“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

sábado, 31 de agosto de 2013

Ferramenta educacional

Unicamp lança site com material de apoio para professores e alunos. Mapas, exercícios, imagens e vídeo-aulas aprofundam discussões em classe, incluindo História do Brasil e da África.
Desde maio, alunos e professores têm um novo portal para encontrar material de apoio à classe convencional. O e-Unicamp, recém-inaugurado pela instituição de ensino superior, reúne vídeo-aulas conduzidas por membros do corpo docente da universidade, além de ilustrações, animações e exercícios, separados por áreas de conhecimento, já disponíveis para download. O acesso ao conteúdo pode ser feito gratuitamente e também não há necessidade de se inscrever.
As grandes áreas foram divididas em Ciências Exatas e da Terra, Humanas, Artes e Biológicas e Profissionais da Saúde. Uma organização que permite a disponibilização de material tanto para o currículo de Ensino Fundamental e Médio, quanto para cursos técnicos ou graduação.
No que diz respeito à seção de História, por exemplo, há um mosaico de mapas do Brasil e do mundo, imagens e esquemas didáticos que podem ser utilizados para complementar aulas expositivas. Além disso, pode-se assistir a conferências de professores do Departamento de História que explicam brevemente - e em uma linguagem simples - suas pesquisas acadêmicas ou mesmo discussão historiográfica em pauta nas aulas de graduação, como Escola dos Annales, Micro História e História Social. A seleção de vídeos não foge de temas tradicionais do currículo básico como escravidão, História da África, História Medieval e Brasil Colônia.
     O site foi desenvolvido pelo Grupo Gestor de Tecnologias Educacionais (GGTE), em conjunto com as pró-reitorias de Graduação e de Pós-Graduação; e se propõe a incentivar o relacionamento entre docentes, alunos e a comunidade em geral.  Paralelamente, o usuário pode empregar o ToolDo, um software livre que permite desenvolver conteúdo multimídia, organizado em aulas, tópicos e páginas. Suas funcionalidades são acessadas por meio da internet, sem a necessidade de instalar software específico. O software administra as etapas de editoração antes mesmo da publicação.

sábado, 24 de agosto de 2013

Não esquecer, para nunca mais acontecer

É lançado na internet o projeto 'Brasil: Nunca Mais', que disponibiliza mais de 900 mil páginas de documentos produzidos durante a ditadura civil-militar

Minha jangada vai sair pro mar
Vou trabalhar, meu bem querer
Se Deus quiser quando eu voltar do mar
Um peixe bom eu vou trazer
Meus companheiros também vão voltar
E a Deus do céu vamos agradecer
Dorival Cayimmi, “Suíte do Pescador”
    
     Os versos acima costumavam ser cantarolados por presos políticos da ditadura militar na tentativa de animar aqueles que eram chamados da cela para a sala de tortura. Isso foi o que contou Eliana Rolemberg - presa pela Operação Bandeirantes (Oban) em 28 de fevereiro de 1970 -, durante o Ato Público de Repatriação dos documentos do projeto Brasil: Nunca Mais, ocorrido em 2011. A iniciativa, que teve o objetivo de documentar o que ocorria nas prisões políticas do regime, gerou mais de 900 mil páginas de documentos que estarão disponíveis online, para consultas e pesquisas, a partir desta quarta-feira, 9 de agosto.
     Em 1979, um grupo de religiosos do Conselho Mundial de Igrejas (CMI) e uma equipe do escritório de advocacia de Sobral Pinto deram início ao ambicioso projeto de obter, junto ao Superior Tribunal Militar (STM), em Brasília, informações e evidências de violações de direitos humanos praticadas por agentes do aparato repressivo do Estado durante a ditadura militar, a fim de compilar essa documentação em uma espécie de livro-denúncia.
     Inseridos no contexto de uma delicada conjuntura nacional – um momento em que a ditadura ainda estava em curso –, surgiu a preocupação com a apreensão do material pela repressão. A alternativa encontrada foi microfilmar tudo e enviar a documentação para o exterior. A reprodução dos 707 processos judiciais consultados totalizou cerca de 1 milhão de cópias em papel e 543 rolos de microfilmes que, em 2011, foram oficialmente devolvidos pelo Center for Research Libraries, de Chicago, e que, logo mais, estarão à disposição de toda a sociedade no site Brasil: Nunca Mais Digital.
     A digitalização tem como mote a preservação de um valioso acervo que integra o patrimônio histórico e cultural brasileiro. A manutenção, no Brasil, de todo o material relativo ao Brasil: Nunca Mais é, também, parte fundamental do processo de afirmação do direito à verdade, à informação e à memória. Nas palavras da advogada Eny Raimundo Moreira, responsável pelo pontapé inicial no projeto, “a luta contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento”.

