“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

O Estado à sombra de Vargas

Cinquenta anos depois de Getúlio “sair da vida para entrar na história", o legado do nacional-estatismo ainda está no centro do debate político e, por ironia, vê-se ameaçado por um governo oriundo do sindicalismo que ele próprio criou.
Daniel Aarão Reis Filho
     Quando Getúlio Vargas se suicidou, em agosto de 1954, o país parecia à beira do caos. Acuado por uma grave crise política, o velho líder preferiu uma bala no peito à humilhação de aceitar uma nova deposição, como a que sofrera em outubro de 1945. Entretanto, ao contrário do que imaginavam os inimigos, ao ruído do estampido não se seguiu o silêncio que cerca as derrotas. Uma imensa vaga de protesto popular varreu o país. Multidões queriam reverenciar pela vez derradeira um líder político que já se tornara uma lenda. O suicídio fora um último golpe político. A morte de Vargas salvara o varguismo.
     Já em outras oportunidades, acontecimentos também decisivos para a história da República brasileira se associaram à personalidade de Vargas: a Revolução de 30; o golpe de 1937 e a instauração do Estado Novo; a decretação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), em 1943; os movimentos queremistas ("queremos Getúlio") que, em 1945, clamaram pela permanência de Vargas no poder; a volta à Presidência "nos braços do povo", em 1950; as lutas nacionalistas, com ampla participação popular, nos anos 40 e 50, exigindo um Estado nacional forte, com presença marcante na economia, através das empresas estatais: Companhia Siderúrgica Nacional e Petrobras.
     O suicídio conseguira mobilizar todas estas referências, galvanizando o povo, sobretudo as camadas mais humildes, na defesa de um programa, uma tradição nacional-estatista.
     Mas o que era essa tradição? Um Estado forte, centralizado, com poder de intervenção em todas as esferas da sociedade, da economia à cultura, da produção do aço ao consumo de símbolos. A intromissão estatal bem-vinda: do alto para baixo, do centro para a periferia. Em contrapartida, o enfraquecimento dos poderes regionais e locais, então dominados por elites oligárquicas.
     Na cúpula do sistema, líderes carismáticos, dizendo aquilo que toca o coração dos que estão por baixo.  Defendendo e fazendo adotar e cumprir medidas e leis trabalhistas em defesa dos humildes.
     O compromisso com o crescimento econômico. Havendo desenvolvimento, com promessas de justiça, a ordem ganhava legitimidade, mesmo a autoritária, perseguindo e encarcerando as oposições, e adotando a tortura como política de Estado. O mais importante é que o Estado definisse um "projeto nacional".  Política para indústria, agricultura, comércio, finanças, juros, lucros e salários, educação, cultura, artes. Um projeto que mobilizasse o povo, intelectuais, empresários, civis e militares, religiosos, todos juntos, harmonizando-se na luta pelo bem comum, social e nacional.
     No quadro do Estado Novo (1937 a 1945), forjou-se este projeto e uma ideologia nacionalista. Os interesses particulares não poderiam impedir a convergência em torno dos valores da nação e do Estado. Só assim seria possível ao Brasil assumir o lugar merecido no mundo, fazendo valer os interesses próprios no jogo bruto das relações internacionais.
     Contra estas referências positivas, se oporiam apenas os inimigos do povo, os comunistas "vende pátria", acusados de "agentes" de Moscou, e, principalmente, os liberais. O liberalismo era acusado de emancipar os fortes do controle social, tornando-os mais poderosos e os fracos, mais débeis, fragmentando a sociedade e atomizando os indivíduos numa insana luta de todos contra todos. O liberalismo seria a doutrina do egoísmo sem peias, e, por se associar à democracia representativa, a contaminaria.
     Com efeito, as circunstâncias acabariam construindo uma rede de contradições entre os trabalhadores e os valores democráticos. Embora em todo o mundo, desde o século XIX, as lutas democráticas tenham sido travadas pelos trabalhadores, o liberalismo delas se apropriou, cunhando uma expressão, quase um slogan: "democracia liberal". No Brasil, sobretudo depois de 1945, as elites acompanhariam o giro, agrupando-se em partidos "democráticos". A União Democrática Nacional (UDN) e o Partido Social-Democrático (PSD) marcariam com o selo conservador a palavra. Do ponto de vista dos trabalhadores, seria necessário aproveitar os espaços e as margens democráticas, desde que servissem para fazer avançar o "progresso social" e a "independência nacional". Estas, sim, tornar-se-iam as referências fundamentais para avaliar uma "verdadeira" democracia. "Voto não enche barriga", sintetizou Getúlio, exprimindo ceticismo e desconfiança em relação à democracia representativa.
     A morte física do líder não conseguira matar o projeto político que ele encarnara. Nos anos seguintes, para alarma dos inimigos, reviveu a tradição nacional-estatista, consolidada pela aliança entre os dois maiores partidos das esquerdas brasileiras: o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), fundado em 1945, e o velho Partido Comunista do Brasil (PCB), de 1922 rebatizado Partido Comunista Brasileiro em 1960.
     Na segunda metade dos anos 50, essa aliança questionou as carências do crescimento econômico então verificado, os "cinquenta anos em cinco" do governo Juscelino Kubitschek (1955 a 1960). A economia crescera, mas estava demasiadamente atrelada aos capitais internacionais. Tratava-se agora, argumentavam as esquerdas, de promover uma justa distribuição do bolo - da renda e do poder.
