
     A demora dos canais oficiais de comunicação em informar o verdadeiro estado de saúde do paciente reforçou os rumores. No dia 21 de abril, sua morte foi finalmente anunciada. A explicação oficial aponta que Tancredo foi vítima de um tumor no intestino, inicialmente diagnosticado como diverticulite. O choque da população com a notícia foi grande porque a campanha presidencial tinha feito um investimento sem precedentes na imagem do político, chegando a afirmar que sua saúde era perfeita, apesar dos 75 anos. Depois de sua vitória, a revista Manchete chegou a publicar uma conversa com o médico de Tancredo: sua saúde se devia à ingestão diária de cápsulas de magnésio. A informação fortalecia a confiança na sua saúde e chegou a aumentar o consumo daquele mineral.
     Mesmo após a morte de Tancredo, os boatos continuaram. Há, inclusive, quem acredite que ele morreu antes de 21 de abril, e que essa data teria sido escolhida para o anúncio por ser Dia de Tiradentes. Assim se poderia reforçar a associação entre a sua morte e a do inconfidente.
Douglas Attila Marcelino é autor da dissertação “Salvando a pátria da pornografia e da subversão: a censura de livros e diversões públicas nos anos 1970” (UFRJ, 2006).

Saiba mais – link:

quarta-feira, 24 de julho de 2013

Cronologia da abolição da escravatura

1772
O julgamento do escravo fugitivo Somersett, abre precedente para que a Justiça britânica não mais apóie a escravidão.
1794
Primeiro país a proibir a escravidão, o Haiti tem sua legislação abolicionista revogada por Napoleão em 1802.
1807
O Parlamento britânico aprova o Abolition Act, que proibia o tráfico de escravos na Inglaterra.
1810
Tratado de Aliança e Amizade entre Portugal e Inglaterra. Estabelece a abolição gradual da escravidão e delimita as possessões portuguesas na África como as únicas que poderiam continuar o tráfico.
1823
José Bonifácio na Assembleia Constituinte, apresenta uma representação sobre a abolição da escravatura e a emancipação gradual dos escravos.
É aprovada a lei que proíbe a escravidão no Chile.
1826
A Inglaterra impõe ao governo brasileiro o compromisso de decretar a abolição do tráfico em três anos.
1829
Durante o governo de Vicente Guerrero, é decretada a abolição da escravatura no México.
1831
Lei Feijó. Proíbe o tráfico e considera livres todos os africanos introduzidos no Brasil a partir desta data. A lei foi ignorada e chamada popularmente de “lei para inglês ver”.
1833
É sancionada no Parlamento a extinção da escravatura, que é estendida a todo o Império britânico.
1845
Slave Trade Suppression Act (Bill Aberdeen).
Lei britânica que proibia o comércio de escravos entre a África e a América.
1848
Em 1794, a convenção republicana francesa votou pela abolição nas suas colônias, mas somente em 1848 os escravos são emancipados.
1850
Lei Eusébio de Queiróz. Proíbe o comércio de escravos para o Brasil.
1854