domingo, 18 de agosto de 2013

Os anos rebeldes do tenentismo

O movimento que agitou a cena política brasileira na década de 1920, defendendo transformações profundas no país, desembocou num programa político autoritário e elitista.
Marieta de Moraes Ferreira
     Década de 1920. Novos ventos sopravam no Brasil. O ano de 1922, em especial, foi cenário de uma sucessão de acontecimentos que mudaram de forma significativa o panorama político e cultural do país. A crise do pacto oligárquico era evidente diante da demanda por maior participação política dos setores urbanos, da insatisfação dos militares e do descontentamento crescente de diversos grupos dominantes.  Foi o ano de uma disputada sucessão presidencial, que explicitou divergências sérias entre as oligarquias.  Foi também o ano da criação do Partido Comunista do Brasil, e do início do movimento tenentista, além da Semana de Arte Moderna e das comemorações do centenário da Independência.
     Até então, a política dos governadores, ou política do “café com leite” – acordo entre o presidente da República e governadores estaduais que assegurava o domínio político das oligarquias de Minas e São Paulo – havia neutralizado as oposições, garantindo que as forças da situação fossem sempre vitoriosas. As eleições presidenciais não eram muito disputadas, com exceção das sucessões de 1910 e de 1919, quando Rui Barbosa, candidato de oposição, foi derrotado, respectivamente, pelo marechal Hermes da Fonseca e por Epitácio Pessoa. Em 1922 foi diferente. Pela primeira vez, o confronto entre os estados de primeira e segunda grandeza se apresentou claramente numa disputa pela presidência da República, revelando o acirramento dos problemas do federalismo desigual brasileiro. O confronto assumiu sua forma plena com o movimento da Reação Republicana, que lançou a candidatura do fluminense Nilo Peçanha em oposição à candidatura oficial do mineiro Artur Bernardes. Enquanto Bernardes contava com o apoio de Minas Gerais, São Paulo e de vários pequenos estados, em torno da Reação Republicana uniram-se Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Bahia, Pernambuco e Distrito Federal, que tentavam estabelecer um eixo alternativo de poder.
     A plataforma da Reação Republicana defendia a regeneração dos princípios republicanos e a formação de partidos políticos nacionais. Ela criticava a forma como se desenvolvia o federalismo no Brasil, acusando-o de beneficiar apenas os grandes estados. Para enfrentar a ameaça permanente de derrota que rondava toda candidatura de oposição, a Reação Republicana desencadeou uma propaganda eleitoral, coisa pouco comum nas eleições da Primeira República. E, o que é importante, buscou apoio militar.
     Apesar do clima de intensa agitação que marcou os primeiros meses de campanha política, as eleições se realizaram na data prevista: no dia 1º de março de 1922. Os resultados eleitorais, controlados pela máquina oficial, deram a vitória a Artur Bernardes, com 466 mil votos, contra 317 mil de Nilo Peçanha. Mais uma vez, o esquema eleitoral vigente na República funcionou para garantir a vitória do candidato da situação, embora o número de votos conseguido pela oposição materializasse a gravidade da disputa em curso.
     Diferentemente das eleições anteriores, a oposição não aceitou a derrota. A Reação Republicana desencadeou uma campanha para manter a mobilização de seus aliados e alimentar a insatisfação militar. A falta de prestígio e poder que os militares enfrentavam – praticamente desde a montagem do pacto oligárquico – era responsável por essa insatisfação. A força que tiveram na primeira década republicana, de 1889 a 1899, havia decrescido consideravelmente. O fechamento da Escola Militar da Praia Vermelha, em 1904, e a posterior criação da Escola Militar do Realengo alteraram profundamente a formação da oficialidade do Exército. O propósito da nova escola era formar soldados profissionais, afastados das questões políticas e dedicados ao fortalecimento da instituição militar.
     Uma série de incidentes ocorridos no início dos anos 20 iria recolocar na ordem do dia a participação dos militares na política. O episódio das chamadas “cartas falsas” foi um deles. Em outubro de 1921, o jornal carioca Correio da Manhã publicou duas cartas que atribuíam a Bernardes críticas ao Exército e ao presidente do Clube Militar, o ex-presidente da República Hermes da Fonseca, criando uma indisposição completa entre o candidato da situação e segmentos militares. Ainda que Bernardes tenha vencido a eleição, estava preparado o caminho para a eclosão da primeira revolta de “tenentes”, em julho de 1922.   O incidente permitiu que dois movimentos de origens distintas – a rebeldia militar e a Reação Republicana – se articulassem para contestar as estruturas políticas da Primeira República.