     Entretanto, o candidato nacional-estatista, o marechal Teixeira Lott, não convenceu, derrotado por Jânio Quadros, nas eleições de 1960. A renúncia deste, em agosto de 1961, jogou o país numa crise de graves proporções. Os ministros militares tentaram vetar a posse do vice-presidente João Goulart. Uma mobilização civil e militar abortou o golpe e garantiu a posse de Goulart, embora com poderes diminuídos, no quadro de um regime parlamentarista aprovado a toque de caixa.
     João Goulart, o Jango, era afilhado político e herdeiro reconhecido de Vargas. As forças conservadoras viviam um pesadelo: em apenas sete anos, o velho líder ressuscitava.
     Os movimentos populares passaram à ofensiva: camponeses, trabalhadores urbanos, sobretudo os do setor público e das estatais, estudantes, graduados das Forças Armadas. Foi tomando corpo uma proposta de reformar o Brasil: reforma agrária, urbana, universitária, bancária, do estatuto do capital internacional. Um novo projeto nacional, a ser alavancado por um Estado forte e intervencionista, apoiado pelo povo organizado.
     Para as forças conservadoras, uma revolução social. A Igreja temia o comunismo, os oficiais das Forças Armadas, a indisciplina, as classes empresariais, o sindicalismo agressivo. Deram-se as mãos e formaram uma poderosa aliança autoritária e conservadora.
     Viviam-se, então, tempos quentes da guerra fria. Em todo o mundo, dava-se o embate entre o capitalismo e o comunismo. A Revolução Cubana triunfara em 1959 e, sob pressão do governo norte-americano, transmutara-se em revolução socialista em 1961. Na África e na Ásia, multiplicavam-se as guerras de libertação nacional.
     O Brasil estava integrado neste mundo de conflitos e polarizações. Uma crescente radicalização parecia impor escolhas à sociedade. Reforma ou contrarreforma. Revolução ou contrarrevolução. Aprofundar as heranças do varguismo ou negá-las. As esquerdas contra as direitas.
     No embate, decidido em março de 1964, triunfaram as forças autoritárias e conservadoras. As direitas. A ditadura militar.
     Desabaram as referências nacional-estatistas, derrotadas e desmoralizadas, quase sem luta. A segunda morte de Getúlio Vargas. Seria ele agora definitivamente enterrado?
     A ditadura fora produto da ação de uma frente heterogênea, social e política. Reuniram-se a Cruz (a Igreja), a Espada (as Forças Armadas) e o Dinheiro (os empresários), e mais o cimento do Medo das mudanças. Elites, classes médias e até mesmo setores populares queriam o restabelecimento da Ordem e da Segurança.
     Entretanto, um grupo organizado no Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (IPES), reunindo políticos, oficiais das Forças Armadas e empresários, cedo passou a desempenhar um papel-chave, conseguindo fazer eleger o primeiro ditador-presidente: o general Castelo Branco. Haviam formulado para o Brasil um projeto de desenvolvimento modernizante, autoritário e conservador. Previam o atrelamento do Brasil aos Estados Unidos no contexto da guerra fria, o saneamento das finanças, uma economia competitiva, aberta aos capitais internacionais, um Estado liberal, antidemocrático e repressivo, até que os objetivos de "pôr ordem na casa" fossem alcançados.
     Na prática, contudo, o governo ditatorial compreendeu que forças e instituições vinculadas à tradição nacional-estatista - Estado centralizado, sindicalismo corporativo, lideranças herdeiras do getulismo, mas também conservadoras - poderiam ser aproveitadas na nova ordem.
     Como quase sempre acontece na História, as utopias bem concatenadas no papel esbarraram em realidades complexas. Eliminaram-se os principais herdeiros da tradição nacional-estatista, mas foi necessário assumir a herança, pelo menos em parte, negociar com ela, em certa medida, incorporá-la.
     E, assim, depois de um primeiro momento de fúria reformadora, retomaram-se aspectos antes condenados. Um Estado forte, centralizado, desenvolvimentista, apoiado nas velhas estruturas corporativas criadas e construídas no "velho" Estado Novo. Uma traição? Assim pensaram alguns velhos liberais elitistas que ainda gesticularam em vão contra aquela reviravolta. À esquerda, também seriam derrotadas organizações revolucionárias, que se levantaram de armas nas mãos. Sem encontrar respaldo na sociedade, seriam eliminadas pela violência e pela tortura entre 1969-1971 (guerrilhas urbanas) e 1972-1974 (guerrilha do Araguaia).
     A ditadura consolidou-se como regime militar, embora fortemente apoiada na sociedade e nas classes empresariais. Ao contrário das expectativas catastrofistas, que apostavam no impasse do capitalismo, houve, entre 1967 e 1973, um novo salto para a frente, o "milagre brasileiro", fazendo com que os anos de chumbo fossem também de ouro, para milhões que viram a vida mudar para melhor.
     A recuperação do nacional-estatismo ganharia alento no penúltimo governo militar, encabeçado por Ernesto Geisel. Plano desenvolvimentista, empresas estatais, incentivos à ciência, à tecnologia, aos cursos de pós-graduação, à cultura e às artes. A política externa "pragmática e responsável" tentando afirmar um perfil próprio, incluindo-se aí a ambição da bomba atômica. O nacional-estatismo redivivo, pelo alto e sem o povo, sob direção dos militares, e adotando, a exemplo do Estado Novo, a tortura como política de Estado.
     Getúlio já morrera duas vezes, em 1954 e 1964, mas a herança, teimosa, sobrevivia.