Lei Nabuco de Araújo. Previa sanções para as autoridades que encobrissem o contrabando de escravos.
É decretado o fim da escravidão na Venezuela e no Peru.
1865
Com o fim da Guerra de Secessão nos Estados Unidos (1861-1865), o presidente Lincoln declara extinta a escravidão em todo o território norte-americano.
1869
Portugal torna ilegal a escravidão, mas já havia decretado a liberdade dos escravos em seus territórios desde 1854.
1871
Lei do Ventre Livre. Concede liberdade aos filhos de escravos nascidos a partir dessa data, mas os mantém sob a tutela dos seus senhores até atingirem a idade de 21 anos.
1874
Os escravos são emancipados na Costa do Ouro (atual Gana) após a conquista do reino de Axante pelos ingleses.
1880
Joaquim Nabuco (deputado de Pernambuco) apresenta à Câmara um projeto de lei propondo a abolição da escravidão com indenização até 1890.
Fundação da Sociedade Brasileira contra a Escravidão e de seu jornal, O Abolicionista.
1883
Publicação de O Abolicionismo, de Joaquim Nabuco.
Criação da Confederação Abolicionista / panfleto de André Rebouças, Abolição imediata e sem indenização.
1884
Extinção da escravidão no Ceará.
1885
 Lei dos Sexagenários (Saraiva-Cotegipe), que concede liberdade aos escravos com mais de 60 anos.
1886
O tráfico foi oficialmente extinto em Cuba, que passou a receber mão-de-obra chinesa para trabalhar no plantio de cana-de-açúcar.
1887
Quilombo de Jabaquara.
Fundado por José do Patrocínio o jornal abolicionista Cidade do Rio.
1888
Lei Áurea. Extinguiu definitivamente a escravidão no Brasil.
1889
Proclamação da República.
1890
Acordo com a Inglaterra para proibição do tráfico negreiro e abolição da escravatura na Tunísia.
1894
A Inglaterra decreta em Gâmbia a emancipação gradual da escravidão. Os escravos tornavam-se libertos com a morte do senhor ou mediante pagamento.
1897
A escravidão é abolida em Madagascar.
Em Zanzibar, o status legal da escravidão é abolido, mas a proibição da prática só ocorre em 1909.
1901
A Inglaterra torna a escravidão ilegal no sul da Nigéria, mas a abolição no norte do país só ocorre em 1936.
1906
A escravidão é proibida na China.
1928
As leis que aboliam a escravidão nas colônias britânicas não eram aplicáveis ao protetorado de Serra Leoa, onde a escravidão só foi considerada ilegal a partir desta data.
1942
A Etiópia manteve a escravidão até esta data, indiferente às pressões abolicionistas internacionais. Só se tornou independente na década de 1930.
1956
Com a retomada de sua soberania, a escravidão no Marrocos foi desaparecendo do reino sem uma legislação específica, e a instituição se extinguiu.
1962
A Arábia Saudita abole o status legal da escravidão.
1980
Na Mauritânia, a lei de 1980 foi a última das quatro tentativas legais de abolir a escravidão no país. Atualmente, ainda há indícios desta instituição no país.
1990
A escravidão foi abolida no Sudão na década de 1950, mas a prática foi retomada nos anos 90 com a guerra civil.
 