     O “tenentismo” foi um conjunto de movimentos militares que se desenvolveu ao longo da década de 1920, prosseguindo até meados dos anos 30. Liderados pela jovem oficialidade das forças armadas, os chamados tenentes tinham como principais bandeiras o fortalecimento da instituição militar, a moralização dos costumes políticos e a construção de um Estado centralizado que pudesse modernizar o país. A primeira revolta tenentista, conhecida como o levante do Forte de Copacabana, foi derrotada, bem como as iniciativas de contestação eleitoral da Reação Republicana.
     O movimento não obteve a adesão de segmentos militares expressivos, e as oligarquias dissidentes, que tanto haviam contribuído para acirrar os ânimos militares, não se dispuseram a um engajamento mais efetivo. Epitácio pediu imediatamente a decretação do estado de sítio no Rio e no Distrito Federal, e grande número de deputados dissidentes votaram a favor da medida, demonstrando um recuo das oligarquias e a desarticulação completa da Reação Republicana. Em novembro de 1922, Bernardes tomou posse como presidente da República sob estado de sítio, desencadeando forte repressão contra todos aqueles que se haviam oposto à sua candidatura.
     Os levantes tenentistas continuaram por algum tempo. Em julho de 1924, eclodiu uma segunda revolta em São Paulo. Os rebeldes ocuparam a capital por três semanas, e só depois de muita resistência a abandonaram, deslocando-se para o interior. Em abril de 1925, esse mesmo grupo uniu-se a outro contingente revolucionário, que havia sublevado unidades no Rio Grande do Sul. Essa união foi a origem da Coluna Miguel Costa-Prestes, que percorreu a pé 13 estados e cerca de 30 mil quilômetros, com o objetivo de levar uma mensagem revolucionária a todo o país. Expressão mais radical dos movimentos militares da década de 1920, a chamada Coluna Prestes foi combatida por diferentes adversários arregimentados pelo governo federal, conseguindo vencer grande parte dos combates. Finalmente, em 1927, contando com poucos remanescentes, refugiou-se na Bolívia e depôs as armas.
     A crítica ao governo e a divulgação de propostas políticas integravam o rol de objetivos da Coluna. A peregrinação dos tenentes pelo território brasileiro tinha o propósito de divulgar o ideário que pregava: voto secreto; liberdade de imprensa; equilíbrio na divisão real de poder entre executivo, legislativo e judiciário; combate à fraude eleitoral e à corrupção. Este programa, embora não tenha provocado uma mobilização social relevante, conquistou a simpatia de parte da população urbana.
     Três diferentes correntes tentam explicar o movimento tenentista. A primeira, mais tradicional e amplamente difundida, explica o tenentismo como um movimento que,  a partir de suas origens sociais nas camadas médias urbanas, representaria os anseios destes setores por uma maior participação na vida nacional e nas instituições políticas. A segunda corrente, formulada a partir de trabalhos produzidos nos anos 60 e 70, tenta contestar a absolutização da origem social na definição do conteúdo do tenentismo, privilegiando aspectos organizacionais do movimento, ou seja, entende este movimento como produto da instituição militar. A terceira corrente defende uma análise mais global, levando em conta tanto a situação institucional dos tenentes como membros do aparelho militar, quanto a sua composição social como membros das camadas médias.
     Em 1929, iniciou-se novo processo de sucessão presidencial. Tudo indicava que as regras que norteavam o funcionamento da política até então seriam mais uma vez cumpridas: as forças da situação, por meio do presidente da República, indicariam um candidato oficial, que deveria ser apoiado por todos os grupos dominantes nos estados. Dessa vez, contudo, houve uma cisão no cerne do próprio grupo dominante. Washington Luís, resolvido a fazer seu sucessor, indicou como candidato oficial Júlio Prestes, paulista como ele e então presidente do estado. Com isso, rompia-se o acordo tácito com Minas, que esperava ocupar a presidência da República.
     Essa divergência entre Minas e São Paulo abriu espaço para que outras disputas e pretensões, sufocadas no passado, pudessem ressurgir. Nesse contexto, em julho de 1929, com o apoio mineiro, foi lançada a candidatura de Getúlio Vargas, o presidente do estado do Rio Grande do Sul, tendo como vice o presidente da Paraíba, João Pessoa. Estava formada a Aliança Liberal, uma coligação de forças políticas e partidárias pró-Vargas. Sua plataforma estava voltada para conquistar a simpatia das classes médias e de setores operários, e seu programa propunha reformas políticas (voto secreto, justiça eleitoral e anistia aos presos políticos) e medidas de proteção ao trabalho (aplicação de lei de férias, regulamentação do trabalho do menor e da mulher).