     Numa "distensão lenta, segura e gradual", a ditadura esvaneceu-se. Pressionada por múltiplas crises, perdida a legitimidade dos êxitos econômicos, os chefes militares mais lúcidos preferiram a retirada em boa ordem.
     Na democracia reconstruída, as forças de esquerda voltaram a se organizar em liberdade: o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), o Partido Socialista Brasileiro (PSB), os partidos comunistas, o brasileiro (PCB) e o do Brasil (PC do B). Também apareceram novas siglas: o Partido Democrático Trabalhista (PDT) e o Partido dos Trabalhadores (PT).
     Na análise dos programas, uma certeza: o nacional-estatismo não morrera como ideário das esquerdas.  Em alguns, os traços eram mais fortes, como no PDT e no PC do B. Em outros, mais fluidos, como no PMDB, mais preocupado com cargos administrativos do que com encargos ideológicos. Numa situação intermediária, o PT, mas também o PSB, onde apareciam propostas democráticas, e as noções de uma cidadania ampliada, não mais concebidas de uma forma instrumental, mas como princípios. Ao mesmo tempo, surgiam declarações, como a do presidente e líder do PT, Luiz Inácio da Silva, o Lula, de que a CLT estava para os trabalhadores como o AI-5 estivera para a sociedade brasileira. Sendo criatura da estrutura corporativa celetista, aquilo pareceu a muitos uma ingratidão. A maioria, entretanto, pensou que se tratava apenas de uma bizarria. O fato é que a frase foi esquecida.
     As esquerdas estavam mudando, mas o mundo também, numa vertiginosa velocidade. E em sentido contrário às utopias nacional-estatistas.
     Uma nova revolução, científico-tecnológica, desde os anos 70, em âmbito mundial, passou a subverter situações estabelecidas, modelos de comportamento, crenças e valores. O processo da globalização, a relativização das fronteiras e dos estados nacionais, a revolução nas comunicações, além de outros fatores, condicionaram o declínio do chamado estado do bem-estar social, cujas referências eram importantes para as propostas nacional-estatistas. O liberalismo, bastante enfraquecido no pós-Segunda Guerra Mundial, reapareceu com força insuspeitada, numa grande ofensiva, capitaneada pelos governos da Inglaterra e dos Estados Unidos.
     Por outro lado, o grande adversário histórico do liberalismo, o socialismo soviético, caía em pedaços e se desagregava. Era uma árvore gigantesca. Na queda, tendeu a arrastar para a vala do desprestígio todas as propostas socialistas ou socializantes, mesmo as que não se identificavam com a sua história e o seu modelo.
     No Brasil, as chamadas tendências liberais também ganharam alento. Mas ainda teriam que lidar com a força das propostas nacional-estatistas, presentes tanto no governo Sarney como na Constituição de 1988.
     Entretanto, nos anos 90, o nacional-estatismo passou claramente à defensiva. A sociedade conhecia avanços democráticos substantivos, e progrediam igualmente os valores liberais, ambos colocando em dúvida os superpoderes do Estado. Depois de Fernando Collor, afastado menos pelas inclinações políticas do que em virtude de escândalos de corrupção, Itamar Franco representou um interregno, mas por pouco tempo. Seguiram-se os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso, que, embora mantendo certas preocupações sociais, realizou, em larga escala, o programa de Collor no que diz respeito à profunda redefinição da ação do Estado em suas relações com a sociedade, a economia, a cultura e a política.
     Apesar de lutas sociais importantes, as privatizações se realizaram, abrindo-se o país aos capitais internacionais. A herança getulista, agora, fora ferida de morte. Mas ainda sobrevivia em setores da economia e em muitas instituições.
     A vitória eleitoral de Lula, em 2002, gerou expectativas distintas, correspondentes à ambiguidade de seus discursos. O que significaria? Uma retomada das aspirações e valores do nacional-estatismo? Ou um caminho inovador, capaz de aprofundar conquistas democráticas sem hipertrofiar o Estado? O PT identificava-se com ambas as possibilidades, defendendo simultaneamente os valores democráticos e um projeto nacional, apoiado em um Estado forte e intervencionista e com uma crítica radical às profundas desigualdades sociais que continuavam marcando a sociedade brasileira.
     Entretanto, ao longo dos primeiros 16 meses, o governo Lula não tem feito senão continuar e aprofundar as reformas liberal-sociais já empreendidas por Fernando Henrique Cardoso.
     As esquerdas nacional-estatistas, um tanto aturdidas, voltam agora a se mobilizar. Acusam Lula de tibieza e traição. O governo responde que atende apenas a imposições de circunstâncias e que permanece vinculado a seus compromissos com os trabalhadores do país. Quanto às propostas de radicalizar a democracia, ainda permanecem vagas, não alcançando a consistência de um programa político, embora se registrem conquistas e avanços inéditos na história republicana do país.
     Nestas circunstâncias, o nacional-estatismo parece cambalear. Se couber a Lula o golpe mortal na herança nacional-estatista, será uma cruel ironia da História. Uma das mais autênticas criaturas do sindicalismo corporativista varguista matando as derradeiras heranças da era de Vargas.
     Será a terceira morte, talvez definitiva, do velho líder. Mas o futuro próximo ainda está em aberto. Em disputa com os valores liberais e as propostas democráticas, as tradições nacional-estatistas, enraizadas no passado, e apesar de todas as vicissitudes, definitivamente ainda não são um passado que passou.