Fonte: 
Revistade historia
Saiba mais Link: 
Especial- Abolição da Escravatura 13-05-1888   

sábado, 6 de julho de 2013

Revolta de longa data

Separadas por mais de dois séculos, as manifestações que tomam as ruas do Brasil, hoje, têm semelhança com as que ocorreram durante o Antigo Regime.
     Para historiadores e cientistas sociais, os eventos que vêm ocorrendo no Brasil nos últimos dias funcionam como uma espécie de laboratório no qual várias teorias são testadas para explicar os acontecimentos. Aos historiadores esse é um desafio ainda maior, já que por estarem mais habituados a refletir sobre o tempo longínquo, a “História do Tempo Presente” se torna mais difícil. É mais fugidia, como há muito advertiu Fernand Braudel. Nem por isso deve se furtar da tarefa de fazê-la.
     Aos que conhecem um pouco mais de perto a história dos protestos populares, os acontecimentos recentes podem parecer surpreendentes por sua semelhança com o que se passou há dois ou três séculos no continente europeu e também nas colônias na América. Vários pontos em comum poderiam ser apontados, três se apresentam de maneira muito explícita: o aumento de preços de serviços, o discurso repressor das autoridades e a veiculação de boatos de diferentes tipos.
     No momento, já se tornou evidente que as manifestações não eram apenas pelo aumento de 20 centavos na passagem de ônibus em algumas capitais. Porém, quando se argumentou que os manifestantes protestavam por um valor que parecia irrisório, isso não era só uma maneira de desmerecê-los, mas também era uma forma de reduzir as reivindicações das pessoas na rua a apenas uma única causa. Essa era uma impressão muito parecida com a que se tinha dos protestos dos séculos XVII e XVIII. Neste período, dizia-se que bastava apenas uma má colheita provocar uma alta repentina dos preços para que as pessoas ganhassem as ruas e protestassem contra o aumento do preço dos alimentos, como as que aconteceram na França e Inglaterra nas primeiras décadas do século XVIII.
     Como os acontecimentos recentes revelaram, o aumento do preço das passagens serviu apenas como um estopim. No Antigo Regime não era muito diferente: quando estourava um protesto, além dos moradores das Vilas se rebelarem contra medidas que causassem o aumento dos custos de vida, eles aproveitavam-se ainda para mostrar toda a sua insatisfação com relação à arbitrariedade de autoridades; ganância de comerciantes; falta de cuidado na administração dos bens da comunidade, entre várias outras queixas. Tanto em uma, quanto em outra época, a questão fiscal desempenhava o papel de catalisar os mais diversos tipos de tensões que estavam latentes na sociedade.
     Outra semelhança está no discurso dos governantes. Quando se iniciaram as primeiras manifestações recentes, os discursos dos políticos foram taxativos em classificar os manifestantes como “vândalos”, sempre com respaldo da grande imprensa. Não era muito diferente dos protestos da América portuguesa, por exemplo, em que as autoridades classificavam os rebeldes de bárbaros, principalmente quando havia o envolvimento de negros e índios. Ou seja, parece o mesmo discurso. Seria uma mera coincidência? Afinal, o que aqueles que representavam o poder constituído pretendiam – no passado – conseguir com isso? Classificar as populações de bárbaros ou vândalos não era apenas recurso de retórica. Isso servia para endossar uma repressão violenta seja aos rebeldes do século XVIII, seja aos manifestantes do século XXI.
     No mês passado, a opinião dos governantes só começou a mudar quando jornalistas dos grandes meios de comunicação foram alvos da repressão policial. A maneira como a mídia cobria os eventos – inicialmente condenando, mas depois apoiando os de ordem “pacífica” – foi decisiva para essa mudança de percepção. Àqueles que acompanharam os protestos pela internet ou pela televisão facilmente se deram conta das dificuldades para se obter informação segura. Haviam muitas notícias desencontradas, algumas delas veiculadas e rapidamente corrigidas, outras falsas intencionalmente disseminadas com o objetivo de criar um clima de pânico na população.
     No Antigo Regime, um dos acontecimentos que talvez melhor exemplifique esse ambiente, certamente tenha sido na Revolução Francesa, durante os meses de julho e agosto, de 1789, momento que ficou conhecido de “O Grande Medo”, sobre o qual Lucien Febvre escreveu uma obra clássica. Na França, os camponeses receosos que a extinção dos direitos feudais pudesse resultar numa exploração ainda maior dos seus trabalhos, saquearam propriedades, castelos e igrejas, espalhando o pânico entre a população. Nesse período as comunicações eram difíceis e a escassez de informações facilitava a disseminação de boatos. Tanto no Antigo Regime quanto nos dias atuais percebemos uma grande proliferação de rumores. A diferença é que antes eles surgiam em razão da escassez de informações, ao passo que agora são ocasionados pelo excesso.
     Apesar dessas características comuns não se pode dizer que o movimento que ainda ganha as ruas do Brasil não seja um fato novo. Ao historiador que se arrisca a escrever a História “no calor do acontecimento” é preciso muita cautela. Os protestos populares guardam a característica de serem imediatos, suas demandas precisam ser atendidas rapidamente, sob o risco de se perder o controle da situação e, nesse aspecto, é possível considerar que os protestos que aconteceram até então foram bem sucedidos, pelo menos em seus objetivos iniciais. As passagens não foram apenas reduzidas como desencadeou um verdadeiro processo de redução das tarifas nas principais capitais do país. É certo que as reivindicações não se reduziam somente a isso e demandas importantes da sociedade brasileira ainda precisam ser alcançadas. Os desdobramentos dos protestos ainda não são conhecidos e somente as rupturas que forem feitas irão dizer se se esta diante de um protesto incomum.

Gefferson Ramos Rodrigues é mestre em História pela UFF.