     A acirrada disputa eleitoral foi agravada pela profunda crise econômica mundial provocada pela quebra, em outubro de 1929, da bolsa de Nova York. No final desse ano já havia centenas de fábricas falidas no Rio e em São Paulo, e mais de um milhão de desempregados em todo o país. A crise atingiu também as atividades agrícolas, especialmente a cafeicultura paulista, produzindo uma violenta queda dos preços do café e liquidando o programa de estabilização do governo que vinha sendo implementado. As eleições se realizaram em março de 1930, e a vitória coube a Júlio Prestes, que recebeu cerca de um milhão de votos, contra 737 mil dados a Getúlio Vargas. Mas já estava em marcha um movimento conspiratório para depor Washington Luís, pela força das armas, e liquidar o pacto oligárquico então vigente.
     Um acontecimento inesperado deu força à conspiração revolucionária. Em 26 de julho de 1930, o candidato a vice da Aliança Liberal, João Pessoa, foi assassinado em Recife. Embora as razões do crime tenham sido passionais e não políticas, ele foi transformado em mártir do movimento que se articulava. Nos meses seguintes, esse movimento cresceu, com a adesão de importantes quadros do Exército. A articulação entre os setores oligárquicos dissidentes e os tenentes avançou lentamente, principalmente porque a mais importante liderança tenentista – Luís Carlos Prestes – lançara no exílio, em maio de 1930, um manifesto no qual condenava o apoio às oligarquias.
     A posição de Prestes encontrou fortes resistências junto a outras lideranças tenentistas, como Juarez Távora, que acreditava que a articulação com Aliança Liberal era uma possibilidade que devia ser considerada pelos tenentes – o que de fato acabou se concretizando com o prosseguimento das atividades conspiratórias. Um grupo advindo do movimento tenentista liderado por Távora participou ativamente do movimento revolucionário. A conspiração estourou em Minas Gerais e no Rio Grande do Sul, no dia 3 de outubro de 1930. Em seguida, ela se alastrou para vários estados do Nordeste. Em todos esses locais, após algumas resistências, a situação pendeu para os revolucionários. Em 24 de outubro, o presidente Washington Luís foi deposto e os militares constituíram uma Junta Provisória de governo. Essa Junta tentou permanecer no poder, mas a pressão das forças revolucionárias vindas do Sul e das manifestações populares obrigaram-na a entregar o governo do país a Getúlio Vargas, empossado na presidência da República em 3 de novembro de 1930.
     A chegada de Vargas ao poder deu início a uma nova fase da história política brasileira. O significado da Revolução de 1930 tem sido objeto de interesse de inúmeros estudiosos, que têm produzido diferentes interpretações. Para uns, em 1930 teria ocorrido uma revolução liderada por setores urbano-industriais. Para outros, o movimento foi conduzido pelos interesses da classe média, através da ação dos tenentes. Há os que afirmam que o que ocorreu foi apenas um golpe militar para deter o avanço das camadas populares. E há os que enfatizam a ação dos grupos oligárquicos dissidentes. Mais recentemente, considera-se que o movimento não foi resultado da ação de nenhuma classe ou grupo social em particular, mas que combinou diferentes interesses de atores políticos insatisfeitos com a situação vigente.
     Essa última interpretação, que vê os vitoriosos de 1930 como um grupo heterogêneo tanto do ponto de vista socioeconômico, quanto do ponto de vista político, vem se consolidando. Mesmo entendendo que o movimento militar de 1930 não pode ser definido como uma revolução, no sentido de alterar profundamente as relações sociais existentes, admite-se que ele inaugurou uma nova fase na História do país, abrindo espaço para profundas transformações.
     O tempo transformou o ideário inicial do tenentismo, e  o  programa político do grupo que aderiu à Revolução de 1930  passou a se caracterizar principalmente pelo estatismo, autoritarismo e elitismo. A presença dos tenentes como interventores (substituindo os governadores) foi marcante  no cenário imediatamente posterior à Revolução. No entanto, as antigas oligarquias estaduais ofereceram resistências aos tenentes; e as várias tentativas de conciliação acabaram falhando. Assim, nas eleições de 1933 os tenentes perderam espaços na política nacional, mas é certo que não se pode falar sobre mudanças políticas ocorridas a partir da década de 1920 sem  se propor a entender este movimento e  o seu significado para a  história política brasileira.