Daniel Aarão Reis Filho é professor titular de História Contemporânea na Universidade Federal
Fluminense.

Fonte: Revista Nossa História - Ano I nº 7 - Maio de 2004

Saiba Mais – Bibliografia
AARÃO REIS FILHO, Daniel. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
FERREIRA, Jorge (org.). O populismo e sua história. Debate e crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
-------- Trabalhadores do Brasil. O imaginário popular. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1997.
GOMES, Ângela Maria Castro. A invenção do trabalhismo. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.
RODRIGUES, Leôncio Martins. Partidos e sindicatos. São Paulo: Ática, 1990.

Saiba Mais – Link:

Saiba Mais – Documentário
Líder civil da Revolução de 1930, comandou a modernização do Estado brasileiro com políticas nacional-desenvolvimentistas. No seu legado sobressaem as bases da industrialização, a legislação trabalhista e a participação do Brasil na II Guerra.
Nasceu em São Borja (RS), em 19 de abril de 1882, e morreu em 24 de agosto de 1954, no Rio de Janeiro (RJ).

sábado, 22 de agosto de 2015

O soldado de Cristo não vai à guerra

Ao abordar a moral cristã de forma humanista, Erasmo de Roterdã atacou a rigidez da Igreja e a violência entre os homens.
     Em uma Europa assolada pelas guerras e dividida por conflitos religiosos, Erasmo de Roterdã (1466-1536) defendeu a paz e a tolerância entre os povos, usando como princípio a moral cristã livre dos dogmas da Igreja.
     Suas armas foram as palavras impressas. Erasmo frequentava tipografias e se correspondia com editores, ilustradores e livreiros. Estava acostumado a pensar em público, na sala de aula ou no debate com interlocutores de toda Europa, com os quais mantinha um diálogo contínuo por meio de cartas, curtas e precisas, que fazia imprimir e circular rapidamente.
     A variedade e o volume de seus escritos contribuíram para perpetuar múltiplas imagens de Erasmo. Para muitos, ele é o autor do Elogio da loucura (1511), o crítico arguto da sociedade de seu tempo. Para outros, é o grande filólogo que por três décadas publicou e comentou mais de 4 mil provérbios greco-latinos, reunidos em Adagia (1500-1536). Alguns o lembrarão como o polemista que duelou com o reformador Martinho Lutero acerca da liberdade da vontade humana, a partir do seu Sobre o livre arbítrio (1524). E ainda há os que o destacam como o teólogo que renovou os estudos sobre o Antigo e o Novo Testamentos, com base nas fontes antigas que então chegavam da Grécia, após a dissolução do Império Bizantino.
     Mas é possível enxergar um fio condutor presente na maioria das obras desse humanista flamengo. Erasmo indagava-se constantemente a respeito da instauração da paz. Para isso, seria preciso eliminar os conflitos militares e intelectuais, inclusive em suas formas mais corrosivas: os embates religiosos. Esta temática central em seu pensamento – a renovação moral dos homens rumo à paz e à concórdia – está condensada em um pequeno manual, redigido em forma de carta aberta a um amigo leigo. Trata-se do Manual do Soldado Cristão, escrito em 1504.
     No Manual, Erasmo propõe uma série de preceitos para se viver no mundo como cristão, reconhecendo os perigos da alma e afastando-os pela renovação da vivência religiosa, pela imitação das virtudes de Cristo. Ele argumenta que a essência da experiência religiosa não está no pertencimento a uma igreja, mas sim no “encontro com Cristo”, como explica neste trecho inicial: “O Cristo não é uma palavra no ar pois significa a caridade, a paciência, a pureza, quer dizer, todo o seu Evangelho. (...) Deposite em Cristo como o único e supremo bem e não ame nada, não deseje nada a não ser em Cristo e por Cristo. (...) É sempre em função deste fim soberano que será necessário julgar a utilidade de todos os bens secundários”.
     A doutrina moral de Cristo deve ser seguida tanto pelo leigo engajado quanto pelo mais alto eclesiástico. E ser cristão é sinônimo de caridade, simplicidade e paciência – ou seja, uma vivência da religiosidade que transcende os dogmas e a hierarquia da Igreja. Para Erasmo, eram dispensáveis muitos dos ritos apresentados como necessários no caminho para a salvação e a proclamação da verdadeira fé. Criticava a devoção às imagens da crucificação e do corpo de Jesus coberto de chagas, o culto às relíquias e as abstinências. Argumentava que a morte e a paixão de Cristo eram alegorias a serem interpretadas para conduzir corretamente a vida moral, e não objeto de devoção popular – mesmo que respeitável, incapaz de renovar o homem interiormente.
     “Por ter sido batizado, não se creia cristão”, advertia Erasmo ao “Soldado Cristão”. A obediência a fórmulas rituais não era condição suficiente para uma autêntica religiosidade, nutrida muito mais por uma espiritualidade interior. “Não me diga que a caridade consiste em frequentar as igrejas, em se prostrar diante das estátuas dos santos, em deixar queimar círios e em contar rezas que você repete. Deus não precisa de tudo isso”. Do que precisaria Deus, então? Ou melhor, do que precisariam os homens para merecer a sua misericórdia? Provavelmente Erasmo responderia a estas indagações lembrando aos fiéis que o cristianismo não era apenas uma fé, mas um modo de vida, uma filosofia moral. Que ser cristão não consistia só em crer bem, mas em viver bem, exercendo a caridade para a regeneração interior e a manutenção da paz e da concórdia entre os homens.