Saiba Mais – Links

terça-feira, 2 de julho de 2013

Piada Sem Graça

Conteúdos preconceituosos são transmitidos para milhões de telespectadores por comediantes da TV, que alegam suposta "neutralidade" nos programas humorísticos.
     "Toda mulher que eu vejo na rua reclamando que foi estuprada é feia pra caralho. Tá reclamando do quê? Deveria dar graças a Deus. Isso pra você não foi um crime, e sim uma oportunidade. Homem que fez isso [estupro] não merece cadeia, merece um abraço".
     Essa e tantas outras piadas do comediante Rafinha Bastos, ex-integrante do programa CQC, da Rede Bandeirantes, renderam-lhe uma série de críticas e denúncias, principalmente por parte de grupos feministas, como a Marcha das Vadias em São Paulo, que, no ano passado, pendurou cartazes com dizeres como "machismo não leva a nada, estupro não é piada" em frente a um teatro na rua Augusta, onde o ex-apresentador fazia seu show de stand-up comedy.
     Há algum tempo atrás, seu ex-colega de CQC, que hoje apresenta o programa Agora É Tarde, na mesma emissora, também chegou a ser denunciado por ter feito a já antiga analogia racista entre negros e macacos, quando disse em tom humorístico: "King Kong, um macaco que, depois que vai para a cidade e fica famoso, pega uma loira. Quem ele acha que é? Jogador de futebol?".
     "É preciso saber de que lado você está da piada", diz o ator e palhaço Hugo Possolo, no documentário O Riso dos Outros, dirigido por Pedro Arantes. A reflexão é bem colocada em um momento em que, comediantes e emissoras da TV brasileira, referenciam-se na linguagem do humor, para, muita vezes, fugir dos debates de conteúdos conservadores contidos em seus discursos humorísticos.
     A defesa, muitas vezes, é de que, no humor, tudo não passa de uma brincadeira. De que ele não pode ser confundido com "opinião". E qualquer posicionamento contra o mesmo, seria uma tentativa de patrulhamento ideológico do "politicamente correto". Isso vem levantando algumas reflexões em torno do género. Se ele deve ter limites, responsabilidades, e se, o que vem sendo produzido, trata-se realmente de humor, já que, muitas vezes, este foi definido como uma linguagem questionadora do poder, que deve subverter e transformar realidades.

"Humor De Insulto"
     O comediante e ator Bemvindo Sequeira define esse tipo de humor como "humor de Insulto",e também analisa que se trata de uma espécie de sensacionalismo do género, assim como o existente no jornalismo, com relação à violência e à intolerância. "O máximo que o 'humor de insulto' consegue fazer é ofender pessoas. Mas não questionam nem o sistema, nem as instituições", comenta.
     Na sua concepção, a piada para ser válida precisa ter graça e a ofensa não é engraçada. Isso seria um limite da linguagem. Para explicar isso, faz uma diferença entre a "graça" e a "desgraça". Para ele, a graça se dá em momentos de "elevação humana" e a "desgraça" "em situações infernais, destruindo o ego das pessoas".
     O que se produz, por uma parte da nova geração de humoristas do Stand-up Comedy, carrega, na opinião de Bemvindo, características do humor estadunidense, marcado por uma violência doentia própria de sua sociedade.
     O stand-up, que não é novo no Brasil, foi introduzido em 1949, pelo humorista José Vasconcellos, que foi adaptando o género de acordo com as características do humor latino, criando caricaturas tipicamente brasileiras. "Em toda a sua carreira, fez humor sem ofender ninguém", conta o ator, que faz uma ressalva de que nem todos os humoristas atuais do Stand-up Comedy se enquadram no que considera "humor de insulto".
     O cartunista e jornalista Gilberto Maringoni comenta que um outro limite do humor é aquele que esbarra no poder económico, no poder de quem paga a piada. "Isso ficou claro quando Rafinha Bastos fez a piada com a Wanessa Camargo. Ele não foi processado por ser machista, mas por ter mexido com quem anuncia no CQC, por quem coloca limites", diz. E complementa: "O CQC, sempre faz piadas com políticos no Congresso Nacional, alguns merecem. Mas nunca vi fazer piada sobre os péssimos serviços de telefonia ou sobre as filas nos bancos. Porque não vai atacar o grande empresariado que é anunciante do programa dele".