Marieta de Moraes Ferreira é professora do departamento de História da UFRJ e pesquisadora do CPDOC/FGV.

sábado, 3 de agosto de 2013

Anarquismo no currículo

Espalhado por sindicatos e organizações de trabalhadores, movimento contestador abriu suas próprias escolas no Brasil, com pedagogia inovadora.
José Damiro Moraes
     Criadores de sindicatos, instigadores de greves, contestadores do capitalismo. A partir do final do século XIX, os anarquistas marcaram presença na cena pública nacional, liderando as primeiras mobilizações operárias do Brasil. E para disseminar sua ideologia revolucionária, lançaram mão de uma arma especial: a educação.
     Não poderia ser uma educação qualquer, é claro. Seus princípios contrariavam os valores burgueses e primavam pela solidariedade e pela radical liberdade do indivíduo na gestão de sua própria vida. É o que expressa a origem etimológica da palavra “anarquia” – do grego an (negação) e arquia (governo). “Aquele que botar as mãos sobre mim, para me governar, é um usurpador, um tirano. Eu o declaro meu inimigo”, resumiu o filósofo francês Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865), um dos fundadores do anarquismo.
     Os ideais do movimento político chegaram ao Brasil trazidos principalmente por imigrantes espanhóis e italianos. Organizando-se em sindicatos e federações, sua principal atuação se dava junto à nascente classe dos trabalhadores urbanos. Mas num país com 85% de analfabetos, era difícil fazer circular a propaganda anarquista nos meios populares e operários. Jornais e boletins tinham que ser lidos em voz alta para que os métodos de luta fossem apreendidos. Para ampliar a conscientização e a participação dos trabalhadores, era preciso criar espaços educativos próprios. Nas escolas anarquistas, os operários e suas proles teriam acesso ao conhecimento formal – devidamente temperado pela ideologia do movimento. Com o apoio financeiro de sindicatos e federações, elas se espalharam pelo país.
     Entre 1885 e 1925, cerca de quarenta instituições de ensino anarquistas surgiram no Brasil. A primeira de que se tem notícia foi a Escola União Operária, em Porto Alegre (RS). Em Fortaleza (CE) funcionou a Escola Germinal (1906); em Campinas (SP), a Escola Livre (1908); no Rio de Janeiro, a Escola Operária 1° de Maio, e em São Paulo, as Escolas Modernas nº 1 e nº 2 (todas de 1912), entre muitas outras. Em 1904, tentou-se até uma experiência de ensino “superior” (complementar à formação dos trabalhadores), com a criação da Universidade Popular de Ensino (Livre), no Rio. Ela contava com a colaboração de vários militantes e de literatos simpatizantes do movimento, como Elísio de Carvalho, Fábio Luz, Rocha Pombo, Martins Fontes, Felisberto Freire e José Veríssimo. Mas, ao contrário das escolas, durou poucos meses.
     Uma resolução do primeiro congresso da Confederação Operária Brasileira (COB), em 1906, determinava que toda associação operária deveria sustentar uma escola laica para os sócios e seus filhos. “Ninguém mais do que o próprio operário tem interesse em formar livremente a consciência dos seus filhos”, justificava o texto. O foco do ensino anarquista era a contestação do capitalismo e o fortalecimento da participação política do operariado. Tudo que, segundo eles, a educação formal impedia. A burguesia era acusada de monopolizar