     Os anos que antecederam a ruptura entre Lutero e a Igreja Romana, na reunião da Dieta de Worms, em 1521, foram marcados por grandes expectativas de reformas alheias à violência das guerras e à ferocidade da repressão das instituições eclesiásticas e seculares. Um intelectual como Erasmo ainda mantinha certa autonomia para escrever e agir. E o que propunha era um retorno ao núcleo originário do cristianismo, a uma espiritualidade desembaraçada dos longos debates teológicos. O que importava se o Espírito provinha do Pai, ou do Filho, ou de ambos? O importante era que frutificasse no coração humano, infundindo tolerância e paz.
     Até a ruptura luterana, Erasmo acreditou ser possível o advento de uma reforma da Igreja que reunificasse todos os cristãos, sem antagonismos nem anátemas, evitando as sutilezas escolásticas e o debate teológico. A união dos cristãos pacificados internamente e das retas consciências seria possível desde que se condensassem os ensinamentos de Cristo em um pequeno número de preceitos, por ele denominados de “fundamento da fé”.
     Por ocasião da reedição de 1518 do Manual do Soldado Cristão, Erasmo reafirmava esse projeto e o expunha em um novo prefácio: “Será muito prático, no meu entender, escolher e agrupar alguns homens pios e instruídos para o seguinte trabalho: extrair das fontes puríssimas dos Evangelhos e dos escritos apostólicos e de seus melhores intérpretes uma espécie de resumo de toda a 'filosofia de Cristo'. (...) Tudo o que pertence à fé será condensado em poucos artigos, o mesmo acontecendo para o que diz respeito à vida cristã”. O humanista apresentara a mesma proposta em uma carta de 14 de agosto daquele ano, endereçada ao amigo Paul Volz. Nela sugeria a redução da fé a um pequeno número de artigos, de preferência os dez mandamentos apenas, deixando todo o resto para a livre discussão.
     Quando escreveu a carta, ainda faltava mais de uma década para a primeira formalização oficial dos princípios do luteranismo na Confissão de Augsburgo (1530), e 27 anos para a abertura do Concílio de Trento (1545), com seus decretos dogmáticos e disciplinares que definiriam vários pontos da doutrina católica em face das múltiplas interpretações então correntes. Nesse intervalo, a religiosidade humanista de Erasmo manteve-se como uma proposta alternativa de renovação espiritual, de paz e de concórdia religiosa.
     O Manual do Soldado Cristão foi lido pelos contemporâneos como um conjunto de sugestões concretas para viver a mensagem evangélica de forma tolerante e ecumênica em tempos atribulados. Quando os conflitos religiosos transformaram-se em guerras civis e intraestatais, a piedade erasmiana tornou-se um modelo de tolerância contra qualquer dogmatismo. Com Erasmo, gerações repetiam que a piedade é “a palavra justa”.
     Esta pequena e preciosa obra é um testemunho de como a filologia e a crítica erudita eram instrumentos para pensar e propor novas formas de agir. O convite que Erasmo faz de restaurar a leitura do Novo Testamento põe em questão a autoridade das instituições eclesiásticas e o controle exclusivo da interpretação das Sagradas Escrituras. O estudo crítico dos textos antigos era a arma que o humanista empunhava em um contexto de guerras civis religiosas.

Silvia Patuzzi é professora da Universidade Federal Fluminense e autora de “Humanistas, príncipes e reformadores no Renascimento”. In: Modernas Tradições (Editora Access-Faperj, 2002).

Doce Guerra
     Os Adagia são uma coleção de provérbios que Erasmo de Roterdã selecionou a partir da leitura de um grande número de autores gregos, latinos e cristãos. Cada sentença é acompanhada de um comentário filológico, além de uma interpretação que atualiza aquele ensinamento. Esta forma de redigir a obra lhe permite reunir provérbios de autores diferentes sobre temas que ele considera importantes. Disso resulta tanto uma divulgação da Antiguidade pagã e cristã quanto uma abertura para pensar os problemas do seu tempo. O adágio 3001, A guerra é doce para quem não a experimenta, mostra como Erasmo fazia dialogar antigos e modernos para refletir sobre o impacto da banalização da violência na vida dos homens.
     O adágio começa indagando sobre a proliferação da guerra, em todas as suas formas. Em seguida, enumera suas consequências: a fome, a destruição de famílias e negócios, o empobrecimento dos nobres e a degeneração dos costumes – mas, sobretudo, o fato de que “o inimigo leva consigo, junto com a vida, a percepção do mal”:
     “O que leva, não digo Cristãos, mas todos os homens, a tal ponto de loucura de empenhar-se, com tanto zelo, com tantos gastos, com tantos esforços, à ruína recíproca e geral da guerra. Nem todos os animais combatem tanto e entre si, mas apenas entre espécies diversas. Combatem com os meios naturais. Não como nós, com máquinas elaboradas para uma arte diabólica.”
     Para Erasmo, o mal não é uma potência sobrenatural. É a guerra que destrói as disposições morais do homem.