Deboche
     Os temas relacionados aos negros, mulheres, homossexuais, deficientes, entre outros, sempre foram os preferenciais do humor. Para Bemvindo, isso é natural, pois o humor trabalha com exceções, e não com a regra. "Se você não fala dos anões, eles deixam de existir, se você não fala de gay, eles vão para o gueto. E é possível fazer isso sem a destruição do ego, sem transformá-los em anti-humano e antissocial. O humor pode destruir, mas pode abraçar as pessoas", comenta.
     O tratamento dado pelo humor brasileiro a esses grupos, muitas vezes, não os aproxima de sua humanidade. Na TV, por exemplo, o deboche em cima de estereótipos se dá, em grande parte, reforçando preconceitos.
     Uma das personagens mais recentes neste sentido, e que causou também polémica, é a Adelaide, interpretada pelo ator Rodrigo Sanfanna, no programa humorístico Zorra Total, exibido aos sábados pela Rede Globo.
     Adelaide entra em cena como mendiga para pedir esmola dentro do metro. Para representá-la, o ator pinta a cara de preto, coloca dentes estragados e separados e exibe um nariz exageradamente alargado. Adelaide concentra em sua figura características historicamente utilizadas pelo humor para se referir aos negros como forma de inferiorização: é desdentada, pobre, inculta e feia.
     Em um dos episódios veiculados em 2012, Adelaide comentou, por exemplo, que, durante uma enchente, quando foi resgatar sua palha de aço viu que, na verdade, eram os cabelos da sua filha, repetindo a piada de que cabelo crespo é um cabelo "ruim". Durante sua performance e diálogo com outros personagens, outros atributos relacionados aos negros são inferiorizados. Para a psicóloga Sandra Sposito, se as mulheres negras aparecem nas novelas sempre como subalternas ou erotizadas, no humor, assumem sempre o papel do grotesco. Suas características físicas são sempre ridicularizadas, e o seu lugar na sociedade, naturalizado.
     Para o humorista Bemvindo Sequeira, a apresentação de Adelaide não chega a ser racista, mas, para ele, deprecia as mulheres negras. Além de achar um cliché velho, que passa uma imagem de humor da década de 1950.
     Diversas entidades denunciaram o quadro à Ouvidoria Nacional da Igualdade Racial. Não foi a primeira vez que o conteúdo do Zorra Total foi questionado. Em 2011, o Sindicato dos Metroviários de São Paulo formalizou um pedido à rede Globo, para que a mesma retirasse do ar o quadro "Metro Zorra Total", por naturalizar a violência sexual contra as mulheres.
     Durante o quadro, a personagem de Thalita Carauta, Janete Balbuína, era sempre bolinada por algum homem no vagão do metro. Em um dos episódios, ao comentar para a sua amiga, a transexual Valéria Vasques, que um homem passava a mão em suas partes íntimas, esta respondia para Janete não reclamar, pois ela tinha que aproveitar por "ser feia demais". Em diversas vezes, as duas personagens riam da situação que, na realidade, é trágica para muitas mulheres. Para as que já passaram por essa humilhação, esse discurso humorístico não é engraçado.
     Assim como a piada de Rafinha Bastos, a cena humorística naturaliza a cultura do estupro da sociedade,
pois não se propõe a problematizá-lo. Se muitos acreditam que não é papel do humor denunciar problemas sociais, poderiam, pelo menos, deixar de construir discursos cómicos que tornam natural e risível uma violência que atinge milhares de mulheres brasileiras.
     Esses questionamentos são vistos, muitas vezes, como um exagero. Tanto os atores do Zorra Total, como Rafinha Bastos, deram declarações de que somente se tratava de "humor" e que, claro, não são a favor do estupro.
     As emissoras de televisão costumam ter a mesma postura. Frente ao episódio, a Globo respondeu: "O Zorra Total é um programa humorístico cujos quadros trazem situações fictícias dissociadas da realidade. O quadro em questão não incita qualquer comportamento, muito menos a violência contra a mulher. Seu objetivo é entreter o telespectador, no que, acreditamos, é bem-sucedido".