a instrução e o conhecimento científico por meio de “artificiosas concepções que enlouquecem os cérebros dos que frequentam as suas escolas”, de acordo com nova resolução, no congresso seguinte, em 1913. Argumentavam que “as castas aristocráticas e a Igreja” mantinham o “povo na mais absoluta ignorância, próxima à bestialidade, para melhor explorarem-no e governarem-no”. As escolas estatais e religiosas impediam “a emancipação sentimental, intelectual, econômica e social do proletariado e da humanidade”.
     Diante de um quadro educacional tão dramático, a pedagogia anarquista precisava realizar transformações profundas. O ensino científico e racional deveria atender às verdadeiras necessidades humanas e sociais: a razão natural, e não a razão artificial criada pela burguesia. No lugar da memorização que prevalecia nas escolas, propunha-se abrir espaço aos jogos e à iniciativa dos próprios alunos. Exames e concursos deveriam ser extintos, assim como qualquer tipo de prêmio ou castigo.
     Eram ideias inspiradas no método racionalista, criado pelo espanhol Francisco Ferrer y Guardia (1859-1909), fundador da Escola Moderna de Barcelona. Para Ferrer, a criança deve ser o centro do processo educacional e o professor tem a tarefa de problematizar a realidade, conjugando teoria e prática – esta identificada com o trabalho manual. Meninos e meninas devem estudar na mesma sala (proposta ousada para a época), assim como ricos e pobres. A educação não pode se eximir de sua responsabilidade política, conscientizando os alunos para os valores humanitários e antiestatais do anarquismo.
     Mais do que pôr em xeque a pedagogia tradicional, esses princípios soavam como uma afronta ao poder constituído. As teorias de Francisco Ferrer y Guardia despertaram a ira da Igreja e do governo espanhol. Ele foi preso, e de nada adiantaram os protestos pela sua libertação: acabou fuzilado em 1909.
     Os currículos das escolas anarquistas brasileiras estavam em sintonia com a proposta racionalista de Ferrer. Privilegiavam a leitura, a caligrafia, a gramática, a aritmética, a geografia, a geometria, a botânica, a geologia, a mineralogia, a física, a química, a história e o desenho. Também incluíam sessões artísticas e conferências científicas. Para além da sala de aula, os alunos participavam de eventos operários, principalmente em datas consideradas importantes pelos anarquistas, como 18 de março – data da Comuna de Paris, insurreição popular que em 1871 gerou o primeiro governo operário da história –, 1º de maio – em memória da execução dos “mártires de Chicago” (1886), operários que pediam a redução da jornada de trabalho para oito horas diárias – e 13 de outubro, data do fuzilamento de Ferrer. Assim a escola aproximava alunos, famílias e sindicatos, mantendo viva a memória e a necessidade das lutas proletárias. O esforço educativo desses grupos resultou também na fundação de bibliotecas, centros de estudos, centros de cultura e grande circulação de periódicos.