Saiba mais – Bibliografia
BAINTON, Roland H. Erasmo da Cristandade. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1969.
HUIZINGA, Johan. Erasmo. Barcelona: Ediciones Del Zodíaco, 1946.
ROTERDÃ, Erasmo de. O Elogio da loucura. Coleção L&PM Pocket.
ROTERDÃ, Erasmo de. A Guerra e a queixa da Paz. Lisboa: Edições 70, 1999.

Saiba mais – Link

sexta-feira, 7 de agosto de 2015

Aliança "Café com política"

Nova visão do poder na República Velha questiona antigas abordagens sobre a influência de mineiros e paulistas nas eleições para a Presidência do país.
Cláudia M. R. Viscardi
     Análises recentes das sucessões presidenciais na Primeira República (1889-1930) mostram que a famosa aliança entre Minas Gerais e São Paulo, chamada de política do "café com leite", não controlou de forma exclusiva o regime republicano. Havia outros quatro estados, pelo menos, com acentuada importância no cenário político: Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco. Os seis, para garantirem sua hegemonia, possuíam uma forte economia e (ou) uma elite política compacta e bem representada no Parlamento. E, juntos ou separados, participaram ativamente de todas as sucessões presidenciais ocorridas no período.
     Além desses estados, havia dois coadjuvantes respeitáveis: o Exército e o Executivo. Os militares se destacaram no regime em seus primeiros anos - durante a presidência dos marechais Deodoro da Fonseca (1889-1891) e Floriano Peixoto (1891-1894) -, retornando ao poder em 1910, quando o país foi presidido pelo marechal Hermes da Fonseca (1910-1914). Também provocaram impacto na República nos anos 20, através do movimento de seus tenentes em prol de mudanças como a instituição do voto secreto, o fim das fraudes eleitorais etc. Já o Executivo Federal conseguiu manter o privilégio de intervir sobre as oligarquias mais frágeis, impondo seu controle sobre elas quando julgasse oportuno, além de exercer atuação marcante na sua própria sucessão e de ser o principal gestor da política monetária e cambial do país - importante num contexto em que o fluxo de capitais externos, tal como hoje, era responsável pela saúde da economia.
     O poder de Minas Gerais nesse período é explicado não pela força econômica do gado de leite, mas pela sua projeção política garantida pela bancada de 37 deputados, a maior do país. E a influência de Minas também derivava da forte cafeicultura, já que foi o segundo maior produtor de café do Brasil até o final da década de 1920, sendo responsável por 20%, em média, da produção nacional - a cafeicultura paulista representava cerca de 55% e a fluminense 20%. A expressão mais adequada para a pressuposta aliança Minas Gerais-São Paulo seria, então, "café com café" e não "café com leite".
     Mas a coincidência de interesses entre dois estados cafeicultores já não seria suficiente para que dominassem, de forma exclusiva, a Primeira República? Parece que não. Em que pese sua importância na economia nacional, não foram os produtores de café os únicos controladores do regime republicano.
     Costuma-se ver nos livros didáticos os cafeicultores como uma categoria sem diferenças internas. Mas eles divergiam muitas vezes em relação às políticas governamentais sobre o produto e nem sempre conseguiam atuar de forma compacta na defesa de seus interesses. Além disso, questões envolvendo modelos de cafeicultura nos dois estados os afastavam. O café produzido por Minas Gerais era, em geral, de qualidade inferior ao de São Paulo e exigia investimentos específicos. O sistema de transporte, as tarifas públicas, o tamanho das propriedades e o regime de trabalho eram distintos. Tamanha diversidade dificultava acordos. A exemplo dos obstáculos impostos pelo presidente mineiro Afonso Pena para viabilizar o Convénio de Taubaté (1906/13) - primeira política de proteção ao café, pactuada pelos três estados cafeicultores, com o objetivo de amenizar a crise do setor -, que só foi posto em prática após os interesses mineiros e fluminenses estarem assegurados, isto é, quase três anos depois de ter sido assinado.
     Acreditar que o sustentáculo da "política do café com leite" se encontrava na coincidência de interesses cafeeiros dos dois estados significa diminuir, em muito, a complexidade das relações que se estabeleceram entre os estados após 1889. E a análise minuciosa das sucessões presidenciais não sustenta essa afirmação. Em geral, apenas duas sucessões são apontadas como rupturas do acordo entre Minas e São Paulo: a de Afonso Pena/Nilo Peçanha, em 1910, que opôs paulistas (a favor de Rui Barbosa) a mineiros (pró-Hermes da Fonseca); e a de Washington Luiz, em 1930, quando os mineiros deram apoio a Vargas e os paulistas a Júlio Prestes. Segundo nossa pesquisa, a primeira sucessão a colocar em lados opostos paulistas e mineiros foi a de Rodrigues Alves, em 1906. Antes disso, a participação de Minas foi bem restrita em razão de suas dissidências internas. Como nos demais estados, a Proclamação dividiu as elites mineiras entre republicanos e monarquistas (restauradores). E mais adiante, estiveram divididos entre partidários de Deodoro e de Floriano e, depois, entre florianistas e prudentistas.