É Só Uma Piada
     A desculpa da suposta neutralidade e descompromisso do humor é recorrente. Danilo e Rafinha também em diversas ocasiões deram declarações de que não se pode confundir "piada" com "opinião
pessoal". E que o objetivo do humor é somente fazer as pessoas rirem.
     Sobre essa questão, o escritor Antonio Prata em Riso dos Outros, faz algumas observações: "O humor é sempre conteúdo disfarçado, então ele pode dizer que é só uma brincadeira. [Mas] As piadas não têm fundo de verdade, elas são a verdade com um nariz de palhaço". E completa: "Quando você faz uma piada, você joga ela no mercado de ideias, está ajudando a criar a massa de cultura." Por ser um discurso, o humor também é ideológico, expressa opiniões e visões sobre o mundo.
     Para Bemvindo, os comediantes, além de terem a função de divertir o público e de serem, "antes de mais nada, um pronto-socorro dos trabalhadores cansados", seu papel é realizar a critica política, da sociedade, de seus costumes, etc. "O humor trabalha com a negação. Tudo o que é proibido e rígido, deve ser desmontado e amaciado por ele", comenta.
     Através da citação de alguns momentos históricos, Bemvindo explica a relação do humor com a ideologia política. Conta que foi durante a Revolução Francesa, por exemplo, que os palhaços conquistaram o direito à palavra no circo. Antes, seus processos cómicos estavam ligados somente à mímica e pantomima, explica.
     "Ao se engajarem na Revolução, precisavam fazer discursos políticos no picadeiro e, com isso, conquistaram a fala em cena", diz, relembrando também a importância do humor produzido durante a ditadura militar, feito por humoristas como Millôr Fernandes, Henfd, Ziraldo, entre diversos outros, como forma de combate e resistência ao regime.
     O cartunista e jornalista Gilberto Maringoni ressalta que, mesmo que o humor seja sempre crítico, não é necessariamente libertário. "Ele, muitas vezes, compactua com o que que há de pior na sociedade, com preconceitos arraigados. Se a sociedade é preconceituosa, o que domina, tanto no humor televisivo, radiofónico, impresso, e mesmo no humor nas ruas, é a repetição de preconceitos", diz o cartunista.
A cumplicidade do público com o discurso humorístico é também um limite do humor. A "graça" da piada também ocorre quando há um compartilhamento de opiniões, ideias entre o telespectador e o humorista.
     Para Maringoni, o humor é também reversão de expectativas. E se utilizar de elementos da realidade
dada, criando uma outra percepção sobre ela que, de tão repentina, torna-se engraçada.
     No mesmo documentário, Antonio Prata comenta que, quando se faz uma piada racista, por exemplo, não se está fazendo nada de inovador. Ri-se que o mundo é desigual. A construção do discurso cómico que desconstrói a realidade dada, seria mais difícil. "Quando você ofende alguém que não pode ser ofendido pelo poder dessa pessoa (aquele que faz a piada), esse humor é grande. Se você passa a mão na bunda do guarda, isso é engraçado, porque você está se arriscando. Ele tem uma arma e um cassetete na não", comenta o escritor, que depois questiona qual seria a graça de passar a mão na bunda do mendigo?

Politicamente (In) Correto
     As diversas denúncias e o questionamento em torno do humor preconceituoso é tido, atualmente, como um patrulhamento ideológico e uma tentativa de censura. Sobre isso, Maringoni opina: "O 'politicamente correto', que alguns denominam como uma tentativa de camisa de força é um dos nomes que se dá à reação social ao preconceito, inclusive a contida no humor. Nada tem a ver com o cerceamento da liberdade de expressão. O que não pode haver é a liberdade do exercício da bossalidade. A justiça não tem nada a ver com liberdade de expressão. Se eu sou agredido em qualquer situação, o canal democrático que eu tenho é entrar na justiça e processar o sujeito. Faz parte do regime democrático", opina o cartunista.
     Em entrevista ao Blog do Sakamoto, o diretor Pedro Arantes, dá um depoimento interessante sobre essa questão: "Com a organização desses grupos (de mulheres, negros, homossexuais, etc) e a conquista gradual de direitos, é cada vez menos aceitável que se faça piadas desse tipo, ridicularizando um negro por ser negro, uma mulher por ser mulher, um homossexual por ser homossexual. E menos aceitável não porque o mundo está mais chato ou careta, mas porque esses grupos historicamente ridicularizados, ao se organizarem, conquistaram direitos e voz para reagir. A partir do momento que esse humor passa a ser menos aceitável, existe uma reação daqueles que querem continuar fazendo essas velhas piadas. Essa reação, que se diz libertária, a medida em que combate a 'ditadura do politicamente correto', de fato está reagindo contra a perda de uma liberdade: a liberdade de um grupo historicamente dominante de oprimir, pela via do humor, os outros grupos sociais. A liberdade de alguns em limitar a liberdade e o direito dos outros. Uma liberdade que, no fim das contas, não passa de privilégio."
     Para a psicóloga Sandra Sposito, não deve haver um dispositivo legal que proíba as piadas de circularem. No entanto, a manifestação de grupos sociais deve ser legítima e encarada como natural, principalmente pelas grandes emissoras da TV brasileira que, por atuarem através de concessões públicas, deveriam abrir canais de discussão sobre produção de conteúdo.
     Para o jornalista e professor de comunicação social da PUC-SP, Silvio Mieli, além de grande parte do humor estar tomado por um neoconservadorismo, falta debate em torno de sua linguagem, que compromete sua inovação. "O fluxo de debate sobre a produção humorística foi enterrada pela indústria cultural", tanto na academia como dentro das produtoras, emissoras, opina o professor. "Você não encontra produções críticas sobre o humor que é feito no Brasil. Nós estamos infantilizados culturalmente, daí, as características desses programas de trabalharem nesse registro baixo", conclui.

Documentário “O Riso dos Outros” de Pedro Arantes.