     Mas as greves gerais ocorridas em São Paulo e no Rio de Janeiro em 1917 e 1919, com marcante liderança anarquista, chamaram a atenção do Estado e da Igreja Católica para as ações do movimento. Os anarquistas passaram a ser vistos como ameaça e tornaram-se alvo de dura repressão: inúmeros militantes estrangeiros foram expulsos do país, suas escolas foram fechadas e os professores foram acusados de difundir a revolução social. Educadores vinculados àquelas escolas foram colocados em listas negras de industriários da época, e não conseguiram se empregar novamente. A classe dominante e os governantes criaram e divulgaram a tese segundo a qual o anarquismo era uma “planta exótica” – vinda da Europa, não teria clima favorável para se desenvolver por aqui. A estratégia era evidente: negar a luta de classes e ressaltar a suposta cordialidade e o apego à ordem do povo brasileiro.
     O terceiro congresso do COB, em 1920, realizou-se sob esse clima de tensão. Mas, mesmo em um contexto complicado para o movimento operário brasileiro, a educação anarquista continuava em pauta. “O III Congresso Operário, tratando das escolas proletárias e tomando conhecimento da inominável violência do governo paulista que encerrou arbitrariamente as Escolas Modernas, quando esse mesmo governo tolera e até mesmo protege as escolas reacionárias, associa-se ao movimento de protesto do operariado contra essa opressão”, dizia a moção redigida por Edgard Leuenroth (1881-1968), um dos principais militantes anarquistas da República Velha.
     A partir dali, a repressão só iria recrudescer. Expulsões, deportações e prisões no campo de concentração de Clevelândia, no município do Oiapoque (RS), durante o governo de Artur Bernardes (1922-1926), minaram a força do anarquismo. Mais à frente, com o Estado Novo e a implantação do sindicalismo oficial vinculado ao governo, a atuação do movimento acabou restrita a atividades culturais e educativas – como as da Universidade Popular Presidente Roosevelt, criada em 1945 por intelectuais não necessariamente anarquistas, que oferecia cursos gratuitos em várias áreas, como Psicologia, Sociologia, Política e Economia.
     Mesmo ocultada das teorias pedagógicas e da história da educação, a influência das propostas libertárias anarquistas foi marcante no século XX. Muitos de seus princípios foram absorvidos pelas principais correntes pedagógicas e reformas educacionais, como as propostas de Celestin Freinet (1896-1966), a Escola Nova de John Dewey (1859-1952), a pedagogia de Paulo Freire (1921-1997) e, atualmente, o movimento das Escolas Democráticas.
     E não deixaram de provocar inquietação. Até que ponto, nestes tempos individualistas e competitivos, é possível praticar um ensino baseado na solidariedade e na liberdade?

José Damiro de Moraes é professor na Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri e autor, com Silvio Gallo, de “Anarquismo e Educação – A educação libertária na Primeira República”. In: História e Memórias da Educação no Brasil, vol. III (org. Maria Sephanou e Maria Helena Câmara Bastos, Vozes, 2005).

Saiba Mais - Bibliografia:
CODELLO, Francesco. A Boa Educação: experiências libertárias e teorias anarquistas na Europa, de Godwin A. Neill. São Paulo: Imaginário/Ícone, 2007.
DEMINICIS, Rafael Borges; AARÃO REIS FILHO, Daniel (org.). História do Anarquismo no Brasil, vol. 1. Niterói/ Rio de Janeiro: EdUFF/MAUAD, 2006.
GALLO, Silvio. Pedagogia Libertária: anarquistas, anarquismos e educação. São Paulo/Manaus: Imaginário/Editora da Universidade Federal do Amazonas, 2007.
SAFÓN, Ramón. O Racionalismo combatente: Francisco Ferrer y Guardia. São Paulo: Imaginário/ IEL/NU-SOL, 2003.

Saiba Mais – Links