     Já a participação de São Paulo na primeira década republicana foi significativa em função de sua coesão interna. Vários setores da elite política estiveram à frente do movimento republicano, reunidos no Partido Republicano Paulista (PRP), e assumiram, ao lado dos militares, o controle sobre os primeiros anos da República. Quando os paulistas se articularam em torno de uma quarta presidência, em 1906, os mineiros uniram-se e, aliados a gaúchos, baianos e fluminenses, formaram uma coligação conhecida como "Bloco", impondo a São Paulo a retirada do nome de sua preferência, a do paulista Bernardino de Campos.
     Derrotados em suas prerrogativas, os paulistas estiveram fora das articulações presidenciais até 1914, quando foi eleito o mineiro Wenceslau Braz (1914-1918). E, durante a sucessão do mesmo Wenceslau, novos problemas voltaram a acontecer: Minas Gerais aderiu imediatamente ao nome de Epitácio Pessoa, proposto pelos gaúchos, enquanto os paulistas se dividiam em torno de pelo menos duas outras candidaturas, a de Altino Arantes e a de Rui Barbosa.
     Entre idas e vindas, os dois estados conseguiram finalmente realizar alianças em torno da candidatura de Arthur Bernardes (1922-1926) e de Washington Luiz (1926-1930), mas voltaram a se separar em 1930. E mesmo durante esse breve período como aliados, as relações foram marcadas por conflitos. A exemplo do governo de Bernardes, quando houve oposição dos mineiros à política de proteção ao café comandada pelos paulistas. Além da conhecida hostilidade do presidente da República Washington Luiz às ações de Antônio Carlos, governador de Minas Gerais no mesmo período.
     Diante da contínua fraude eleitoral e do baixo comparecimento às urnas, a disputa pelo voto dos eleitores perdia importância em relação à escolha prévia do candidato. O estado que conseguisse lançar uma candidatura aceita pelas bancadas mais proeminentes teria a eleição garantida. E mesmo quando havia competição eleitoral, o apoio ao escolhido era quase unânime. Como um candidato poderia obter 97,9% dos votos? Foi o que aconteceu com o mineiro Afonso Pena, presidente entre 1906 e 1909. Esse índice tão pequeno de rejeição só é possível em eleições não confiáveis. O mais difícil, portanto, em uma eleição na República Velha, era sagrar-se candidato com o apoio das oligarquias dominantes.
     Para isso, as negociações tinham que ser longas e as regras, nunca escritas, mas sempre compartilhadas, tinham que ser respeitadas. Primeira: o poder dos estados era desigual e hierarquizado. Segunda: a cada eleição havia uma renovação parcial de poder entre eles, rejeitando-se assim atitudes monopolizadoras. Terceira: a manutenção do regime dependia do cumprimento dos princípios anteriores.
     Com base nessas normas, as alianças foram sendo feitas e desfeitas e em cada sucessão o jogo político era reiniciado. As regras eram as mesmas, os acordos, porém, mudavam. Daí a conclusão que a estabilidade do regime republicano não foi garantida por uma aliança de caráter exclusivista entre dois de seus maiores estados. Ao contrário, quando se aliaram e excluíram os demais parceiros, nos anos finais da República Velha, abalaram o modelo político em vigor.
     A instabilidade das alianças entre os estados mais proeminentes - aliados a seus respectivos "satélites" - surge, portanto, como garantia da continuidade do regime. Cada estado sabia seu potencial de intervenção (reconhecido pelos demais) e estava livre para construir, ou não, alianças a partir de seus interesses específicos.
     Mas como explicar a origem da expressão "café com leite" se, de fato, a aliança entre Minas Gerais e São Paulo teve caráter apenas conjuntural, como as demais? Uma hipótese, ou melhor, uma especulação: é provável que a expressão tenha sido criada pela imprensa, ao final da década de 1920 - pois não foram encontrados registros anteriores -, numa referência à aliança entre paulistas e mineiros em torno da indicação de Arthur Bernardes e Washington Luiz. E reforçada pelo longo governo Vargas (1930-1945) para desqualificar o processo político da velha república que ele pretendia superar. Esta questão, porém, permanece em aberto para quem se dispuser a desvendá-la.

CLÁUDIA M. R. VISCARDI é professora de História na Universidade Federal de Juiz de Fora e autora de O teatro das oligarquias: uma revisão da "política do café com leite". Belo Horizonte: C/Arte, 2001.

Fonte: Revista Nossa História - Ano II nº 19 - Maio 2005

Saiba mais – Bibliografia
FERREIRA, Jorge e DELGADO. Lucília de A. N. (orgs.). O Brasil republicano: o tempo do liberalismo excludente. Da Proclamação da República à Revolução de 1930. Vol. 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
FERREIRA, Marieta M. Em busca da Idade do Ouro. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1994.
KUGELMAS, Eduardo. Difícil hegemonia: um estudo sobre São Paulo na Primeira República. Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, 1986.

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domingo, 2 de agosto de 2015

Monges peregrinos

Durante a Revolta do Contestado, três religiosos foram exaltados como profetas e curandeiros.
     Três personagens marcaram profundamente os que enfrentaram as tropas da República na Guerra do Contestado (conflito ocorrido entre 1912 e 1916 na região serrana de Santa Catarina, envolvendo, de um lado, caboclos expulsos de suas terras, e de outro, o Exército nacional). Os monges João Maria de Agostinho, João Maria de Jesus e José Maria de Santo Agostinho percorriam os sertões do sul do Brasil desde o século XIX.
     Vindo da Itália para o Brasil em 1844, João Maria de Agostinho logo fixou residência em Sorocaba, no interior de São Paulo. Anos mais tarde, passou pelo Rio Grande do Sul, por Santa Catarina e pelo Paraná realizando curas valendo-se de fontes de água que o povo acabaria considerando santificadas. Adquiriu enorme fama entre a população que vivia próxima ao caminho das tropas, permanecendo na Região Sul até pelo menos 1870. Levava uma vida humilde e ascética, fazendo penitências, dirigindo orações e receitando ervas.
     Entre 1895 e 1908, um segundo monge percorreria a mesma região. Como Agostinho, João Maria de Jesus logo ficou conhecido por causa de suas curas. Costumava conversar com as pessoas, indicava medicamentos, batizava as crianças e transmitia seus mandamentos, como, por exemplo: “Quem descasca a cintura das árvores para secá-las também vai encurtando sua vida. A árvore é quase bicho, e bicho é quase gente.” Ou ainda: “Quem não sabe ler o livro da natureza é analfabeto de Deus”.
     Durante a Revolução Federalista (1893-1895), João Maria visitava acampamentos dos revoltosos e fazia críticas à República, anunciando calamidades e sofrimentos. Angelo Dourado, médico e coronel federalista, registrou um encontro com o monge, ocorrido em 1894:

     “Quando proclamaram a república, ele anunciara por onde passara grandes calamidades e para preservarem-se dela plantassem cruzes nas portas. Que haviam de matar e roubar, porque todos estes teriam em si o diabo. Depois esses crimes trariam uma guerra cruel, sem quartel. Que animados pelo diabo teriam forças e dinheiro, mas que os outros venceriam mesmo sem armas”.

     Ainda de acordo com São João Maria, esta nova guerra seria precedida de muitos “castigos de Deus”, como praga de gafanhotos, cobras ou chagas: “Vai vir um tempo onde haverá muito pasto, mas pouco rastro”.
     Um terceiro peregrino chegou à região de Campos Novos, Santa Catarina, em 1912. Miguel Lucena de Boaventura, um curador de ervas, autodenominado José Maria de Santo Agostinho, atraiu centenas de pessoas, que permaneceram ao seu redor na localidade conhecida como Taquaruçu. Lá ele abriu uma espécie de consultório, chamado “Farmácia do Povo”, utilizando as diferentes ervas da região e elaborando receitas, como esta citada pelo jornal Diário da Tarde em 1912: “entravam sassafraz, raiz de xaxim e outras raízes, na proporção de 700 gramas em uma garrafa de cachaça, para os doentes ingerirem em grandes doses”.
     Perseguidos pelas tropas catarinenses, José Maria e seus seguidores fugiram para o sertão do Irani, onde, em setembro de 1912, entraram em conflito com a polícia paranaense, dando início à Guerra do Contestado. A espera pelo retorno do curador – que morrera no conflito – e a tentativa de pôr em prática os ensinamentos dos monges, que foram preservados graças à tradição oral dos “caboclos” – como eram conhecidos os posseiros e sitiantes da região –, tornaram-se marcas fundamentais dos redutos rebeldes durante toda a guerra.
     Os ensinamentos desses peregrinos foram incorporados pela cultura cabocla e deram base à resistência ao projeto modernizador e capitalista que procurava se impor na região serrana de Santa Catarina. A propriedade privada da terra, o aproveitamento industrial da floresta e as restrições de acesso aos ervais nativos nada tinham a ver com a preservação da natureza, a lealdade nas relações sociais e o amor aos animais, valores pregados pelos monges e incorporados pelos caboclos. O avanço do trem de ferro, das serrarias e dos projetos de colonização confirmava as profecias dos monges de que o tempo de calamidades e guerras havia chegado. Mas, para os caboclos, esse tempo era também a possibilidade da remissão dos pecados e da instauração de uma nova ordem – a santa irmandade – oposta à modernidade capitalista. Os milhares de mortos da Guerra do Contestado são a prova de que os ensinamentos e as profecias dos monges tinham uma força muito grande, e que, para os seus seguidores, a história deveria ter seguido por outros caminhos.

Tarcísio Motta de Carvalho é professor do Colégio Pedro II e autor de “Nós não tem direito – Costume e direito à terra no Contestado”. In: ESPIG, Marcia Janete & MACHADO, Paulo Pinheiro. Guerra Santa Revisitada: novos estudos sobre o movimento do Contestado (UFSC, 2008).

Saiba Mais- Bibliografia
MACHADO, Paulo Pinheiro, Lideranças do Contestado: a formação das chefias caboclas (1912-1916) Campinas: Editora da Unicamp, 2004
QUEIROZ, Maurício Vinhas de. Messianismo e Conflito Social (a guerra sertaneja do Contestado: 1912 – 1916). 2. ed. São Paulo: Ática, 1977.
THOMÉ, Nilson. Os Iluminados: personagens e manifestações místicas e messiânicas no Contestado. Florianópolis: Insular, 1999.

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